• Nenhum resultado encontrado

O fechamento da obra: considerações sobre a performance musical a partir do pensamento de Paul Zumthor

Se o subcapítulo anterior observou as vias de ingresso e as manifestações de diversos aspectos que fazem da música um acontecimento essencialmente aberto em todos os seus momentos de produção, transmissão e recepção, este capítulo pretende evidenciar a performance enquanto momento no qual todas as aberturas são “solucionadas”, ou seja, no qual a obra assume uma conclusão (ainda que efêmera) e se manifesta em uma configuração singular.

A ênfase está em estabelecermos a performance como o momento no qual a obra se efetiva, sem o risco de fazermos uma desmedida apologia ao intérprete. Para tanto, o pensamento de Paul Zumthor nos proporciona uma consistente fundamentação, não apenas pela clareza com que estabelece a performance como momento definidor da obra, mas também por ser uma das mais frutíferas visões para uma reflexão atual sobre transmissão e recepção em arte e pelo seu amplo reconhecimento da multiplicidade das manifestações artísticas. Sobretudo, as concepções de Zumthor nos proporcionaram uma base sólida para uma consideração globalizante da performance que nos permite fazer a distinção – essencial a este trabalho – entre performance musical e interpretação musical, sendo a primeira o momento total de enunciação de uma obra que abarca todos os agentes e elementos participantes (compositor, partitura, intérprete, ouvinte, situações ambientais e todos os respectivos contextos) e a segunda alusiva exclusivamente às atividades do intérprete. Portanto, este subcapítulo propõe um breve estudo sobre a sua visão de performance com o intuito de realizar uma aproximação – necessária a este trabalho – com a prática musical ocidental.

38

oposição entre performance e recepção. Ao contrário, performance é, para o autor, um momento da recepção: “momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido” (Zumthor, 2007, p. 50), ato presente e imediato de comunicação poética que requer a presença corporal tanto de um intérprete quanto de um ouvinte, voz e ouvido, envolvidos em um contexto situacional no qual todos os elementos – visuais, auditivos e táteis – se lançam à percepção sensorial.

Responsável pela materialização de uma mensagem poética, a performance cristaliza e individualiza uma forma. Aliás, o vínculo entre forma e performance é reconhecido por Zumthor (2007, p. 33) já na morfologia do vocábulo:

“Entre o sufixo designando uma ação em curso, mas que jamais será dada por acabada, e o prefixo globalizante, que remete a uma totalidade inacessível, se não inexistente, performance coloca a ‘forma’, improvável. Palavra admirável por sua riqueza e implicação, porque ela refere menos a uma completude do que a um desejo de realização”.

Zumthor parte de um modelo genuíno de performance: o da situação de oralidade pura. Reconhece, a partir deste modelo, uma pluralidade de situações culturais que gradativamente se afastam dele, até atingir a situação tipicamente ocidental, fundamentada no texto notado e na possibilidade de leitura individual e silenciosa que conjuga intérprete e ouvinte em um único indivíduo: o leitor. Delineia-se então uma gradação que estabelece três níveis de performance: o nível mais elevado estabelece a performance completa, a qual proporciona uma vivência presencial, global e plena da situação de enunciação; o segundo nível suprime um elemento de mediação, seja visual ou táctil (por exemplo, a situação da transmissão mediatizada); o terceiro nível – e o mais fraco deles – é o da leitura individual e silenciosa, tipicamente ocidental, na qual o intérprete que comunica o texto e o ouvinte que o recebe estão fundidos em um único indivíduo e os elementos sensoriais não se revelam concretamente, e sim insinuam uma fugaz presença por meio do desejo por serem restaurados.

39

“Do texto, a voz em performance extrai a obra” (Zumthor, 2005, p. 142). Esta afirmação nos apresenta outro aspecto fundamental do pensamento do autor: a distinção entre texto e obra, sendo o primeiro a sequência de enunciados e a segunda, muito mais ampla, tudo o que é poeticamente comunicado no ato de enunciação.

