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Forma lírica e campos temporais = fundamentos das multiplicidades de performance em Klaviestuck XI de Karlheinz Stockhausen

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alexandre zamith almeida

Forma Lírica e Campos Temporais:

fundamentos das multiplicidades de

performance em Klavierstück XI

de Karlheinz Stockhausen

CAMPINAS

2010

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alexandre zamith almeida

Forma Lírica e Campos Temporais:

fundamentos das multiplicidades de

performance em Klavierstück XI

de Karlheinz Stockhausen

CAMPINAS

2010

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do título de Doutor em Música.

Orientador: Prof. Dr. Mauricy Matos Martin.

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À minha Sayure, que traz em si um pequenino que unirá ainda mais nossas vidas...

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Agradecimentos

À CAPES, pelo apoio e pela Bolsa de Doutorado concedidos a esta pesquisa; ao Prof. Dr. Mauricy Matos Martin, por suas orientações que transcendem os âmbitos acadêmicos;

aos professores do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, especialmente a Edmundo Hora, a Jônatas Manzolli e a Silvio Ferraz pelos inúmeros ensinamentos em suas disciplinas, e a José Augusto Mannis pelas ótimas sugestões em meu Exame de Qualificação;

ao Flo Menezes, pela elucidadora conversa sobre Stockhausen;

ao Eduardo Monteiro, pela leitura atenciosa de artigo que se tornaria o primeiro capítulo desta tese;

aos colegas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) por proporcionarem um ambiente extremamente favorável a práticas e reflexões artísticas;

ao Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM-Lisboa/Portugal), pela eficiência e disponibilidade com que permitiu o acesso a seu acervo;

ao Mario Checchetto, amigo e parceiro musical, pela compreensão diante da interrupção de nossas pesquisas e práticas vinculadas à improvisação musical; ao meu irmão Maurício, pelas inúmeras leituras e sugestões;

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à minha adorável esposa, Luciana Sayure, pela intensa e decisiva participação em cada momento deste projeto, mas sobretudo pela compreensão, pelo companheirismo, pelo amor em cada momento da minha vida.

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Resumo

Esta tese trata das multiplicidades inerentes à manifestação musical, decorrentes de seus fatores de performance. Após a observação das aberturas enquanto ambiguidades presentes em toda mensagem artística e da performance enquanto momento integralizador da obra musical, este trabalho acata Klavierstück XI de Karlheinz Stockhausen como objeto de estudo, por ser representativa da estética da obra aberta e potencializar as variáveis e imprevisibilidades de performance. A obra é investigada a partir de seu projeto composicional, por meio da consideração do pensamento musical de Stockhausen que determinou aspectos que caracterizam a sua multiplicidade, com ênfase nos interesses do compositor por novas concepções de forma e de tempo musical. A partir desta investigação, Klavierstück XI é observada no contexto das práticas interpretativas, com o intuito de reconhecer que tipo de estímulo oferece a estas práticas. A tese apresenta ainda estratégias de estudo técnico-instrumental da obra, com vistas a proporcionar uma postura interpretativa mais condizente com o complexo jogo de itinerários e conexões proposto pela partitura. Por fim, busca-se conclusões sobre se obras tais como Klavierstück XI inauguram novas multiplicidades interpretativas ou se reconhecem, exploram e potencializam aspectos há muito tempo latentes na manifestação musical ocidental.

Palavras-chave: Klavierstück XI, Karlheinz Stockhausen, obra aberta,

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Abstract

This thesis addresses the multiplicity inherent in the musical manifestation and result of their performance factors. After the observation of the openings as ambiguities inherent in any artistic message and the performance as the defining moment of a musical work, Klavierstück XI by Karlheinz Stockhausen has been chosen as the object of study, because it is a representative work of the aesthetics of open work, with emphasis in the variables and unpredictability of performance. The work was investigated from its compositional design taking in consideration the musical thought of Stockhausen which determined features of the multiplicity of performance related to the interests of the composer in new conceptions of form and musical time. From this research, Klavierstück XI is observed in the context of performance practices. The thesis also presents strategies for a technical-instrumental work, with a view to providing an interpretative approach more in line with the complex set of routes and connections proposed by the score. Finally, we seek to conclusions about whether such works as Klavierstück XI inaugurate new interpretive multiplicities or explore and enhance features that are implicit in the music for a long time.

Keywords: Klavierstück XI, Karlheinz Stockhausen, open work, musical

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Lista de Figuras

Figura 1 Aus den Sieben Tagen, 1968, p. 5 p. 32

Figura 2 Reprodução reduzida da partitura de Klavierstück XI p. 47

Figura 3 Um dos 19 grupos e sua tripla instrução p. 48

Figura 4 As 19 triplas instruções p. 54

Figura 5 Matriz Rítmica 1 p. 57

Figura 6 Matriz Numérica 1 p. 57

Figura 7 Matriz Numérica 2 p. 58

Figura 8 Processo de reordenação da Matriz Rítmica 1 pela Matriz Numérica 1

p. 59

Figura 9 1a. linha da coluna 6 da Matriz Rítmica Final p. 59 Figura 10 Matriz Rítmica 1, Matriz Numérica 1 e coluna 6 da Matriz

Rítmica Final

p. 60

Figura 11 Definição de número de vozes e de quantidade de notas por

ataque

p. 61

Figura 12 Estrutura rítmica de um dos 19 grupos p. 65

Figura 13 Grupo resultante após a geração das alturas p. 65 Figura 14 Exemplo de notação duracional não mensurada de Louis

Couperin

p. 105

Figura 15 F. Liszt: Sonata em Si menor, compassos finais p. 110 Figura 16 R. Schumann: Humoreske op. 20, compassos 251-274 p. 111 Figura 17 Representação da disposição espacial dos grupos na

partitura Klavierstück XI

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Figura 18 Grupo 13 p.124

Figura 19 Grupo 13 suprido de sobre-notação, extraído da partitura de estudo

p.125

Figura 20 Excerto do grupo 18 p. 127

Figura 21 Excerto do grupo 18, com indicação das quiálteras interrompidas

p. 128

Figura 22 Grupo 2, com a sobre-notação de metrificação p.129

Figura 23 Excerto do grupo 14 p. 130

Figura 24 Representação gráfica do excerto acima, realizada na partitura de estudo

p. 130

Figura 25 Excerto do grupo 18, com indicações de agógica p. 131

Figura 26 Final do grupo 14 p. 132

Figura 27 Representação gráfica da polirritmia implícita na Figura 26 p. 132 Figura 28 Representação gráfica da polirritmia com ênfase nos

ataques prescritos pela estruturação rítmica apresentada pela figura 24

p. 133

Figura 29 Representação gráfica da rítmica apresentada pela Figura 26 p. 133 Figura 30 Grupo 4, representativo da ampla gama de registros p. 134

Figura 31 Início do grupo 2 p. 134

Figura 32 Representação do procedimento de estudo, no qual se preserva as alturas e se desconsidera as estruturas rítmicas

p. 135

Figura 33 Grupo 9 com sobre-notação indicativa de agrupamentos, dedilhados e manulações

p. 135

Figura 34 Grupo de apojaturas com sobre-notação de agrupamentos em moldes

p. 137

Figura 35 Grupo 15, que traz notas losangulares como indicativas do acionamento silencioso das teclas e o favorecimento de ressonâncias

