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Após avaliar os membros da esquerda trabalhista e, em especial, o Grupo da Economia, cabe indicar agora algumas observações acerca de um único membro da esquerda católica, que, entretanto, era uma grande referência naquele meio. Ernani Maria Fiori, expurgado da Faculdade de Filosofia em 1964, era filósofo, advogado e jornalista, e “chegou a dirigente da Ação Popular (AP), organização política de inspiração católica que resistiu à ditadura”.373 Fiori fez parte de um grupo de jovens católicos que haviam estudado, na década de 1920, no Colégio Anchieta (escola católica, era na época uma das principais instituições de ensino básico dos filhos das famílias mais abastadas de Porto Alegre) e que, vinculados à Congregação Mariana Mater Salvatoris e influenciados pelo jesuíta alemão Werner von Mühn, fundaram em 1931 o Centro Católico de Acadêmicos (CCA), logo que entraram na UPA.374 Ainda que o grupo tivesse autonomia em relação à Ação Católica e à Arquidiocese

370 OLIVEIRA, Paulo Affonso Martins de. Atos Institucionais: Sanções Políticas. Brasília: Centro de Documentação e Informação/Coordenação de Publicações, 2000. p. 42.

371

SILVA, Antônio de Pádua Ferreira da. Sobre seu expurgo da UFRGS e sua trajetória política e docente [25/03/2008]. Entrevistador: Jaime Valim Mansan. Porto Alegre.

372 OLIVEIRA, Paulo Affonso Martins de. Op. cit. p. 42. 373

MORRE Ernâni Fiori, um dos grandes filósofos gaúchos. Zero Hora, Porto Alegre, p. 44, 05/04/1985. 374 Sobre o CCA, cf.: ISAIA, Artur Cesar. Catolicismo e autoritarismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:

de Porto Alegre, contavam com o padre Werner como “assistente eclesiástico”.375 Segundo Lorena Monteiro, o próprio Ernani Fiori, em 1980, teria observado que o padre Werner havia ensinado a eles “a polêmica de ser adepto à Maritain e ser anti-Maritain” e que, de fato, o jesuíta alemão havia formado “um exército católico de combate”, particularmente através da atuação de Francisco Machado Carrion, dos irmãos Victor e Carlos de Britto Velho (que, em 1969, também seriam expurgados da UFRGS) e do próprio Ernani Fiori.376 O grupo tinha ainda, como “membros honorários”, professores como “Armando Câmara, Eloy José da Rocha, Ruy Cirne Lima, Armando Dias de Azevedo na Faculdade de Direito, Mário Bernd na Faculdade de Medicina e Ary de Abreu Lima na Escola de Engenharia”.377 Fiori formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais em 1935, juntamente com Francisco Machado Carrion.378

Em sua juventude, Ernani Fiori, assim como outros membros do CCA, aproximou-se da AIB. Segundo Lorena Monteiro, com base em depoimento de Francisco Machado Carrion concedido a Hélgio Trindade em 1967,

os católicos, especialmente do grupo do CCA, foram incentivados por Alceu Amoroso Lima a ingressar na esfera política através da AIB, como foi o caso de Ernani Maria Fiori, mas posteriormente afastou-se dessa orientação. Apesar dessa breve ligação de alguns membros do CCA com o integralismo, de um lado pela influência de Alceu Amoroso Lima, e por outro pelo esforço de cooptação empreendido por Miguel Reale da AIB, os católicos na sua maioria não ingressaram porque viam a doutrina dos camisas verdes como próxima ao materialismo histórico, no seu sentido político, e eles repudiavam todas doutrinas materialistas e naturalistas, assim como aquelas que sustentavam o capitalismo e o comunismo.379

Desde 1941, Ernani Fiori era professor catedrático da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, instituição marista que, criada em 1940, passaria a constituir a Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 9 de novembro de 1948, juntamente com a Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas (criada em 1931), com a Escola de Serviço Social (criada em 1945) e com a Faculdade de Direito (criada em 1947).380 Na UFRGS, Fiori assumiu interinamente a

375 MONTEIRO, Lorena Madruga. A estratégia dos católicos na conquista da Sociologia da UFRGS (1940- 1970). 183 f. Dissertação – Mestrado em Ciência Política. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006. p. 38.

376 Id. ibid. As referências a Fiori correspondem a uma entrevista concedida por ele a Fernando Casses Trindade em 23/07/1980, a que a autora teve acesso.

377 Id. ibid. Sobre a “geração católica” na Faculdade de Direito de Porto Alegre, cf.: ENGELMANN, Fabiano. Diversificação do espaço jurídico e lutas pela definição do Direito no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004. 414 f. Tese – Doutorado em Ciência Política. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS.

378 MONTEIRO, Lorena Madruga. Op. cit. p. 131; ENGELMANN, Fabiano. Op. cit. p. 386. 379

MONTEIRO, Lorena Madruga. Op. cit. p. 43. Grifos ausentes do original.

