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CAPÍTULO 2 RELIGIÃO, ESPAÇO E CIDADANIA

2.3. Significações do espaço religioso

2.3.5. Limites da verdade religiosa

O fenômeno religioso deve ser percebido em sua totalidade, diferentemente de quando abordado na perspectiva de outras especialidades, que fazem das religiões referências aos

esquemas mais gerais de suas respectivas disciplinas acadêmicas. As religiões são sistemas

concretos, existem ou existiram na realidade concreta da vida dos grupos humanos; e, a partir

dessa perspectiva, as religiões podem ser apreendidas em quatro direções154:

a. Na vida em comunidade de pessoas se relacionando conforme

um dado código religioso, agindo em conformidade ou ferindo o mesmo, porém sempre mobilizadas, na vida cotidiana, por esse código;

b. Como sistema de atos, cristalizados, sobretudo nos rituais e

cerimônias partilhados por uma dada comunidade;

c. Como conjunto de doutrinas expresso nos gestuais, vestuário,

arte, literatura, culinária, entre outros meios de se expressar o simbolismo da linguagem mitológica de uma dada comunidade;

d. E, como sedimentação de experiências religiosas, pessoais e

coletivas, que podem ser reinterpretadas nas obras de arte, nos mitos, ritos e, evidentemente, nos testemunhos vivos.

É importante firmar que cada uma dessas dimensões acima discriminadas aponta para processos específicos de espacialização, que vão da cidade à morada, à mobília, ao livro, à moda, aos gestos, aos pensamentos e palavras.

As linguagens religiosas, desde suas origens mais profundas no ser humano, extravasam a ‘gramática’ e transbordam nos atos sociais, traduzindo-se em ritos, gestos, cerimônias que transcendem a ordem estabelecida do cotidiano, ao mesmo tempo em que fincam raízes profundas na dimensão imediata do vivido.

Chega-se até um limite e um impasse, diante dos quais é questionada a validade e as possibilidades de se conhecer o ser humano a partir daquilo que este produz, e, entre essas produções, as religiões e as linguagens em que estas se firmam e se fundamentam, de modo

que se deve constituir uma cultura epistemológica155 relativa a uma reflexão crítica, sobretudo nos domínios das variáveis de pesquisa desta tese, a religião, o espaço e a cidadania.

NIETZSCHE propõe a realização de uma ‘gaia ciência’, uma forma de produção de saber que ‘saiba rir de si mesma’, não se levar a sério, pois que limitada, sendo capaz de uma autocrítica que lhe permita admitir que ainda haja ‘um tempo bom para os espíritos livres’, para aqueles que se fazem tal ciência mais cônscia de si mesma, e menos alienadora de mentes e corações156.

Para o filósofo, a Igreja, entendida como corpo organizacional, nesse caso, poderia representar um espaço que conduza as pessoas a processos reflexivos, ainda que se pese toda a ilusão que isso também possa implicar, e desde que tal ilusão sirva antes para aproximar a pessoa de si mesma, de seus pensamentos e de uma visão crítica do conhecimento, e não, ao contrário, vindo a ser meio de alienação e de massificação pura e simplesmente.

A sutileza do filósofo, nesse sentido, dá-se por uma inversão do significado usual de ‘ilusão’, por meio de sua afirmação radical, pois toda ‘verdade é instituída’, e daí seu caráter sempre duvidoso, sendo, portanto, antes uma ‘afirmação moral’, ainda que com pretensões de

cientificidade, pois que na vida não há verdade, só ilusão: a vida não é moral157.

Desse modo, abre-se um leque de possibilidades para um diálogo crítico entre saberes instituídos, nas ciências e fora delas, acerca da religião como objeto de pesquisa e de reflexão, e não de dogma, moral, ou outras verdades.

É necessário um ‘espírito livre’ para se reconhecer os limites de se compreender a vida, percebendo que todo saber é um ‘recorte da realidade’, e que, no limite, esta mesma só se dá a conhecer humanamente como linguagem e representação.

Nesse sentido, o campo do fazer científico acerca do ser humano, tomado como objeto de sua própria ciência, colocar-se-ia claramente no nível da linguagem, naquilo que, ao se tomar uma forma de conhecimento, também se torna visão de mundo.