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Figura 36 Grupo 11, submetido à sobre-notação indicativa da aplicabilidade dos citados modos de ataque

p. 145

Figura 37 Tripla instrução do grupo 17 e grupo1 p. 147

Figura 38 Tripla instrução do grupo 4 e grupo 14 p. 147

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Lista de Quadros

Quadro 1 Distribuição igualitária dos 6 graus de tempi p. 52 Quadro 2 Distribuição igualitária dos 6 níveis dinâmicos p. 52 Quadro 3 Distribuição das ocorrências puras dos modos de ataque p. 53 Quadro 4 Distribuição das ocorrências combinadas dos modos de

ataque

p. 53

Quadro 5 Procedimento de geração das alturas para as duas primeiras durações da figura 12

p. 66

Quadro 6 Procedimento de geração das alturas para as duas últimas durações da figura 12

p. 67

Quadro 7 Exemplo de distribuição de seis indicações metrômicas entre os seis graus de tempi

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Sumário

INTRODUÇÃO

p. 1

CAPÍTULO 1 – As Aberturas e o Fechamento da Obra Musical

p. 5

1.1 Aberturas em Música p. 9

1.1.1 Aberturas de Composição p. 15

1.1.2 Aberturas de Performance p. 25

1.1.3 Aberturas de Recepção p. 33

1.1.4 Considerações finais quanto às aberturas p. 35 1.2 O fechamento da obra: considerações sobre a performance

musical a partir do pensamento de Paul Zumthor

p. 37

CAPÍTULO 2 – O projeto composicional de Klavierstück XI:

origens e fundamentos de suas aberturas de performance

p. 43

2.1 Aspectos Gerais de Klavierstück XI: sua notória abertura, suas diretrizes de performance e seus elementos composicionais

p. 47

2.1.1 Composição das triplas instruções p. 51

2.1.2 Composição dos grupos p. 55

2.2 Forma lírica e composição de campos temporais estatísticos p. 68

2.2.1 A abertura resultante da proposta formal de Klavierstück XI: forma lírica e composição por grupos

p. 69

2.2.2 O tempo musical como portador de variáveis de performance essenciais e a composição de campos temporais estatísticos

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CAPÍTULO 3 – O diálogo de Klavierstück XI com as práticas

interpretativas e a performance musical

p. 83 3.1 Considerações acerca das práticas interpretativas e da

performance na Música Erudita Ocidental

p. 86 3.2 Especificidades da performance da música contemporânea p. 101 3.3 Klavierstück XI, prática interpretativa e performance p. 107

3.3.1 Um pensamento composicional que considera a performance p. 107

3.3.2 Uma forma que considera a performance p. 112

3.3.3 Uma notação que considera a performance p. 113

3.3.4 Uma interpretação que considera a performance, porque não? p. 115

CAPÍTULO 4 – Estratégias de aprendizagem e preparo da

performance de Klavierstück XI

p. 119

4.1 Os grupos: leitura e aprendizagem p. 124

4.2 As triplas instruções p. 140

4.3 A forma aberta e as múltiplas interações entre grupos e triplas instruções

p. 143

4.4 Incorporando a multiplicidade p. 149

CONCLUSÃO p. 151

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Introdução

O reconhecimento da manifestação musical como múltipla, dinâmica e em boa parte imprevisível se revelou de forma contundente nos anos 1950, quando recursos composicionais envolvendo as noções de obra aberta, acaso e indeterminação desafiaram o entendimento de obra musical como algo plenamente concluso e determinável. Este renovado olhar à obra musical fomentou pesquisas composicionais direcionadas sobretudo à música instrumental1, explorando e potencializando um aspecto a ela latente e essencial: sua variabilidade em performance.

Com o intuito de investigar as implicações destas novas posturas às práticas interpretativas e à performance2, esta tese acatou como objeto de estudo Klavierstück XI, obra composta por Karlheinz Stockhausen em 1956 e emblemática da poética da obra aberta. Nossa principal indagação é sobre como os fatores da interpretação musical e da performance foram considerados no planejamento composicional da obra e, em reciprocidade, quais são os contributos desta à performance e à interpretação. Em última instância, é um questionamento sobre o que foi proposto de inaugural e o que emerge como

1

Neste trabalho, onde lê-se música instrumental, entenda-se música instrumental e vocal, ou seja, música transmitida por meio da interpretação musical tradicional em oposição às vertentes musicais fundamentadas no suporte e transmissão musical por meios eletrônicos.

2

É pertinente já estabelecermos a nossa distinção, essencial a este trabalho, entre interpretação musical e performance. Em nosso entendimento, a expressão interpretação (e por conseguinte práticas interpretativas) alude às atividades do intérprete musical (sua execução musical, mas também seus estudos, suas análises, suas reflexões e concepções musicais) que concorrem para uma realização sonora particular a partir do proposto por um determinado texto musical. Performance, por sua vez, é o momento global de enunciação e, não se restringindo às atividades do intérprete, abarca todo o contexto situacional da manifestação musical, das quais participam texto (e por meio deste o compositor), intérprete, ouvinte e situações e contingências ambientais. Maiores definições sobre a noção de performance acatada por este trabalho serão posteriormente oferecidas.

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2

potencialização de aspectos há muito tempo latentes na chamada música de concerto ocidental.

São, portanto, nossos objetivos investigar as considerações de performance em Klavierstück XI, percorrendo um caminho que parte de uma contextualização da poética da obra aberta para avançar à investigação da performance enquanto momento definidor da obra musical, ao estudo sobre o planejamento composicional de Klavierstück XI e sua consideração dos fatores de performance, à observação do diálogo de Klavierstück XI com as práticas interpretativas e, por fim, ao estabelecimento de estratégias de preparo da interpretação da obra diante de suas peculiaridades de notação, de escritura, de forma e de tratamento do tempo musical.

A configuração da tese – a distribuição de seus capítulos e seus respectivos conteúdos – reflete o caminho e os meios assumidos para o alcance dos objetivos propostos, na medida em que resultou dos procedimentos metodológicos e da fundamentação teórica acatados.

O primeiro capítulo – As aberturas e o fechamento da obra

musical – parte do reconhecimento das ambiguidades enquanto aberturas

inerentes a toda mensagem artística, e se fundamenta em um dos títulos referenciais a este assunto: Obra Aberta (Eco, 1991). Posteriormente, considera as aberturas em música, tendo em vista as especificidades desta expressão artística, para o que considera os pensamentos documentados de compositores representativos do período histórico e musical em questão, dentre os quais John Cage, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio, Pierre Schaeffer e György Ligeti. Por fim, considera a performance enquanto momento integralizador da obra musical, a partir de um estudo sobre a abrangente noção de performance acatada por Paul Zumthor e explícita em Escritura e Nomadismo: entrevistas e ensaios (2005) e Performance, Recepção e Leitura (2007).

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3

O segundo capítulo – O projeto composicional de Klavierstück XI:

origens e fundamentos de suas aberturas de performance – efetua um estudo

específico sobre a obra, com o intuito de nela reconhecer a previsão e a exploração de fatores imponderáveis de performance pelo planejamento composicional. Parte da consideração do aspecto mais notório da obra – sua peculiaridade de forma, de partitura e de procedimentos de performance – e de um reconhecimento dos mecanismos composicionais assumidos na geração das suas estruturas, para o que foi fundamental a observação dos estudos efetuados por Stephen Truelove e expostos no artigo The Translation of Rhythm into Pitch in Stockhausen’s Klavierstück XI (1998) e na Tese de Doutorado Karlheinz Stockhausen's Klavierstück XI: an analysis of its composition via a matrix system of serial polyphony and the translation of rhythm into pitch (1984). Posteriormente, reconhece aspectos essenciais do planejamento composicional que originou Klavierstück XI, com o intuito de enfatizar previsões menos explícitas – mas profundamente efetivas – dos fatores de performance, vinculadas sobretudo às pesquisas de seu compositor sobre uma nova concepção do tempo musical que se coaduna à busca por novos caminhos à música instrumental. Para tanto, foi fundamental a observação dos posicionamentos do compositor, explicitados pelos seus próprios textos – dos quais ...how time passes..., de 1957, emerge como principal referência – ou em depoimentos a outros autores.