“É no nível da obra que se manifesta o sentido global, abrangendo, com o do texto, múltiplos elementos significantes, auditivos, visuais, táteis, sistematizados ou não no contexto cultural; o que eu denominaria o barulho de fundo existencial (as conotações, condicionadas pelas circunstâncias e o estado do corpo receptor, do texto e dos elementos não textuais)” (Zumthor, 2007, p. 75-76).

Ou seja, se a vocação do texto é a de fixar elementos, cabe à obra, em sua manifestação, mergulhá-lo em uma infinidade de elementos sensórios, psíquicos e contextuais essencialmente instáveis e imponderáveis.

Texto, obra, autor, intérprete, ouvinte, leitura, recepção coletiva e leitura silenciosa são aspectos abordados por Zumthor também reconhecíveis nas situações de performance da música ocidental. E é justamente a performance musical que pretendemos visualizar, a partir do seu pensamento. Para tanto, é preciso reconhecermos que a performance, para Zumthor, está profundamente ligada ao que ele entende por vocalidade, especialmente à poesia vocal, recitada ou cantada, partindo de um modelo que, como vimos, é o da oralidade pura. Assim, a questão que primeiro se coloca neste estudo é a de saber se suas idéias são transladáveis a expressões artísticas que não se valem necessariamente da voz, como é o caso da música de concerto ocidental, aliás expressão artística pouco tratada pelo autor. O próprio Zumthor (2007, p.38) nos aponta um caminho para a generalização da noção de performance e respalda nossa tentativa de aproximação:

“No uso mais geral, performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual. Daí certas consequências metodológicas para nós, quando empregamos o termo nesses casos em que a própria noção de oralidade tende a se diluir e a gestualidade parece desaparecer. Consequências, em parte, de natureza terminológica: procuramos nos entender sobre uma

40

definição bem ampla do conceito, sem, no entanto, desnaturá-lo. Consequências de natureza comparativa, por sua vez, porque é forçoso partir do conhecido rumo ao desconhecido. O conhecido é a performance estudada e descrita pela etnologia; falta ver o que, dessas descrições e estudos, pode ser re-empregado, sem prejudicar a coerência do sentido, na análise de outras formas de comunicação. Pelo menos, qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a remanejar (ou a espremer para extrair a substância) a noção de performance, encontraremos sempre um elemento irredutível, a idéia da presença de um corpo”.

É justamente a corporeidade – da qual a voz é expansão – que Zumthor estabelece como característica da vocalidade e elemento essencial a toda performance. O caminho que propomos, portanto, para a visualização dessas idéias em música – e especificamente na música instrumental – é metaforizar a noção de voz, reconhecendo o som instrumental – que requer (tanto quanto a voz) um investimento físico na sua produção e emissão – como sendo a voz expressiva do músico. Trata-se de uma aproximação não tão difícil (não é à toa que as linhas instrumentais são há tempos tratadas como vozes...): ambos – som instrumental e voz – são manifestações do mundo sonoro que estabelecem identidades tímbricas reconhecíveis, carregando em si qualidades simbólicas essenciais. Basta observarmos como a afirmação de Zumthor (2007, p. 67) de que a voz “é o lugar simbólico por excelência” ressoa no pensamento de Luciano Berio (2006, p. 76), para quem os instrumentos musicais “produzem sons que são tudo menos neutros, pois se revelam como depositórios concretos de uma continuidade histórica e, como todas as ferramentas e edifícios, possuem uma memória”.

No pensamento musical ocidental, os fatores de performance têm sido tratados com crescente relevância, especialmente a partir dos anos 50, quando os compositores reconheceram e absorveram a mobilidade das obras instrumentais como um terreno fértil a ser considerado na criação musical. A música se flexibilizou diante do fato inexorável – contra o qual vinha se debatendo há algum tempo – de que “cada performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a cada performance ela se transmuda” (Zumthor, 2005, p. 49).