Um grande erro é não perceber essa fundamental diferença entre um jogo de representações do mundo e seu conhecimento humano sempre limitado.

Isso é particularmente importante para todo fazer científico que pretende abordar os fenômenos religiosos a partir de sua linguagem espacial, mais especificamente a partir de sua ‘grafia enquanto espaço’, sua geo-grafia, naquilo que se insere numa geografia mais ampla do espaço da cidade e de sua região.

Todas essas linguagens afetam os seres humanos no sentido de sua ‘edificação a partir dos espaços que edificam’, seja da religião e da cidade, podendo ou não promover uma relativa liberdade e autonomia às pessoas, no sentido de permitir-lhes ser sujeitos de si mesmas.

Diante das diversas possibilidades de representação das práticas religiosas, assim como dos significados de sua espacialização, percebe-se que há um ‘jogo de linguagens’ que formam e transformam os seres humanos na medida em que se envolvem nessas atividades.

Desde que o mundo e os seres são acessíveis à percepção e conhecimento humanos através de representações, e não de verdades estabelecidas, há em todo descortinar da realidade um ato que deve estar além do bem e do mal, além da moral, desde que se vise a um

mínimo de honestidade diante do saber158.

Os conceitos são ficções das quais se esquecem ser ficções, e, a partir daí, passam a ter um falso estatuto de verdade, embora sejam importantes meios para se pensar o mundo e os seres; não são nada, além disso, ainda que possa fundamentar ações e outras representações humanas.

O que o pensamento de NIETZSCHE busca é uma crítica da linguagem, como se esta fosse capaz de estabelecer “a verdade”. Nesse sentido, a crítica de NIETZSCHE à linguagem se dá sob o fundamento de que esta quer fixar a experiência mutável da realidade, criando realidades que só existem na língua, sendo que o principal problema apontado por essa crítica é o esquecer-se de que os conceitos da gramática são convenções e não a realidade. E, partir daí, passa a ser uma negação do mundo, niilismo presente na gramática, que é aprofundada com a modernidade.

Espaços são conceitos, ao menos arquitetonicamente, e a religião, sob este aspecto, também é um conceito, portanto elemento comunicativo de uma ficção que se faz espaço pleiteando tornar-se determinada realidade, porém, sempre arbitrária, a do espaço religioso.

Essa relação entre os seres humanos e a linguagem, quando se dirige para além de uma ‘nomeação das coisas’ em direção a uma ‘verdade das coisas’, tornar-se-ia, para NIETZSCHE, uma forma de ‘negação da vida em favor de uma ficção tirânica’ estabelecida através da linguagem. Isso pelo fato de se querer ‘fixar a vida na gramática’, vida que é mudança e transformação constantes. Dessa forma, na ficção das palavras, se quer fazer uma duração e verdade de algo que é fugidio e irracional, ou seja, a própria vida.

Sem prestar atenção à linguagem e às categorias que foram criadas para dar suporte a ela, tanto em termos gramaticais, quanto em termos morais (significação das palavras), em NIETZSCHE, fica a impossibilidade primeira de toda reflexão e conhecimento ‘isentos’, seja nas ciências, nas religiões, na política, em suma, na cultura.

Assim, a língua vai se constituindo através da condensação e fixação de significados que são aleatórios em sua origem, mas que vão se estabelecendo como ‘verdades e como realidades do mundo’, sem o ser.

Nesse sentido, a genealogia proposta por NIETZSCHE se dirige a uma crítica da linguagem, reconhecendo sua importância, mas a limitando em sua função, que é a de nomear as coisas e não a de estabelecer ‘uma verdade’ sobre as mesmas, e, a partir daí, estabelecer uma hierarquia entre as coisas e as pessoas, e entre as pessoas relativamente umas às outras.

Esse empreendimento genealógico somente se dá a partir de uma ‘transvaloração de todos os valores’ da língua, reinventando-os, ou mesmo inventando novas linguagens, e, com isso, reinventando o mundo e os seres.

NIETZSCHE procura desvendar uma genealogia da linguagem visando a compreender em que medida os valores que se cristalizam nela servem à vida ou a negam.

E, no caso da pesquisa relativa à tese que se está a defender, desde que o espaço, e também espaço religioso, é linguagem, uma genealogia se faria necessária para desvendar uma tirania do espaço como ‘um conceito fixo’, que se quer fazer ‘uma verdade eterna’, sobretudo em se tratando de religiões.

Tem-se, desse modo, uma complexa relação entre o ser humano e uma forma de linguagem que descaracterizaria o mundo, na medida em que se quer fazer linguagem de ‘uma

verdade’, sendo que é apenas uma representação, uma ficção com a duração do efêmero e fugidio que é a vida.

Quando se pretende ‘fixar a vida na linguagem’, dar-se-ia, a partir daí, uma negação da vida, pois esta, antes, seria como uma composição de forças, que se conflitam entre si na produção de mais vida, sem qualquer julgamento moral, sem essência, puro e eterno retorno do mesmo puro e eterno devir.

Parece ser assim com o espaço e com a religião, se tomados como linguagens, sendo que a negação da vida por essas realidades se daria quando ambas, cada uma a seu modo, quer se ‘fixar em verdade’.

E, quanto às pessoas, o que interessa, nesse sentido, a esta pesquisa, é se elas ‘falam essas linguagens’ como sujeitos de suas próprias fantasias, senhores de sua mitologia, ou se são ‘faladas por elas’, constituindo-se em indivíduos massificados e alienados na medida em que não percebem as fantasias que constroem, e pensam ser ‘a realidade’ aquilo a que se dedicam.

A consciência, para NIETZSCHE, é produto da linguagem, e, assim sendo, a língua, sempre arbitrária, fundaria não apenas os códigos sociais em termos de uma ‘gramática’, como também daria vazão à existência dos próprios pensamentos; e, desde que não se tenha consciência de que estes são frutos da linguagem, acreditar-se-ia neles cegamente, tomando- os por realidade, e por algo independente de sua representação e criação humanas.

A ‘consciência’ e a ‘noção de eu’ são uma ‘ficção da linguagem’, que agiria na humanidade no sentido de nivelá-la a ‘uma média’, em favor da comunicação, distanciando-a do implacável devir do mundo, em sua diversidade, sempre mudança e transformação, sem que haja uma essência imutável para tais fenômenos, pois que moram na linguagem e na criação humana.

Essas reflexões acerca das relações entre pessoa e linguagem põem em suspensão a possibilidade de quaisquer discursos que queiram se valer como ‘verdade absoluta e única’, tanto nas ciências e na linguagem religiosa, como na escrita do espaço e nas práticas de vida.

As implicações da linguagem, e, particularmente, da gramática, para o pensamento, são de que este último estabelecer-se-ia como um elemento condicionado da língua, o que necessariamente impõe os limites e as condições do pensar.

A isso se tem chamado ‘razão’ na tradição ocidental cristã, ou seja, a ‘lógica inscrita na língua’, e que não faz senão ‘girar sobre si mesma’, sendo esta razão ‘não-descoberta’, mas, sim, ‘imposição da língua a priori’, e condição para a existência do pensamento.

O mesmo imperaria no espaço e na religião como linguagens cristãs, ou seja, querem se afirmar com ‘verdades’. A realidade plural, fluida e mutável, já se faria então ausente do pensamento, desde esta perspectiva da linguagem religiosa ‘como verdade’.

A invenção de uma nova linguagem, capaz de não negar a vida em sua abundância: eis do que trata a preocupação de NIETZSCHE em relação à possibilidade do conhecer; e não da possibilidade da verdade, que é apenas uma criação de uma determinada lógica gramatical, sempre limitada em suas origens.

Isso implicaria em uma invenção também do ‘sujeito’, alicerçado em uma falsa noção de eu, de identidade entre os nomes e as coisas, e no princípio da não-contradição na afirmação de uma verdade, tudo isso inscrito na lógica gramatical, e não na vida, a qual é devir e irracional.

Isso deveria conduzir para outras formas de percepção do mundo e de sua representação, dando oportunidade do surgimento de um ‘conhecimento que não se faça

verdade’, de um pensamento que se ‘descole da gramática e de suas formalidades’, de um pensamento ‘livre para retratar uma liberdade da vida’.

O espaço e a religião que promoveriam esta ‘liberdade’ seriam possíveis apenas como

invenções contínuas, que expressassem uma criatividade permanente159; embora nem toda

invenção e expressão criativa sejam libertárias, sobretudo se se cristalizam em verdades absolutas.