O terceiro capítulo – O diálogo de Klavierstück XI com as práticas

interpretativas e a performance musical – propõe a observação de Klavierstück

XI no contexto das práticas interpretativas. Partindo do reconhecimento de aspectos fundamentais da interpretação e da performance na música erudita ocidental, busca reafirmá-los enquanto fatores provedores de dinamismo na obra musical. O estudo de títulos como O Combate entre Cronos e Orfeu: ensaios de semiologia musical aplicada (Nattiez, 2005), Entre o processo e o produto: música e/enquanto performance (Cook, 2006), Notação, Representação e Composição (Zampronha, 2000) e A Partitura como espírito sedimentado: em torno da teoria

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da interpretação musical de Adorno (Carvalho, 2003) foram valiosos para o entendimento da performance como o fator que mergulha a obra musical na temporalidade e suas contingências, confrontando a noção de obra enquanto objeto estático e acrônico. Após algumas considerações sobre especificidades da prática interpretativa e performance na música contemporânea, este capítulo se encerra com a observação da postura interpretativa proposta por Klavierstück XI.

O quarto e último capítulo – Estratégias de aprendizagem e preparo

da performance de Klavierstück XI – aborda assuntos mais pragmáticos acerca

do estudo técnico-instrumental da peça diante de suas características de escritura e de notação, fundamentando-se na nossa própria experiência interpretativa com a obra, conciliada a considerações efetuadas em capítulos anteriores. Trata-se de um capítulo que, mesmo reconhecendo que os procedimentos envolvidos no preparo interpretativo de uma obra não são integralmente passíveis de descrição e documentação, bem como são particulares a cada instrumentista, entende a importância de se compartilhar o percurso e os meios assumidos na busca por uma interpretação musicalmente efetiva, sobretudo diante de obras que demandam o desenvolvimento de novas posturas de estudo, como é o caso de Klavierstück XI.

Por fim, esta tese foi estimulada pela crença de que a abordagem do fato musical pode ser favorecida por estudos sobre a interpretação e a performance, com vistas às pluralidades nelas envolvidas, que colaboram para o entendimento de música como uma expressão viva, mutante e dinâmica.

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Capítulo 1

As Aberturas e o Fechamento

da Obra Musical

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As práticas e reflexões artísticas que emergiram no decorrer do século XX – mais precisamente no pós-guerra – direcionaram um olhar cada vez mais atento à questão das multiplicidades e ambiguidades oferecidas por toda manifestação artística, cuja implicação foi uma postura não apenas mais permissiva, mas sobretudo mais exploratória diante das chamadas aberturas. A categórica observação de Umberto Eco (1991, p. 25), segundo a qual “a abertura, entendida como ambiguidade fundamental da mensagem artística, é uma constante de qualquer obra em qualquer tempo” é sintomática desse reconhecimento. Entretanto, a idéia de abertura não se restringiu ao terreno das multiplicidades na recepção da mensagem artística e avançou aos domínios tanto dos processos criativos como das resultantes formais e constitutivas das obras. Assim, se o ideal que mais se oferecia aos artistas de séculos anteriores era o da obra fechada, unívoca e cristalizada, poéticas surgidas no século XX assumiram uma postura cada vez mais especulativa em relação à questão das aberturas em arte, as quais passaram a ser amplamente consideradas durante o processo criativo e foram amplificadas ao ponto de relativizar o próprio conceito tradicional de obra de arte.

Dentre as artes, a música de concerto ocidental revelou-se muito permeável às aberturas, especialmente pelo fato de se apresentar como uma forma de expressão artística performativa e com alto grau de mediação, na qual – tradicionalmente – o compositor se expressa ao público por intermédio de um intérprete, e ao intérprete por intermédio de um texto notado (a partitura). No primeiro subcapítulo – Aberturas em Música –, examinaremos as possibilidades de ocorrência e inserção de aberturas nesta cadeia de transmissão, as quais estabelecem um fértil terreno de reflexão a considerar composição, performance, recepção, e sobretudo as interseções entre estas áreas da manifestação musical. No segundo subcapítulo – O fechamento da obra: considerações sobre a

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performance musical a partir do pensamento de Paul Zumthor3 – buscaremos compreender a performance como o momento global de apresentação da obra, o qual envolve tanto sua transmissão como sua recepção e promove seu fechamento, ou seja, sua conclusão e sua atualização por meio de uma realização concreta sempre singular.

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Medievalista suíço-canadense nascido em 1915, também poeta, romancista e estudioso das poéticas vocais, sobretudo da poesia medieval. Suas pesquisas referentes à noção de performance, especialmente a vocal, enquanto momento cristalizador da forma de uma obra artística proliferaram em profundas considerações acerca de recepção, leitura, obra, texto,

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1.1 Aberturas em Música

A observação das aberturas, entendidas como ambiguidades de variadas ordens inerentes às mais diversas manifestações artísticas, representa um assunto já vastamente explorado, abordado tanto por importantes estudos como por obras artísticas referenciais. Ainda assim, continua a fomentar questões dificilmente solúveis, uma vez que envolve aspectos da criação, da transmissão e da recepção artísticas que se mantêm irredutíveis a análise.

A abordagem deste assunto requer, de início, o importante discernimento entre a presença involuntária e inevitável de ambiguidades em quaisquer manifestações artísticas e a aceitação e exploração consciente e deliberada de suas potencialidades tal qual fizeram muitas poéticas a partir de meados do século XX. Isto porque, em épocas passadas, as inevitáveis aberturas inspiraram justamente a busca por artifícios que as mascarassem, tal qual observou Umberto Eco, um dos autores pioneiros nesta temática. Após ressaltar que o peso da quota subjetiva na relação de fruição (uma relação interatuante entre o sujeito que ‘vê’ e a obra enquanto dado objetivo) não passou despercebido aos Antigos, Eco (1991, p. 42) salienta que:

“é ponto pacífico que tais convicções levaram a agir justamente em oposição à abertura e a favor do fechamento da obra: os vários artifícios de perspectiva representavam exatamente outras tantas concessões feitas às exigências da situacionalidade do observador para levarem-no a ver a figura no único modo certo possível, aquele para o qual o autor (arquitetando artifícios visuais) procurava fazer convergir a consciência do fruidor”.

Esta busca pela univocidade da mensagem artística foi abandonada por muitas das poéticas surgidas no século XX, sobretudo a partir do pós-guerra, quando o ideal de obra de arte enquanto objeto finalizado, estático e até mesmo persuasivo em relação a quem o observa deixou de ser tão preponderante,

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abrindo terreno a posturas ousadas diante das variadas possibilidades de aberturas e de jogos entre os aspectos dinâmicos da obra e as impredizíveis variáveis de enunciação e recepção.

