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O diálogo de Klavierstück XI com as práticas interpretativas e a performance musical

3.3 Klavierstück XI, prática interpretativa e performance

3.3.1. Um pensamento composicional que considera a performance

A consideração dos fatores de performance pelas poéticas composicionais na música nova tem vínculos estreitos também com o desenvolvimento de novas tecnologias. A possibilidade de registro e observação do som e de síntese sonora fez com que não apenas a composição, mas também a teoria da música deixasse de se fundamentar em questões abstratas e se interessasse profundamente pelo próprio comportamento do som em sua manifestação concreta.

As diversas investigações sobre os fenômenos acústicos e sobre os espectros sonoros renderam frutos não apenas àquilo que viria a ser definida como música eletroacústica, mas também à composição instrumental, na medida em que inseriram todas as suas descobertas no imaginário composicional de maneira generalizada. Estas descobertas revelaram as complexidades no comportamento dos sons e os dinamismos inerentes à matéria sonora, aspectos

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que não tardaram a ser relacionados à imprevisibilidade da performance da música instrumental.

Stockhausen esteve na dianteira destes acontecimentos, e tanto suas composições como seus textos assumiram um profundo interesse por esses dinamismos tanto no som quanto na performance. Por conseguinte, os novos caminhos que propôs à música instrumental passam por este frutífero confrontamento da composição musical com aspectos imensuráveis da manifestação sonora, tendo como resultado obras como Klavierstück XI.

Por outro lado, é interessante observar como Klavierstück XI preserva traços do paradigma composicional tradicional, estabelecendo as alturas como o único aspecto inalterável dentro de tantas variantes de performance: percebe-se que, se a forma é variável e múltipla, se a duração total de cada grupo e, por conseguinte, de toda a peça não é determinável, se a qualidade de cada grupo é variável de acordo com a tripla instrução à qual se combina aleatoriamente em performance e se as proporções duracionais são sujeitas a dispersões por meio da previsão de campos temporais, as alturas emergem como o único aspecto terminantemente determinado. Pois, ainda que a composição das alturas tenha se apropriado do aspecto estatístico do tempo musical, isto se efetivou por meio dos ajustes cromáticos efetuados durante o processo composicional e, diferentemente das dispersões temporais, não foram transferidas ao intérprete ou à performance.

De fato, o planejamento da peça fundamentado em grupos e triplas instruções reforçam, de certa forma, o paradigma tradicional de duas articulações musicais: um âmbito estrutural que prioriza alturas e proporções duracionais, e um âmbito mais qualitativo, que se dirige à performance e abarca tempi, modos de ataque (e portanto timbres) e níveis dinâmicos. A consideração da performance em Klavierstück XI se manifesta sobretudo na proposta de articulação destes dois âmbitos, a qual impõe às construções estruturais (os grupos) manifestações qualitativas imprevistas, quer pelas múltiplas combinações com as triplas

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instruções, quer pelas dispersões dos campos temporais.

Entretanto, ao observarmos como o planejamento composicional de Klavierstück XI considerou a performance, é necessário nos atentarmos também a como um dos agentes essenciais da performance foi considerado: o ouvinte. Evidentemente, onde se lê ouvinte, lê-se também escuta; e a escuta foi um dos norteadores não apenas da composição de Klavierstück XI, mas do redimensionamento do pensamento serial de Stockhausen que o conduziu ao abandono da escritura pontual em busca da consideração de categorias mais amplas. Lembremos que foi a partir do reconhecimento do aspecto integralizador de nossa escuta, de seu agrupamento involuntário de sons tendo como critério certas afinidades sonoras, que Stockhausen concebeu sua noção de grupos, a qual fomentou peças dentre as quais Klavierstück XI.

Neste contexto, faz-se pertinente o questionamento sobre se o ouvinte foi considerado na previsão de campos temporais, sobre como as diversas margens de imprecisão na realização das durações poderiam ser por ele percebidas. Não seria necessário que o ouvinte tivesse pleno e prévio conhecimento de como seria uma realização absolutamente precisa das estruturas rítmicas para poder perceber tais desvios? Teria sido o ouvinte desconsiderado na previsão dos campos temporais, por tratar-se de um recurso composicional cujos resultados supostamente não se disponibilizam à fruição?

Entretanto, duas considerações se impõem contra essa conclusão e reafirmam a presença do ouvinte na noção de campos temporais. A primeira delas é a de que os nossos horizontes perceptivos (sensórios e cognitivos) não são precisamente delimitáveis e, portanto, ainda que seja desejável que sejam considerados, não há porque pressupor que eles devam condicionar rigorosamente os horizontes composicionais. A noção de que o âmbito de uma composição musical deve se restringir ao que seria comprovadamente perceptível e cogniscível tem sido confrontada há muito tempo pela própria composição

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musical. Perguntamos se Johann Sebastian Bach previa que suas complexas estruturas canônicas nas Variações Goldberg fossem totalmente apreensíveis pela escuta, ou se Franz Liszt supunha que a inusitada indicação de crescendo no final de sua Sonata em Si menor – sobre um único acorde em semibreve, recurso impossível de ser efetuado no piano – fosse acusticamente realizável e perceptível.

Figura 15 – F. Liszt: Sonata em Si menor, compassos finais

Um suposto condicionamento das intenções composicionais às possibilidades físicas também foi confrontado por Robert Schumann ao indicar, em sua Humoreske Op.20 para piano (figura 16) uma voz interna inaudível, a qual não acompanha qualquer indicação de que deva ser tocada ou cantada. Segundo Charles Rosen (2000, p. 35), trata-se de “uma voz situada entre o soprano e o baixo, mas que representa, igualmente, uma voz interna jamais exteriorizada. Ela tem o seu ser em nossa mente e sua existência apenas enquanto eco”.

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Uma segunda consideração que reafirma o ouvinte na previsão de campos temporais diz respeito aos resultados musicais deles esperados por Stockhausen, os quais seriam não a percepção dos desvios interpretativos enquanto tais, mas sim de um tempo contínuo e imensurável. Portanto, entende- se que as imprecisões de performance foram previstas não como um produto detectável, mas um meio de se atingir este novo senso de tempo musical inquantificável vislumbrado por Stockhausen.

Estas considerações nos revelam as dimensões dos fatores de performance no planejamento composicional de Klavierstück XI: pois, se as impredizíveis ações e reações do intérprete foram amplamente consideradas no desenvolvimento da noção de campos temporais, reconhece-se também o ouvinte plenamente inserido neste recurso composicional correlato à busca por uma nova concepção de tempo musical.