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Polarizações ideológicas e implicações para as religiões

CAPÍTULO 2 RELIGIÃO, ESPAÇO E CIDADANIA

2.3. Significações do espaço religioso

2.3.4. Polarizações ideológicas e implicações para as religiões

Algumas das contradições não resolvidas entre pobres e ricos, em escala planetária, ainda presentes no século XXI, como marca de um tipo de formação social no Ocidente desde o século XIX, tendem a formatar a vida cotidiana e as ações em campos de hegemonia como

o Estado e o mercado, o que não deixaria de afetar as práticas religiosas em todo o mundo146.

Essas contradições demonstram, na atualidade, a ausência de um projeto coletivo, em nossas sociedades, para uma superação das desigualdades extremas, apontando para o esgotamento das alternativas hegemônicas que venham a se abrir criativamente para novas projeções futuras e deixando caminho para comportamentos ideológicos como as ‘ilusões da dissidência’147.

Estas se manifestam, sobretudo, nas juventudes urbanas, expressando-se numa atitude e pensamento que apresenta uma opinião de que todas as instituições humanas são fonte de poder e repressão.

Tais movimentos juvenis, para a sociedade como um todo, apenas são percebidos como anticultura, sendo muitas vezes facilmente apreendidos pela indústria cultural e neutralizados em favor do Estado e capital.

Por outro lado, surgem outras manifestações ideológicas, como as ‘tentações da ordem’, de cunho essencialmente reativo, alimentando-se do medo e do ódio, e que parecem afetar manifestadamente as classes médias, a partir de um sentimento de insegurança de perder seus privilégios, em termos econômicos, para as classes mais baixas, alimentando uma obsessão pela segurança e um apetite por toda forma de privilégio.

Essas ‘tentações da ordem’ trazem desdobramentos para as práticas religiosas, face à expressão política desse medo, que é uma afirmação da lei e da ordem como prática moral, que se dá, em particular, nas manifestações religiosas do cristianismo, sobretudo a partir de posturas fundamentalistas e que visam a certa hegemonia e alinhamento com os poderes políticos e do mercado148.

Um perigo para o desenvolvimento humano e social que essa polarização radical pode acarretar é a formatação de ‘seres humanos unidimensionais’, fechados a transformações, e violentos na reafirmação de seu modo de ver o mundo e as pessoas.

Isso alimentaria, na vida social, um círculo vicioso de dissidência e de repressão, com um esgotamento da democracia representativa, esquecida como processo e imposta como condição, a partir de uma forma hegemônica e conservadora de exercício de poder, que pouco se importa com os procedimentos processuais da política democrática, o que traz implicações nas formas como se dá a organização e a gestão das instituições em geral, tendendo a modelos organizacionais autoritários em geral, mesmo nas instituições religiosas, em particular.

Duas ideologias básicas se contraporiam entre tantas, uma da ‘conciliação a todo preço’; e outra, do ‘conflito a todo preço’, a partir das posturas descritas anteriormente149.

A primeira tende a se propagar no meio cristão na forma da paz a todo preço ou da ideologia do diálogo, levando a negar a fecundidade de todo conflito, o que se torna incompatível com o caráter das situações conflituosas na sociedade contemporânea.

A segunda, embora originária de fora do universo cristão, tende a induzir a práticas de um esquerdismo cristão típicas dos comportamentos dissidentes, que podem ser indiferentes à penúria que atravessam as sociedades industriais desde o século XIX, fechando-se face às estruturas lentas de negociação, e vindo a requerer atitudes mágicas e imediatistas por meio da imposição do conflito e do bloqueio à sua resolução, incluindo em suas estratégias atitudes de provocação, marginalização, teatralização e não-comunicação, podendo-se chegar ao cúmulo do não reconhecimento do adversário.

Tais estratégias acabam atuando mais em proveito da manutenção de um poder hegemônico e em detrimento das liberdades públicas, ‘teatralizando a política’ e reduzindo a eficácia simbólica dos atos de contestação, e, consequentemente, a capacidade de ação sobre

outras formas de construção do processo social150.

Uma ‘nova estratégia do conflito’ face às ideologias deveria ser:

1. Empírica em relação à realidade imediata, e às estratégias de ocultação e reforço dessa mesma realidade imediata por meio de estratégias ideológicas;

2. Teórica, acerca da função social do conflito nas relações entre liberdade e atitudes repressivas;

3. Prática, de modo que se reconheça a realidade (empírica) e se balize por uma reflexão (teórica), objetivando a transformação das configurações sociais,

livrando-as dos ciclos ideológicos que as paralisam151.

Desse modo, somente uma ‘liberdade portadora de sentido’ poderá justificar uma entrada no universo das instituições, sem que se esteja à mercê de uma arbitrariedade

intransigente e devastadora de um poder excludente, manipulador e autoritário152.

Poder-se-ia, então, passar a outros critérios de gestão organizacional das instituições em geral, pelos quais estas viriam a ser lócus de realização e de desabrochar de outra liberdade, isenta das hierarquizações que se estabelecessem em função da manutenção de hegemonias de uns grupos sobre os outros, sobretudo pela imposição do medo e da violência sistêmica.

Esses outros critérios de gestão organizacional que buscassem a construção da liberdade seriam desejáveis e necessários às instituições religiosas, o que implicaria em sua completa reforma, desde que padecem de um mal que aflige a sociedade como um todo, de se estruturar a partir de um poder que gera contradições e ambiguidades profundas entre os que

possuem muito e aqueles que pouco ou quase nada possuem153.

As práticas religiosas tomam determinadas dimensões materiais e simbólicas na cidade, que têm como um de seus fundamentos a organização de um espaço urbano destinado ao controle e ao domínio de grupos hegemônicos sobre as massas, e, na medida em que o fiel ‘edifica sua fé’ em edifícios, e, por conseguinte, em parte da cidade, poderia promover um duplo movimento, de sujeito dessa construção, a indivíduo massificado relativamente a sua fé e a cidade.

Essa é uma contradição e ambiguidade fundamental relativamente ao universo das religiões, e que ainda aguarda uma solução, caso se deseje ‘libertar’ as organizações religiosas de se expressarem em ‘espaços autoritários’.