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Religião e reprodução socioespacial

CAPÍTULO 2 RELIGIÃO, ESPAÇO E CIDADANIA

2.2. Produção social do espaço religioso

2.2.2. Religião e reprodução socioespacial

As relações entre as expressões religiosas, as experiências urbanas e a constituição dos indivíduos/sujeitos permite um maior entendimento sobre a elaboração social do imaginário e da práxis da sociedade brasileira contemporânea, em sua construção da realidade de mundo.

A religiosidade, a cidade e as diversas representações do sujeito são elementos importantes nas construções simbólicas dos extratos sociais da população, e, também, como repertório simbólico de como cada um desses extratos sociais elabora seus conflitos, tanto no sentido de um enfrentamento, quanto da manutenção e da reprodução das desigualdades, por

omissão ou por determinação, de modo consciente ou não84.

As relações entre as expressões religiosas, experiências urbanas e construções dos sujeitos remetem a uma reflexão das especificidades do processo de modernização brasileira, e de como este frustra as expectativas teóricas relativas à secularização das sociedades

modernas e ao correlato desencantamento do mundo face ao desenvolvimento tecnológico85.

A modernização brasileira, com seu acelerado processo de urbanização, trouxe um reencantamento do mundo, refletido na presença atual e revigoramento do campo religioso no

Há uma importância em se tratar de um modo específico o fenômeno religioso nos atuais estudos das ciências sociais contemporâneas, tomando-se em consideração este fenômeno de reencantamento do mundo, desde que a religião nunca esteve em declínio no mundo ocidental, o que ocorreu é que as ciências sociais a perderam de vista como objeto importante de investigação87.

Uma renovação de olhares acerca do fenômeno religioso deve acontecer nas novas pesquisas, isso em termos hermenêuticos, semióticos e fenomenológicos, a fim de que, pela via da pesquisa relativa aos fenômenos religiosos, possa-se acessar a própria realidade social

como um todo88.

Os processos de urbanização e de secularização, característicos de uma ‘modernidade em desconstrução’, são, na atualidade, um dos principais temas da sociologia da religião, da antropologia da religião, e das ciências sociais como um todo, na busca pela compreensão das

dinâmicas de transformação das sociedades contemporâneas89.

Na atualidade brasileira, as organizações religiosas, de um modo geral, acabam por configurar seus fiéis às lógicas hegemônicas da cidade secularizada, e, ainda que haja um processo de reencantamento, este não tem demonstrado força suficiente em respaldar novos modelos à experiência sociourbana, através de novas espacialidades religiosas libertárias.

Ao contrário, as organizações religiosas tendem a reproduzir uma lógica socioespacial fragmentária, não atuando como elemento de transformação da realidade social e das subjetividades relacionadas, no sentido indicado de maior liberdade para as pessoas e os grupos, antes agindo na direção contrária, apoiando e favorecendo, conscientemente ou não, projetos hegemônicos de poder e de controle social.

A urbanização rompe com formas tradicionais de representação e com controles simbólicos da vida social, na medida em que novas espacialidades e temporalidades vão

estruturando as massas urbanas e sua relação com a cidade vai sendo ressignificada90.

Essas transformações socioespaciais da cidade produzem um deslocamento nas relações interpessoais, ao firmar certo anonimato e solidão como características de

No entanto, na prática das religiões ocorreria um retorno aos interesses hegemônicos do Estado e do mercado, que se daria, nesse sentido, mais em termos de uma gestão profissional e de estratégias de comunicação de massas, visando a um determinado controle sobre os fiéis.

No entanto, deve-se considerar que o processo de urbanização é um dos elementos que, junto aos processos de produção de mercadorias e de proletarização, garantem a geração de mais-valia nas sociedades capitalistas92, e que as religiões, cada uma a seu modo, ao fazerem parte do espaço urbano, tenderiam a referendar tais processos e as injustiças deles advindas; e ainda que o discurso seja outro, as práticas referendam projetos hegemônicos de grupos específicos que detém o poder econômico e político na cidade.

Sendo um dos cernes da dinâmica capitalista, o espaço urbano é ambíguo e contraditório por sua própria funcionalidade, qual seja, a de garantir a acumulação de capital e a hegemonia dos grupos capitalistas sobre as massas urbanas, e, com isso, instrumentalizar esse espaço de modo a reproduzir e a aprofundar desigualdades nas relações sociais, gerando dependência e marginalização das massas urbanas em relação a essas formas de gestão da vida (ou da morte?)93.

Evidentemente, pelo fato do ‘espaço religioso’ estar inserido no ‘espaço urbano’, há inúmeras imbricações entre ambos, que vão desde a afirmação à negação mútua desses espaços, desde que esses espaços podem também gerar desejos de sua superação, mas que se frustram sistematicamente, na medida em que as ‘qualidades’ do espaço são mantidas em sua essência94.

O que se quer dizer com isso?

Nesse sentido, a urbanização no Brasil também pode ser pensada a partir de referenciais simbólicos advindos do campo religioso, como uma das formas de se interpretar as representações da realidade vivida nas cidades brasileiras.

Desse modo, algumas das relações entre espaço e religião são constituintes do pensamento e da cultura na cidade, e devem constituir-se em elementos ativadores de novas teogonias, como se tem observado na dinâmica do campo religioso no país.

Mas, pelas formas como essas teogonias se constituem no espaço das cidades, incapacitar-se-iam, de antemão, para propor projetos libertários; ao contrário, antes terminam por se alinhar com os interesses hegemônicos do capital e do Estado, conforme se tem demonstrado nesta tese.

Há um papel contraditório e ambíguo das expressões religiosas naquilo que diz respeito à sua participação na produção social do espaço e das subjetividades na cidade.

As religiões produzem um sentido e significado para o que se processa na cidade95, mas contribuem também para a produção dessa realidade socioespacial, na medida em se constituem parte do espaço urbano.

Mas, ao se oferecer como uma forma de minimizar as mazelas na vida do fiel, a religião atuaria inocuamente no plano simbólico, sem transformar a realidade material e as dimensões subjetivas implicadas, apesar da existência de um discurso e do sonho de um futuro melhor presente nas expressões religiosas, que animam a continuidade das comunidades de fé.

Esse tipo de abordagem consideraria de um modo mais profundo a realidade da cidade, para além de sua aparente construção física, de simples forma material, conforme vem se apresentando, já que a cidade também alimenta sonhos e pesadelos, esperanças e desesperanças96.

Uma forma de se interpretar a cidade é compreendê-la como sendo feita de ‘carne e

pedra’97, e, na medida em que viria a ser uma forma de representação do corpo e da

sociedade, indicaria uma relação intrínseca e muito íntima entre o ser humano e o espaço que este constrói e ao qual atribui significado; e, considerando-se esse processo como dialético, as

pessoas também são transformadas por esses significados que constroem a partir do espaço98.

Essas constatações oferecem um campo de reflexão importante, acerca dos múltiplos significados de uma complexa construção simbólica da realidade, relacionada ao fenômeno religioso no país, com seus desdobramentos na constituição das pessoas e de suas subjetividades, conduzindo a formas tuteladas e restritas de cidadania.