O livro Obra Aberta – lançado em 1962 e constituído de ensaios que Umberto Eco apresentara quatro anos antes – está entre as pesquisas inaugurais e até hoje referenciais sobre a noção de obra aberta e tem profundas aproximações com a música: expõe os resultados de uma investigação que, como lembra o próprio autor, se originou de discussões sobre a música nova com Luciano Berio, Henri Pousseur e André Boucurechliev (Eco, 1991, p. 36). Contempla obras como Klavierstück XI de Karlheinz Stockhausen e Troisième Sonate de Pierre Boulez, as quais haviam sido recém-lançadas e tornaram-se representativas daquele momento da história da música no qual as pesquisas com a forma aberta, a indeterminação e o acaso estavam entre as preocupações capitais de muitos compositores.

Uma das principais idéias propostas por Eco (1991, p. 136) é o reconhecimento, considerando os mecanismos de integração no processo de fruição, de duas linhas de desenvolvimento de aberturas, com a definição de dois graus:

“a) Interpretado em termos psicológicos, o prazer estético – como se realiza diante de toda obra de arte – baseia-se nos mesmos mecanismos de integração e completamento que se revelaram típicos de todo processo cognoscitivo. Esse tipo de atividade é essencial ao gozo estético de uma forma: trata-se do que já chamamos de abertura de primeiro grau.

b) O problema das poéticas contemporâneas é o de enfatizar esses mecanismos e fazer que o gozo estético consista não tanto no reconhecimento final da forma quanto no reconhecimento daquele processo continuamente aberto que permite individuar sempre novos perfis e novas possibilidades de uma forma. Trata-se do que chamamos de abertura de Trata-segundo grau”.

Dito de outro modo, as aberturas de primeiro grau dizem respeito às multiplicidades que atuam no processo de recepção de toda e qualquer mensagem

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artística e se manifestam em quaisquer obras – inclusive naquelas que se pretendem fechadas e concluídas quanto a forma, estruturação, organização e ordenação de seus elementos constitutivos. As aberturas de segundo grau atuam especialmente em obras que deliberadamente expandem a abrangência da noção de abertura a ponto de não mais restringi-la à recepção, possibilitando seu avanço aos domínios da forma, seleção e ordenação de materiais.

Este segundo grau de aberturas foi explorado por poéticas do século XX que fomentaram noções tais como as de work in progress e obra aberta. Entretanto, trazido ao território da música, resvala em algumas supostas inconsistências: como pode ser percebido este grau de abertura se o receptor não isufrui de um contato imediato com a obra, mas se relaciona com ela por meio de um mediador, um transmissor, um intérprete4? Observa-se que, se o intérprete percebe (e interage com) essas aberturas, o ouvinte fica em grande parte alheio a elas: recebe sempre o “resultado já unívoco de uma seleção definitiva” (Eco, 1991, p. 39) e, não podendo escutar a abertura, acata a versão a ele transmitida como se fosse uma obra formalmente fechada. Daí a crítica de Luciano Berio (2006, p. 81):

“O problema é que este tipo de multiplicidade formal é algo aristocrático, pois só pode ser percebido pelo compositor, pelo intérprete, ou por alguém que tenha tido a oportunidade de ouvir duas interpretações ou versões da mesma obra sucessivamente”. Tais questionamentos impõem a necessidade de uma observação das aberturas na música de concerto ocidental que considere as especificidades desta expressão artística, a qual promove um alto grau de mediação entre o compositor e o ouvinte que envolve notação e interpretação musicais. É preciso considerar todos os aspectos envolvidos neste jogo para vislumbrar os espaços oferecidos às aberturas nesta cadeia de transmissão, considerando os três momentos que tradicionalmente completam a manifestação musical ocidental – composição

4

Salienta-se que os termos intérprete e interpretação serão, neste trabalho, sempre empregados na acepção que tradicionalmente recebem em música, a saber: respectivamente o músico “executante” e sua atividade.

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(concepção), interpretação (enunciação/transmissão) e recepção (fruição) – e seus quatro agentes: compositor, partitura, intérprete e ouvinte.

Propomos, portanto, a classificação das aberturas em: Aberturas de

composição, Aberturas de performance e Aberturas de recepção,

considerando não os momentos nos quais elas surgem (posto que é cogitável que todas apresentem um germe já no início do projeto composicional – ou até mesmo antes), mas aqueles nos quais elas são solucionadas. Busca-se, com esta proposta de classificação, uma orientação mais segura neste terreno ardiloso das aberturas, o qual oferece várias armadilhas terminológicas e conceituais, sobretudo quando se trata de acaso e indeterminação.

Salienta-se que a literatura sobre o assunto não estabelece uma uniformidade na utilização de tais termos, e a confusão se impõe quando confrontamos as várias fontes. Se tentarmos conjugar as opções terminológicas assumidas por cada uma delas, corremos o risco de concedermos a estes termos acepções tão genéricas a ponto de lançá-los num imenso campo indiferenciado, no qual todos se tornam igualmente relacionáveis a quaisquer tipos de aberturas. Cabe, portanto, fazermos aqui um breve desvio para delimitarmos a abrangência que este trabalho confere a cada um destes termos, antes de tratarmos de cada uma das categorias de aberturas em música aqui propostas.

O conceito de acaso, já no início de sua aplicação em música, sofreu uma bifurcação decisiva, da qual derivaram duas linhas principais de desenvolvimento que polarizaram suas aplicações iniciais em dois compositores: John Cage e Pierre Boulez5. Uma linha – a do acaso absoluto (chance) – se refere ao acaso cageano e propõe procedimentos que buscam reduzir ou mesmo eliminar o controle e a interferência do compositor nas definições durante o

5

A proximidade e o posterior distanciamento entre os pensamentos de John Cage e Pierre Boulez acerca da noção de acaso estão bem documentados nas correspondências entre estes dois compositores, compiladas por Jean-Jacques Nattiez em The Boulez-Cage Correspondence (1994).

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processo composicional. Recorrências ao I Ching, lances de moedas e adoção das imperfeições do papel como agentes determinadores no processo composicional podem ser citados dentre os procedimentos acatados por Cage. Outra linha é a do acaso controlado, proposto por Boulez e ao qual está mais vinculado o adjetivo aleatório. Trata-se de uma proposta de controle e direcionamento do acaso, resultante tanto de automatismos numéricos, permutações, como de concessão de delimitada mobilidade à forma, da qual resulta uma forma labiríntica de circuitos diversos – porém previstos – como uma ampliação da própria noção de permutação.

Entretanto, e justamente neste ponto emergem as maiores confusões, estas noções de acaso não implicam necessariamente em indeterminação, posto que o acaso de Cage, circunscrito ao processo composicional, não deixa de ser um recurso determinador e não impede que a obra se apresente a seu intérprete fechada e concluída quanto à seleção e ordenação de seus elementos constitutivos, da mesma forma em que a noção de acaso de Boulez envolve previsões, delimitações e, sobretudo, determinações de possibilidades.

Por outro lado, é preciso que fique claro que o termo indeterminação, tal qual proposto por Cage no texto Indeterminacy (1966), estabelece desde sua acepção original uma relação com liberdades concedidas à interpretação e ao

momento de performance, ou seja, com a recusa do compositor em assumir

certas escolhas, transferindo-as àquele a quem cabe interpretar a obra ou à situação global de performance. Com isso, indeterminação envolve sobretudo ambiguidades deliberadas por meio do sistema de notação musical acatado, com a utilização de signos que ampliam em alto grau as margens de interpretação, bem como a recorrência a elementos gráficos ou textuais que buscam expandir o horizonte de escolhas do intérprete. Em via inversa, importa aqui também estabelecer que indeterminação, enquanto ampla consideração da multiplicidade que envolve a atividade do intérprete, não implica necessariamente em acaso (e

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tampouco em improvisação), posto que as escolhas do intérprete podem ser por ele cuidadosamente planejadas.

É pertinente a consideração de que a indeterminação não se restringe às poéticas do século XX, já que o próprio Cage a reconheceu em obras de épocas passadas (o compositor cita, por exemplo, a indeterminação resultante da não prescrição de instrumentos na Arte da Fuga de Johann Sebastian Bach). Entretanto, se podemos reconhecer a presença da indeterminação em qualquer texto musical de qualquer época (posto que da própria notação musical emerge sempre, em algum grau, o indeterminado) o mesmo não se aplica à poética da

indeterminação, ou seja, ao uso deliberado das potencialidades da

indeterminação como postura composicional. Com isso, da mesma maneira que Eco (1991, p. 45) considerou “leviano ver na poética barroca uma teorização consciente da obra ‘aberta’”, evitaremos aqui o reconhecimento de uma poética da indeterminação em períodos anteriores à década de 1950.

Feitas estas considerações acerca de acaso e indeterminação, propomos a classificação das aberturas em música em:

Aberturas de Composição: se restringem ao processo composicional

e são oriundas tanto das multiplicidades e imprevisibilidades inalienáveis a todo processo criativo como da franca utilização do acaso como agente decisório.

Aberturas de Performance: se estendem ao momento de enunciação da

obra e são representadas por diversas ordens de liberdades ou imponderabilidades concedidas à performance musical, tais como as aberturas formais, os diversos recursos de indeterminação e até mesmo a utilização do silêncio como via de acesso de sons ambientais, não intencionais e portanto imprevisíveis.

Aberturas de Recepção: as que Eco classificou como aberturas de

primeiro grau, surgidas do dinamismo e das multiplicidades inerentes a todo processo de recepção de uma mensagem artística.

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Abordaremos a seguir cada uma destas categorias de aberturas.

1.1.1 Aberturas de composição

Se o termo abertura compreende multiplicidade de caminhos e resultados, a composição é – tanto quanto qualquer outro processo criativo – essencialmente aberta e imponderável. Incontáveis são os compositores que não apenas reconhecem este aspecto como inerente ao processo composicional, mas o consideram terreno extremamente fértil. Luciano Berio (2006, p. 93) se insere entre eles ao afirmar que

“toda forma de criação musical é, por natureza, aberta, e que o fascínio dos estudos que analisam os itinerários criativos de grandes mentes musicais (Beethoven, por exemplo) não reside apenas em relatar as escolhas criativas feitas, mas acima de tudo na descrição da habilidade do compositor de descobrir uma coisa quando ele estava procurando por outra”.

Tal declaração se afina ao pensamento de Pierre Boulez, para quem o imprevisível é inerente a todo processo composicional, por ser “impossível prever todos os meandros e todas as possibilidades contidas no material inicial” (1995, p. 46). Em afinidade a esta linha de pensamento está o entendimento – ainda que negativo – de Sigmund Freud (1996, p. 118), de que “infelizmente o poder criativo de um autor nem sempre obedece à sua vontade: o trabalho avança como pode e com frequência se apresenta a ele como algo independente ou até mesmo estranho”. É também curioso que, oportunamente, Pierre Schaeffer questionou este incômodo de Freud diante da autonomia da obra em criação: “Porque qualificar esta situação de desgraçada? Se essa obra resiste e se eleva ao ponto

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de parecer independente, porque não se alegrar com isso?” (1998, p. 325)

Evidentemente, esta noção de processo criativo como mecanismo aberto, aqui aplicada à música, é verificável também em outras áreas artísticas, do que é testemunho a noção de disponibilidade apresentada por Federico Fellini (apud Zampronha, 2000, p. 254-255):

“Diria que é necessário ficar disponível para a coisa que está nascendo e que ainda é informe, magmática, não definida, e que o criador, que é chamado para materializar, definir, propor um certo mundo confuso, um certo sentimento que pertence a uma certa dimensão, que é chamado a pintar esse quadro, a compor essa ópera, a escrever esse livro, a fazer esse filme, deve conservar uma certa disponibilidade. Eis a palavra. Ficar disponível para tudo que esse fantasma, essa criatura que começa a aparecer sugere. Não se entorpecer na pretensão de querer criar exatamente tal como se imaginou, segundo os esquemas, os parâmetros de sua própria cultura, de sua própria ignorância, de sua própria ideologia, política ou estética, mas de se entregar confiante às sugestões que a criatura pode fazer, mesmo através de incidentes – a doença de um ator que desaparece, com o qual não podemos mais contar, uma desavença ainda mais violenta com o produtor, o fato de você mesmo cair doente -, tudo pode ser interpretado em seguida como pausas, contrariedades necessárias, porque você não teria pensado nisso se não tivesse tido essa disponibilidade, esse ouvido, esse olho atento ao processo que se define dia após dia”.

Ao presente trabalho, importa, em primeiro lugar, estabelecer que as aberturas de composição são restritas ao âmbito do processo criativo e não se oferecem – enquanto aberturas – à situação de performance. São encerradas no momento em que a composição está concluída e não impedem que a obra se apresente ao intérprete e ao ouvinte finalizada quanto a seus resultados formais, estruturais e constitutivos. Em segundo lugar, importa ressaltar que a observação das aberturas de composição requer um foco sobre o controle composicional e, portanto, sobre os questionamentos a ele lançados na década de 1950, aos quais se vincularam tanto os automatismos gerados por métodos composicionais – sendo o serialismo o mais difundido deles – como a emergência das noções de

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17 acaso e indeterminação em música.

Buscava-se, naqueles anos, minimizar a interferência do compositor – tida como arbitrária e subjetiva –, de maneira a despersonificar o processo e o resultado composicional. Assim, se a música ocidental já conheceu o anonimato dos períodos pré-clássicos, que se fundamentava na adoção despretenciosa de padrões estilísticos coletivizados que anulava a individualidade artística, agora assistia a um pseudo-anonimato que, sem remover a assinatura autoral, buscava deliberadamente mascarar traços estilísticos, em uma década na qual “a noção de estilo foi ideologicamente rotulada como um produto pervertido do mercado cultural” (Berio, 2006, p. 21). Com isso, processos autômatos ganharam força, alimentados por “uma recusa selvagem do arbitrário”, então tido como “o novo diabolus in musica” (Boulez, 1995, p. 44), bem como pela ascensão do que Schaeffer (1998, p. 22) classificou como “músicas a priori, nas quais a preocupação dominante parece ser o rigor intelectual, com um total domínio da inteligência abstrata sobre a subjetividade do autor e sobre o material sonoro”.

É curioso que tais aspectos contribuiriam para a emergência das noções de acaso em música, da indeterminação e da forma aberta como pontos a serem inevitavelmente alcançados, aos quais muitas poéticas musicais caminhavam desde o desvanecimento das sensações de causalidade, linearidade, previsibilidade, sintaxe e até mesmo narratividade que norteavam tanto a criação como a escuta tonais6.