41

Acerca deste fato, Zumthor reconhece uma qualidade essencial de toda performance: a reiterabilidade não redundante. Considerando que a história de todo texto poético (e não necessariamente escrito) envolve formação, transmissão, conservação e reiteração, Zumthor observa que, nas tradições orais, a conservação do texto se dá na memória e, portanto, está sujeita às atividades criativas e involuntárias desta. É o que chama de movência, da qual resulta um dos aspectos mais notórios das culturas orais: a variabilidade nas reiterações. Porém, na situação de leitura ocidental (escritura-leitura), a formação passa pela escritura, ao passo que a conservação se deve ao livro (à partitura, no caso da música), graças ao qual se fixa na permanência (Zumthor, 2005, p. 66). A escritura tem a pretensão, portanto, de aniquilar a movência, mas podemos cogitar que esta ressurge nas inevitáveis variações de cada performance.

Já é lugar comum o reconhecimento de que a notação musical não contempla a complexidade e os dinamismos do mundo sonoro, na mesma medida em que proporcionou um exuberante desenvolvimento de procedimentos abstratos que dificilmente teriam lugar em uma prática musical não notada. Mas é igualmente notório que estas complexidades não estão perdidas, pois se restauram na performance, a cada realização da obra. Não por acaso, Pierre Schaeffer (1998, p.289) questionou a presunção de que o Ocidente é insensível, por exemplo, à multiplicidade de usos das frequências ocorrente em outras culturas:

“Por acaso acreditamos que no Ocidente somos insensíveis a este jogo de alturas aproximadas, das que apenas ousamos nos dar conta? Uma boa voz em um lied que lhe permita brilhar se expressa somente pelas alturas que a partitura indica? Não há nas interpretações verdadeiramente sutis uma variedade de alturas quase asiática e um jogo de timbres no próprio curso dos sons?” Aqui, Schaeffer está aludindo à distinção entre partitura e performance, entre musicalidade e sonoridade, muito próxima da distinção entre texto e obra proposta por Zumthor. Desta distinção emana a liberdade do intérprete naquilo que Schaeffer (1998, p. 197) chama de resíduo contingente: o único particular e

42

concreto que a partitura, mesmo que esgote o conteúdo de seus símbolos e as previsões implícitas, não pode determinar. Mas é preciso salientar: na música de concerto ocidental, a sonoridade da performance depende da musicalidade estabelecida pela partitura, tanto quanto a obra depende do seu texto, ou, em outras palavras, a enunciação do enunciado. É a partitura que estabelece o leito sólido no qual flui a obra, a ele condicionada, mas transbordante e nunca a mesma. Observa-se que a música de concerto ocidental revela uma propensão a apresentar em alto grau todos os aspectos de performance tratados por Zumthor, a partir de uma afinidade essencial com uma das expressões por ele mais observadas: a poesia medieval. O elo se dá pelo fato de que à recepção da poesia e da literatura medievais o intérprete era imprescindível: aquele raro indivíduo alfabetizado a quem cabia ler os livros em voz alta a uma coletividade. Trata-se de uma situação muito próxima da música de concerto ocidental, fundamentada em um texto estabelecido por um código específico e não acessível a todos, a ser transmitido por um especialista. Mas a afinidade entre a noção de performance de Zumthor e a música de concerto ocidental não para por aí: em ambas encontramos autor, texto, intérprete, transmissão, receptor, situações ambientais, leitura silenciosa (o solfejo), leitura “em voz alta” e recepção coletiva (a situação de concerto ao vivo), performance mediatizada (registrada e transmitida por meio de diversos suportes tecnológicos) e, sobretudo, o privilégio do sonoro – da voz – como aspecto determinante da performance.

Mas porque esse privilégio do sonoro? Respostas a esta questão não faltam: porque, citando Gilles Deleuze (1997, p. 166), “o som nos invade, nos empurra, nos arrasta, nos atravessa”; porque o som – e especialmente aquele mais abordado por Zumthor: a voz humana – é presença nômade (adjetivo tão caro ao autor) que confronta a fixidez dos textos; porque o som – e portanto a música – nunca se estabelece como objeto, nunca se fixa; por fim, porque o som extrai de um texto a obra que este não pode comportar.

43

Capítulo 2

O Projeto Composicional de Klavierstück XI: