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O diálogo de Klavierstück XI com as práticas interpretativas e a performance musical

3.2. Especificidades da performance da música contemporânea

Se é impossível delimitarmos cronologica ou esteticamente a chamada música contemporânea ou música nova, posto que ela não propôs um marco inicial nem um direcionamento único, mas emergiu gradativamente e se estabeleceu como uma multiplicidade de desenvolvimentos, métodos, técnicas e poéticas composicionais, podemos ao menos considerar como seus dois principais impulsos: a suplantação da hegemonia do sistema tonal e o desenvolvimento de novas tecnologias de produção sonora e musical.

Tanto a busca por novos sistemas e métodos de organização musical como o desenvolvimento de tecnologias de registro e produção sonoros fomentou o interesse composicional por todos os aspectos sonoros de forma cada vez mais abrangente e igualitária. Portanto, se tradicionalmente a espinha dorsal da composição musical privilegiava a construção abstrata fundamentada no planejamento de relações de alturas distribuídas em um tempo mensurado, enquanto que a concretude sonora, com todas as suas qualidades e nuances, era em grande parte delegada ao instrumentista, a música nova apresentou como um de seus maiores benefícios a amenização desta descontinuidade na prática musical. Isto se deu por meio da consideração composicional cada vez mais abrangente do som em suas qualidades, o que pode ser observado em diversas técnicas e poéticas composicionais, dentre as quais citamos a noção de Klangfarbenmelodie, a expansão do método serial aos diversos parâmetros sonoros, a música eletroacústica (desde suas origens nas vertentes concreta e eletrônica), a profunda imersão no universo da sonoridade efetuada por compositores como Giacinto Scielsi e a estética espectral. Com isso, cada vez mais a atividade composicional deixou de implicar compor com notas, para se

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tornar compor com sons e, sobretudo, compor os sons32.

Isso tem implicações importantes na prática interpretativa e na performance da música contemporânea instrumental, sobretudo no que diz respeito ao relacionamento entre escritura e notação e entre notação e leitura musical. Vimos como o nosso sistema tradicional de notação musical se apresenta coerente com sua proposta original, que é prioritariamente de definir “notas”, mensurando alturas e proporções duracionais. Conforme o tratamento das alturas foi se tornando mais cromático (e o nosso sistema de notação tradicional é essencialmente diatônico, do que é testemunho as suas “7 notas musicais”), o tratamento rítmico mais irracional e aperiódico, os registros considerados com mais amplitude e os demais parâmetros sonoros tratados de maneira cada vez mais minuciosa, a articulação entre escritura e processo de notação musical – bem como entre a notação e sua leitura – foi se tornando mais e mais complexa.

A leitura de grande parte do repertório contemporâneo se tornou uma tarefa de alta exigência, diante do fato de que muitas partituras se apresentam como árduos desafios a seus intérpretes, repletas de acidentes, notas suplementares, mudanças de claves, texturas complexas, descontinuidade de registros, proporções irracionais e ritmos amétricos. Não apenas a leitura, mas todo o processo de aprendizagem da obra, de memorização e automação neuro- muscular do músico, tornou-se mais árduo. Evidentemente, isso não se deve apenas ao aumento da complexidade notacional, mas também à multiplicidade de escrituras na música nova. É preciso considerar que, ao travarmos o

32 Entretanto, é importante ressaltar que, se a consideração das qualidades sonoras pelo

planejamento composicional não se evidenciava enquanto praxis musical generalizada em séculos anteriores ao XX, ela é observável em individualidades composicionais do nosso passado musical, como observa Didier Guigue. Diante do amplo reconhecimento de Debussy como o primeiro compositor para o qual a organização do sonoro torna-se uma dimensão do projeto composicional, Guigue (2007, p. 37) ressalta: “Compor com a sonoridade, todavia, não constitui uma preocupação nascida apenas no século passado. De fato, eu situaria sua origem em Rameau; no Século XVIII, portanto, com uma passagem obbligata, evidentemente, por Berlioz”.

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primeiro contato com uma obra contemporânea, estamos provavelmente nos confrontando com um universo musical singular e em grande parte novo, ao passo que a prática interpretativa na música tradicional lida com uma escritura histórica e em grande parte amplamente compartilhada. Disso decorre que, antes mesmo de ler, digamos, uma sonata clássica desconhecida, o instrumentista provavelmente já a conhece em boa parte; seu vocabulário, seus gestos e sua sintaxe já são em grande parte seus antigos conhecidos, estão incorporados à sua leitura, ao seu ouvido e aos seus hábitos psicomotores. Portanto, a distinção entre ouvir uma obra de sintaxe completamente nova e ouvir uma obra construída sobre uma sintaxe pré-estabelecida e coletivizada (que é a distinção entre conhecer e reconhecer), aplica-se também à condição do músico e suas respostas ao ler uma obra contemporânea e uma obra do repertório tradicional.

É preciso considerar, entretanto, que a reduzida compatibilidade entre a notação tradicional e muitas escrituras contemporâneas e a consequente complexificação da leitura musical foi por vezes contornada pelo desenvolvimento de novos métodos notacionais. Porém, estes novos métodos impõem um novo aspecto: diante da não padronização entre os vários métodos, a leitura musical de uma obra notada extra-ordinariamente requer que o instrumentista aprenda e repertorie novos signos musicais, se veja às voltas com bulas e instruções, bem como desenvolva uma familiaridade com cada novo código e um bom grau de automatismo entre a visualização dos novos signos e as ações físicas por eles prescritas. O intérprete é, portanto, confrontado com uma multiplicidade de métodos notacionais, não raro em uma única peça.

Entretanto, ressaltamos que tanto a menor compatibilidade entre notação tradicional e muitas escrituras contemporâneas como a não padronização de novos métodos notacionais não se estabelecem como aspectos incoerentes ou nocivos. Ao contrário, a complexificação entre escritura, notação e leitura musical foi criativamente explorada por compositores que souberam reconhecer nestes embates instrumentos valiosos de inserção no planejamento composicional das

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multiplicidades inerentes à música instrumental33. Além disso, tanto quanto a notação tradicional foi compatível à escritura tradicional, os novos métodos notacionais propuseram uma nova coerência com o pensamento musical contemporâneo: a uma multiplicidade de poéticas e escrituras, uma multiplicidade de métodos notacionais.

Importa-nos reconhecer que, diante de tão amplo horizonte de poéticas, escrituras e notações, ao que se soma o frescor que envolve tudo o que é recente, é inevitável que a música contemporânea não se submeta a tradições ou normas interpretativas. É bem verdade que acreditou-se, por um tempo, em uma postura interpretativa adequada à música nova, a qual seria a de uma leitura a mais objetiva possível do texto musical, defendida por compositores dentre os quais Arnold Schoenberg e Igor Stravinsky. Entretanto, tal crença fragilizou-se, do que é testemunho o conhecimento das surpreendentes sugestões expressivas oferecidas por Anton Webern acerca de seu Op.27 ao pianista vienense Peter Stadlen, as quais induzem, segundo Jonathan Dunsby (2007, p. 50), a uma interpretação “muito semelhante à que esperaríamos referente à música de, digamos, Chopin ou Debussy”.

Se há uma recorrência na prática interpretativa da música contemporânea, ela está justamente no fato de não haver um amplo rastro de interpretações nas obras apresentadas. Isto favorece a possibilidade de um diálogo – tanto do intérprete quanto do ouvinte – mais direto com a obra, bem como uma apreciação mais absoluta da interpretação, e não uma apreciação comparativa entre interpretações.

Entretanto, não pretendemos assumir aqui uma postura de exaltação à música contemporânea, nem assumirmos uma ótica evolucionista, segundo a

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Citamos, além da relação entre notação e desvios de performance proposta por Stockhausen em Klavierstück XI, a exploração que Brian Ferneyhoug promoveu do embate entre notação e execução, por meio da prescrição notacional em tal grau de saturação que impõe ao executante a necessidade de uma espécie de seleção criativa, diante da impossibilidade de se executar integralmente o que está notado.

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qual o novo seria sempre o melhor. Intencionamos apenas destacar algumas qualidades que a música nova assume por conta de sua contemporaneidade, as quais nem sequer sabemos se e o quanto serão preservadas. É necessário, portanto, nos resguardarmos de alguns exageros, tais como a crença de que a música contemporânea liberta o intérprete ou de que a interpretação musical na música nova exige muito mais da participação intelectual e da escuta do músico34.

Também a multiplicidade interpretativa e de performance, muitas vezes confundida com concessão de liberdades ao intérprete, é equivocadamente apresentada como atributo exclusivo da música nova, quando em verdade sempre esteve presente na performance musical, posto que a interpretação musical sempre abarcou o indeterminável. Obras com proporções duracionais não determinadas de compositores como Jean-Phillipe Rameau e Louis Couperin (figura 14) não nos deixam dúvidas quanto a isso.

Figura 14 – Notação duracional não mensurada de Louis Couperin35

Portanto, não é concebível que a música nova, por meio das poéticas da indeterminação e da obra aberta, tenha inaugurado aspectos como a irrepetibilidade, a multiplicidade da obra e a capacidade decisória do intérprete,

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De fato, a participação intelectual e a escuta participativa do instrumentista são requisitos essenciais à boa performance na música contemporânea. Mas é importante irmos além, e entendermos que tratam-se de requisitos essenciais a qualquer boa performance de qualquer repertório.

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mas sim que os reconheceu, os teorizou, os potencializou e nos tornou plenamente conscientes deles. Mesmo as prescrições à improvisação não introduzem novos aspectos, e não apenas pelo fato de que práticas improvisatórias são há tempos presentes na música ocidental, mas também pelo entendimento de que sempre há – em algum grau – improvisação na performance musical; pois a performance (o que é bem diferente da concepção interpretativa) envolve sempre o imprevisto, e do intérprete são exigidas soluções instantâneas e muitas vezes intuitivas diante de variáveis (seu ânimo, o ambiente acústico da performance, as reações do público, o desempenho do instrumento, etc.) que não podem ser previstas nem pela mais estruturada das concepções interpretativas.

Inquestionável, entretanto, é o fato de que a composição contemporânea tomou definitivamente para si a questão sonora, e a grande contribuição disso para as práticas interpretativas é o fato de que, se tradicionalmente cabia ao intérprete agregar qualidades concretas ao traçado abstrato de uma composição musical, a música nova propõe – por meio da ampla consideração da sonoridade – uma articulação intimamente integrada entre composição e interpretação musical, tornadas instâncias musicais ainda mais irmanadas em torno da materialidade sonora.

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