Até mesmo o serialismo – que se estabeleceu como principal diretriz composicional do pós-guerra – efetuaria uma acentuada aproximação com a

6De fato, o abandono das previsibilidades formais e harmônicas proposto por compositores como

Claude Debussy e Igor Stravinsky já prenunciava a emergência das futuras propostas de forma aberta. Carole Gubernikoff (1995, p. 80) salienta esta visão, acerca da música de Debussy: “A tomada de posição harmônica de Debussy lhe permitiu uma grande liberdade formal. É o que Barraqué chama de ‘Nascimento da Forma Aberta’, que por suas características possibilitou, na segunda metade do século XX, tanto o desenvolvimento das ‘obras abertas’, quanto as formas em ‘mosaico’ – através de conceitos tais como ‘momento’ e ‘labirinto’ – no sentido da montagem e justaposição das partes”.

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noção de acaso em música, não só pelo que propõe de automatismo, mas, sobretudo, porque nas composições seriais mais rigorosas, a máxima diferenciação entre os eventos sonoros podia exceder a tal ponto os horizontes perceptivos e os alcances de nossa memória que o resultado se apresentava como uma sequência de eventos absolutamente imprevisíveis. Esta imprevisibilidade resultante, tanto quanto o automatismo no processo composicional, não apenas aproximou serialismo e acaso, mas relativizou de tal modo a importância das decisões composicionais que despertou a preocupação de diversos compositores (dentre os quais o próprio Boulez!) diante do risco de um desvanecimento da noção de criação musical:

“Quando começamos a generalizar a série para todos os componentes do fenômeno sonoro, nós nos atiramos de corpo inteiro – ou melhor, de ponta-cabeça – nos números, abarcando atabalhoadamente matemática e aritmética elementar (…). Finalmente, de tanto pré-organizar o material, de ‘pré-constrangê-lo’, desembocara-se no absurdo total: numerosas tabelas de distribuição necessitavam de tabelas de correção, em número mais ou menos equivalente, de onde resultaria uma balística da nota; para acertar, era preciso retificar! (...). Cada sistema, cuidadosamente centralizado em si mesmo, não podia suportar os outros, realizar-se com eles, a não ser em miraculosas coincidências. Além disso, as obras deste período manifestam uma extrema rigidez em todos os domínios da escrita; os elementos esquecidos na distribuição das grades pelo compositor e sua varinha mágica, no nascimento da obra, resistem, de maneira veemente, à ordem estranha, hostil, que lhes é imposta; vingam-se à sua moda: a obra não chega a se organizar segundo uma coerência probatória, ela soa mal; sua agressividade não é sempre deliberada. Encerrada nesta rede de opressões, seria difícil não se sentir um joguete da lei dos grandes números; finalmente, toda escolha não tinha senão uma importância relativa, chegando tão-somente a cortar uma fatia de acaso. Essa tentativa poder-se-ia chamá-la de uma transferência para os números; o compositor fugia de sua responsabilidade na escolha, a determinação, para transferi-la a uma organização numérica, bem incapaz disto; ao mesmo tempo ele se sentia maltratado por uma organização dessa natureza, no sentido de que ela o fazia depender de um absurdo constrangedor” (Boulez, 1986, p. 23-24). Entretanto, tais preocupações com as ameaças daquilo que

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considerava um fetichismo dos números e suas aproximações com o acaso não conduziram Boulez a uma recusa do acaso, mas justamente à proposição de um direcionamento deste, tal qual sugerido em seu artigo Alea (1957): um acaso que não substitua o pensamento criador e tampouco sufoque a invenção, mas que se some a ela e se integre à noção de estrutura planejada, conferindo mobilidade ao estado global de homogeneidade resultante da escrita serial. O compositor percebeu bem a impossibilidade de eliminar o acaso da criação musical:

“quanto menos se escolhe, tanto mais a possibilidade única depende do puro acaso do encontro dos objetos; quanto mais se escolhe, tanto mais o acontecimento depende do coeficiente de acaso implicado na subjetividade do compositor” (Boulez,1995, p.50).

Com isso, sua proposta foi a de uma forma permeável ao acaso, representada muito bem pela sua Troisième Sonate, na qual são meticulosamente planejados pontos de junção, plataformas de bifurcação e elementos móveis suscetíveis de adaptação:

“certo número de acontecimentos aleatórios inscritos numa duração móvel, com uma lógica de desenvolvimento e um sentido global definido, respeitando o que a obra ocidental tem de ‘acabado’, mas introduzindo a ‘possibilidade’ da obra oriental, seu desenvolvimento aberto” (Boulez, 1995, p. 52).

Esse respeito preservado pelo “acabamento” da obra ocidental é precisamente o que difere a utilização do acaso proposta por Boulez daquela pregada na mesma época por John Cage. Este foi um dos aspectos determinantes no obscurecimento das afinidades que estes dois compositores pareciam compartilhar antes das divergências acerca da inserção da noção de acaso em música. Até a composição de Music of Changes – obra de 1951 na qual Cage empregou pela primeira vez o acaso por meio de recorrências ao I Ching – as afinidades entre Boulez e Cage eram manifestas: Cage se declarava atraído pelos processos autômatos da música de Boulez (nos quais reconhecia uma certa impessoalidade composicional pela qual ele próprio buscava em seus métodos)

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tanto quanto Boulez se interessava pelas estruturas rigorosas presentes nas obras de Cage (especialmente as duracionais, resultantes de relações numéricas). Mas a rejeição de Boulez diante do tipo de inserção do acaso proposto por Cage em Music of Changes foi explícita:

“Tudo o que você diz sobre tabelas de sons, durações, amplitudes, usadas em sua Music of Changes se encontra, como você verá, exatamente nas mesmas linhas com as quais eu estou trabalhando no momento. (...) A única coisa, perdoe-me, que não me agrada é o método de acaso absoluto (por lances de moedas). Ao contrário, eu acredito que acaso deve ser extremamente controlado: por meio de tabelas em geral, ou séries de tabelas, eu acredito que seria possível direcionar o fenômeno do automatismo do acaso, quer escrito ou não” (Boulez em Nattiez, 1993, p. 112). Por sua vez, Cage se oporia a este direcionamento proposto por Boulez, e acusaria o compositor francês de “se apropriar da noção de acaso para seus próprios fins” (Cage em Nattiez, 1993, p. 20). Ao contrário de Boulez, Cage não pretendia, com sua utilização do acaso, ampliar o campo de possibilidades oferecidas até então pela composição ocidental, mas sim negar essa tradição musical, abalar o que entendia como aspectos formais essencialmente convencionais da música européia e sobretudo questionar aquilo que considerava como o arquétipo de obra musical ocidental: “a apresentação de um todo como um objeto no tempo que tem começo, meio e fim” (Cage, 1966, p. 36). A recusa às tomadas de decisões representada pelo acaso cageano buscava em última instância uma liberação dos sons, como se cada evento sonoro pudesse comportar em si uma relevância que não dependesse de relações estruturais ou articulações com demais eventos: libertar os sons das atividades do compositor e, sobretudo, dos direcionamentos que a tradição musical, em diferentes graus, exerce no pensamento composicional.

Este pensamento norteou, além do próprio Cage, compositores norte-americanos como Earle Brown, Morton Feldman e Christian Wolf, os quais almejavam a façanha de propor um “marco zero” de uma nova prática musical,

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rejeitando qualquer valor que a técnica, a estruturação, o métier e as tradições composicionais pudessem ainda representar, e libertando os sons de qualquer idéia de semântica, de emoção, de causalidade ou de linearidade. Um dos primeiros reflexos desta busca foi uma aparente simplificação e democratização do processo composicional. Liberta das exigências técnicas que a tradição composicional européia impunha, a composição parecia ter se tornado algo extremamente simples e acessível a todos. Foi justamente este aspecto da música destes compositores que despertou desconfianças e críticas às idéias deste grupo, às quais Cage ironicamente rebatia: “Há pessoas que dizem, ‘se música é isto tão fácil de escrever, eu poderia fazê-la’. É claro que poderiam, mas não fazem” (Cage apud Brindle, 1987, p. 127).

Era inevitável que este grupo de compositores experimentais se interessasse pelas atividades dos pintores da chamada New York School e pelo expressionismo abstrato, o qual se alinhava à postura surrealista de recusar qualquer controle exercido pela razão na busca por um automatismo psíquico. Sobretudo, tais compositores viam nas atividades destes pintores uma prática artística realmente original. Segundo Morton Feldman (apud Brindle, 1987, p.126):

“Qualquer um que estivesse às voltas, no início dos anos 50, com os pintores viu que esses homens começaram a explorar suas próprias sensibilidades, suas próprias linguagens plásticas, (...) com completa independência em relação a outras artes, completa segurança em trabalhar com o que era desconhecido a eles.(...) Isso era uma realização estética fantástica. Eu sinto que John Cage, Earle Brown, Christian Wolf e eu estamos muito neste espírito particular”.

A estes compositores, a ausência de uma tradição artística norte-americana tão sólida quanto a européia, tanto nas artes visuais quanto na música, foi acatada não como uma deficiência, mas como um impulso ao surgimento de poéticas novas e autônomas. Evidentemente, houve artistas europeus que não reconheceram legitimidade nesta alegada autonomia, tais como Karlheinz Stockhausen, que classificou o expressionismo abstrato americano como um

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resultado da influência do tachismo da Escola de Paris, com origens que remontam a Alfred Otto Wolfgang Schulze (Wols), e mesmo a Paul Klee, e seus usos de gotejamento, rabiscos, técnicas aleatórias e tachísticas:

“Portanto, a reinvidicação de que o expressionismo abstrato é um fenômeno completamente americano, o qual as pessoas hoje tentam justificar filosoficamente falando de operações do acaso e de I-Ching e de Zen Budismo e assim por diante – tudo isso é apenas uma tentativa de estabelecer uma fundação Americana para uma estrutura Européia que já estava pronta” (Stockhausen, 1989, p. 141).

Percebe-se nessas discussões uma notória motivação política: a disputa pela autoria, descoberta ou propriedade da noção de acaso em música. Trata-se de um ingrediente importante no embate entre o desejo norte-americano de inaugurar práticas artísticas realmente originais e a tendência dos compositores europeus por estabelecer uma fundamentação européia para os procedimentos de acaso e manter sob controle seus aspectos potencialmente destrutivos diante das noções estabelecidas de compositor, composição e obra musical. Assim, as divergências apresentadas acerca da noção de acaso e de seu emprego refletem, em grande parte, o interesse de compositores por assumirem argumentos que vinculassem o acaso a suas próprias diretrizes composicionais. Com isso, se o acaso controlado proposto por Boulez representou o desenvolvimento lógico das artes européias, conjugando-se a poéticas como as de Stéphane Mallarmé e James Joyce, bem como à noção de obra aberta proposta por Umberto Eco, o acaso absoluto de Cage assumiu feições bem mais iconoclastas diante dos aspectos tradicionais presentes na música ocidental, incorporando elementos de orientalismo e contracultura.

Neste ponto, vale salientar a importância de compositores que não se afeiçoaram a nenhuma destas duas propostas, seja por não sentirem a necessidade de uma radical renovação na noção de composição musical, seja por visualizarem um outro caminho para tal renovação. Berio se encontra no primeiro

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caso, tendo mantido sempre um posicionamento crítico diante de recursos que abalam as atribuições composicionais, tais como indeterminação, improvisação, acaso e forma aberta. Diante das propostas de Boulez e de Cage, Berio (2006, p. 87) posicionou-se a favor do comprometimento decisório do compositor em todos os níveis da criação:

“Em qualquer das situações – a das séries generalizadas ou a da indeterminação e do acaso – é sempre o detalhe que é deixado de lado: justamente o detalhe que, mais do que qualquer outro fator, representa a completude, a significância e a dignidade da obra musical. No primeiro caso o fetichismo do detalhe, saturado de informação, frequentemente torna a performance e a escuta quase impraticável; no segundo caso a indiferença ao detalhe transforma a obra em si em um detalhe anormalmente inchado cujo resultado em termos de som pode aqui e acolá ser mais envolvente por conta das associações que evoca (nuvens, vento, mar, campos de verão)”.

György Ligeti também divergiu dos métodos de acaso. Isto é manifesto em seu texto Metamorfose da Forma Musical7, no qual propôs reflexões acerca da forma musical, a seu ver sufocada por aspectos entendidos como nocivos da composição serial. Uma das alternativas reconhecidas por Ligeti às problemáticas do serialismo mais rigoroso foi justamente a aplicação dos princípios seriais não mais a categorias elementares, mas a categorias globais, tais como densidade, registro, âmbito e textura, de maneira a restituir o detalhamento dos momentos individuais à determinação do compositor. Ainda que este posicionamento se afine aos de Boulez, dele se desprende uma divergência essencial, a qual resulta na crítica de Ligeti (2001, p. 136) às citadas obras abertas:

“Esta idéia é similar à desenvolvida por Boulez em seu artigo ‘Alea’. No entanto, eu não posso concordar com sua intenção de fazer uma rede de possibilidades se submeter ao método de ‘acaso controlado’. Qualquer liberdade conquistada pelo relaxamento da rede não deveria ser lançada ao acaso mas sim submetida a decisões posteriores, como eu disse antes, com o objetivo de reduzir a entropia da estrutura a um mínimo relativo”.

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7 Título original: Wandlungen der musicalischen Form. Artigo redigido em 1958 e publicado no

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Stockhausen também se manteve distante das duas principais vertentes do acaso. Sua Klavierstück XI, frequentemente acatada como um dos ícones da poética da obra aberta em música, originou-se de proposta muito distinta das noções tanto de acaso absoluto como de acaso controlado. Sua aproximação composicional com a noção de obra aberta se deu por meio do reconhecimento da imensurabilidade de aspectos musicais essenciais e da irrepetibilidade da música instrumental (que o lançariam à exploração dos dinamismos envolvidos na música interpretada), bem como de suas pesquisas acerca da forma e do tempo musicais. Posteriormente, com o intuito de anular a personificação do processo criativo (seja composicional ou interpretativo), desenvolveria sua noção de intuição, a qual não se vincula nem a um subjetivismo puro, nem a um intelectualismo: uma inteligência intuitiva que não se alimenta de conhecimentos armazenados, pois se funda em uma sensibilidade a influências externas que – segundo o compositor – poderia estabelecer o mais alto nível de consciência capaz de afastar o músico de sua posição egocêntrica e de produzir poderosas situações criativas. Ao reconhecer como inexplicáveis os mais importantes insights criativos em seu processo composicional, Stockhausen (1989, p. 30) entendia este como aberto, permeável em sua imponderabilidade a valiosas influências externas:

“Eu não poderia receber qualquer clarão excepcional de intuição, ir além do que eu conheço, do que pode ser deduzido do que eu conheço do passado, se não há um fluxo constante de novas influências sobre mim, vindo de toda a humanidade e suas realizações, e da interferência de suas vibrações. E igualmente influências do espaço externo, das estrelas e de centros de energia que emitem ondas que são estruturadas de maneira particular”.

Por meio de sua noção de intuição, permeada por uma boa dose de misticismo, Stockhausen (1989, p. 124-125) propôs um controle, um domínio sobre o fluxo intuitivo, como uma nova técnica musical a ser aplicável tanto à composição quanto à interpretação.

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“Estou tentando encontrar uma técnica para mim mesmo enquanto compositor e intérprete, e para outros músicos que trabalham comigo, de estender o momento da intuição conscientemente, de maneira que ele comece quando eu quiser (...). E estes momentos de intuição devem durar o quanto eu quiser, e então eu terei achado uma técnica completamente nova de se fazer música”.

Concluímos que, tanto quanto a noção de intuição de Stockhausen, as demais aberturas de composição se desenvolveram e avançaram ao momento de performance: o acaso controlado de Boulez se ampliou à noção de forma aberta, com uma proposta mais ampla de combinatória que se lança à performance da obra; o acaso absoluto de Cage conduziu à indeterminação que, por meio da notação indeterminada ou da inserção do silêncio, abriu as obras às suas circunstâncias de performance. Avançamos, neste ponto, aos domínios das

Aberturas de Performance.

1.1.2 Aberturas de performance

As aberturas de performance correspondem às liberdades que se disponibilizam ao intérprete e a suas impredizíveis respostas, bem como à abertura da obra às situações e eventualidades ambientais que a condicionam no momento de cada apresentação. Estas aberturas podem ser:

1) inerentes a práticas musicais coletivizadas e a tradições interpretativas;

2) geradas pelos interstícios da notação musical; 3) deliberadamente previstas pelo compositor.

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Vários são os exemplos de aberturas inerentes a práticas musicais coletivizadas, as quais oferecem liberdades interpretativas nem sempre previstas enquanto tais pelo projeto composicional. Nelas, certos aspectos ou detalhes musicais não são precisamente determinados, quer por sua pouca relevância em dado contexto musical, quer por gozarem de um tratamento tão coletivizado e padronizado em uma determinada prática musical que tornam-se óbvios a ponto de prescindir de detalhamento notacional. A indeterminação de instrumentação em diversas obras barrocas se encontra no primeiro caso, haja vista a reduzida importância conferida à questão tímbrica no século XVII se comparada à sua crescente valorização nos séculos subsequentes (não por acaso, Cage inicia sua formulação acerca da indeterminação citando A Arte da Fuga, de Bach). No segundo caso, podemos citar as prescrições não deterministas de baixos cifrados, de ornamentações e diminuições na tradição barroca. É evidente que tais aberturas envolviam liberdades restritas, já que presumiam um comportamento em grande parte pré-determinado por um código e uma prática musical tacitamente estabelecidos e compartilhados. Entretanto, podem assumir maior âmbito conforme parte desta conduta musical desaparece, o que torna tais liberdades suscetíveis a um tratamento mais subjetivo por parte do intérprete.

A partir do classicismo, a busca por uma expressão mais personificada na composição musical (a qual proporcionaria forças individuais como a de Beethoven, por exemplo), enfraqueceu a tradição do baixo cifrado e das ornamentações não prescritas e cerceou muitas das antigas liberdades tradicionalmente conferidas ao intérprete. Diversos compositores restringiram as tradicionais liberdades de performance por meio de uma notação mais rigorosa, a qual direcionasse mais a interpretação e minimizasse o risco de resultados não consentidos. As ornamentações, as variações e os momentos de caráter improvisatório continuaram presentes, mas passaram a ser detalhadamente notados pelo compositor, o qual transmitia ao intérprete uma partitura mais detalhista a ser acatada como testemunho de seu pensamento artístico individual.

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No entanto, quanto mais determinista e detalhista a notação tradicional, com mais força se impuseram as suas delimitações. Seu sistema fundamentado em escalonamentos de alturas e durações não foi desenvolvido para cobrir toda a riqueza e o dinamismo nos (e entre os) eventos sonoros. Este fato revela-se muito claro em estéticas composicionais do século XX, reconhecedoras da riqueza dos espectros sonoros, na mesma medida em que pode ser observado já nos repertórios barroco e clássico diante de aspectos imensuráveis da interpretação musical. Isso porque tanto a matéria sonora quanto a atividade expressiva do intérprete contém aspectos que escapam da notação. Neste sentido, observamos como a afirmação de Flo Menezes, alusiva às espectativas musicais mais atuais, se coaduna com a de Sandra Rosemblum, referente à prática da ornamentação no repertório clássico. Para Menezes (1999, p. 49), não é possível à notação musical “traduzir de forma totalizante em símbolos o rico universo dos espectros”, já que se restringe “às possibilidades estruturais da representação simbólica necessariamente compartimentalizada”. Para Rosemblum (1991, p. 217):

“A base estética da ornamentação requer do intérprete um grau de espontaneidade e nuance cujas sutilezas tornariam-se no mínimo difíceis, se não impossíveis, de se escrever e cuja expressividade na performance se perderia com a fria adequação a uma ritmização rígida”.

Muitos compositores entendem que a notação musical preserva sua inadequação à transmissão integral das intenções composicionais mesmo quando se vale de um determinismo maior nos diversos parâmetros sonoros e níveis da composição. Esse fato não passou despercebido por Igor Stravinsky (1996, p.112):

“Costuma-se achar que o que é colocado diante do músico é a música escrita na qual a vontade do compositor está explícita e facilmente discernível a partir de um texto corretamente estabelecido. Porém, por mais que seja escrupulosa a notação de uma peça musical, por mais cuidado que se tome contra qualquer ambiguidade possível, utilizando as indicações de andamento, nuances, fraseado, acentuação e assim por diante, ela sempre contém elementos ocultos que escapam a uma definição precisa, pois a dialética verbal é impotente para definir a dialética musical

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em sua totalidade. A realização desses elementos é, assim, uma questão de experiência e intuição; em suma, do talento daquele a quem cabe apresentar uma obra”.

De fato, a partitura é mais propensa a transmitir os aspectos abstratos e estruturais de uma obra do que definir precisamente sua realização sonora. Diante desta questão, Pierre Schaeffer (1998, p. 199) reconheceu o binômio

musicalidade-sonoridade, relacionando seus termos respectivamente à partitura

(concepção abstrata que se insere em – ou propõe – um jogo musical específico) e à execução musical (manifestação concreta), como sendo a melhor demonstração deste dualismo da obra musical.

Portanto, o crescente detalhismo notacional, observado nos séculos XIX e XX, adveio da necessidade legítima por parte dos compositores de atuarem cada vez mais sobre a sonoridade, sobre a realização concreta de suas obras, em detrimento de liberdades tradicionalmente concedidas ao intérprete. Mas, ironicamente, a saturação notacional abriu a obra a outras liberdades involuntariamente assumidas na interpretação, oriundas da dificuldade ou mesmo da impossibilidade de se realizar com precisão as prescrições cada vez mais sofisticadas e complexas da partitura, sobretudo no âmbito duracional: a precisão almejada pela notação revelou-se não realizável e, na mesma medida, não verificável.

Por fim, os meios eletrônicos de produção musical – pelos quais se vislumbrou a supressão do intérprete – propuseram a autonomia do compositor quanto ao controle de todos os parâmetros sonoros e de todos os estágios da produção e transmissão de sua obra, resgatando em certa medida a figura do

compositor-intérprete dos séculos passados. Nos estúdios, o compositor se

sentiu apto a prever e preparar minuciosamente a realização de sua própria obra por meio do aparato que lhe era disponibilizado, em uma versão cristalizada e por ele abonada. Mas, curiosamente, esta condição proporcionaria uma reviravolta na

Referências

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