380 O título de Pontifícia seria outorgado à universidade em 1º de novembro de 1950, pelo Papa Pio XII, transformando-a na PUCRS. Conforme: PUCRS. Portal. A Universidade: História da Universidade.

cátedra I de Filosofia em 1947, nela permanecendo até seu expurgo em 1964. Foi diretor, entre 1954 e 1962, do Instituto de Filosofia, fundado em 30 de dezembro de 1953.381

Apesar de sua breve aproximação com o integralismo na juventude, Ernani Fiori voltou- se posteriormente para os setores progressistas da Igreja Católica, o que, nos primeiros anos da década de 1960, o levou a ter importante participação na AP e nos movimentos de educação e de cultura populares (inclusive liderando a criação do Instituto de Cultura Popular do Rio Grande do Sul – ICPRS, do qual foi o primeiro e único diretor), bem como na defesa da paridade universitária na UFRGS (“movimento do 1/3”) e de ideais como o da “educação libertadora” e do “socialismo personalista”.382

Na fundação do ICPRS, em fins de 1963, além do próprio Fiori, que, como mencionado, coordenava o projeto, participaram outras pessoas vinculadas à UFRGS e à esquerda católica, como Ernildo Stein, Hélgio Trindade, Paulo Tomás Fiori (seu filho) e Maria Luiza de Carvalho Armando.383 Como a própria Maria Luiza de Carvalho Armando observa, “o ICP nasceu da JUC e da AP, relacionando-se ao contexto do trabalho nacional (UNE, etc.) em prol do que se chamava ‘cultura popular’”.384

Poucos dias antes do Golpe de 1964, Ernani Fiori havia completado 50 anos. Contava, já em 1964, com significativo reconhecimento no âmbito acadêmico, não apenas na UFRGS, mas também na PUCRS e inclusive nacionalmente, do que é indicativo o convite feito a ele por Zeferino Vaz para lecionar na UnB, após seu expurgo da UFRGS. A experiência em Brasília, em 1965, seria breve para Fiori. Em janeiro de 1966, o filósofo chegava ao Chile, onde, exilado, teve notável participação, junto a Paulo Freire (um grande amigo seu) e outros, nas transformações de caráter progressista, particularmente no campo da educação superior, por que passou o Chile durante o governo Frei e, especialmente, ao longo do governo

Disponível em <http://www3.pucrs.br/portal/ page/portal/pucrs/Capa/AUniversidade/HistoriadaUniversida de>. Acesso em 05/09/2008.

381 UFRGS. Departamento de Educação e Ensino. Guia da Universidade do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Gráfica da Universidade, 1960. p. 19. UFRGS/BC/Col.U.

382 Cf.: ARANTES, Otilia Beatriz Fiori (Coord.). Ernani Maria Fiori: Textos escolhidos. v. 2 – Educação e política. Porto Alegre: L&PM, 1991; KRONBAUER, Luiz Gilberto. Da Idéia de Pessoa à proposta educativa: O pensamento filosófico e pedagógico de Ernani Maria Fiori. 210 f. Tese – Doutorado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002.

383

CHINAZZO, Cosme Luiz. Contribuições do professor Ernani Maria Fiori para a educação popular e cultura popular no contexto do Instituto de Cultura Popular do Rio Grande do Sul. 135 f. Dissertação – Mestrado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1990. Anexos.

384 ARMANDO, Maria Luiza de Carvalho. Sobre o Instituto de Cultura Popular [14/08/2008]. Entrevistador: Jaime Valim Mansan. Via correio eletrônico.

Allende.385

Um indício do reconhecimento de Ernani Fiori junto à comunidade universitária da UFRGS foi a repercussão de seu afastamento sumário junto ao corpo discente, em meados de 1964. Tendo apoiado os estudantes durante a “Greve do 1/3” realizada em 1962, contava com grande reconhecimento em 1964, como professor, filósofo e, particularmente, como líder católico de postura progressista, de esquerda. Conforme matéria de Zero Hora de 29 de setembro de 1964, os estudantes da Faculdade de Filosofia da UFRGS haviam retornado às aulas na véspera, após doze dias de greve estudantil, em protesto contra o expurgo de Ernani Fiori.386 A greve teria sido encerrada, segundo o jornal, devido à informação de que o filósofo havia sido excluído da lista de expurgos de professores da universidade. Entretanto, a informação veiculada pelo periódico estava em parte incorreta, pois, já no dia 28 daquele mês, havia sido publicado no Diário Oficial da União o decreto, datado de 25 de setembro daquele ano, expurgando Ernani Fiori dos cargos de Professor Catedrático Interino da UFRGS e de “Inspetor de Ensino da Parte Permanente do Quadro de Pessoal do MEC”.387 No dia 30 de setembro, Zero Hora publicava outra nota sobre o assunto, afirmando que tornara-se conhecida uma lista onde, entre 152 nome de civis e militares expurgados de instituições vinculadas aos ministérios do Trabalho, da Fazenda, da Agricultura, de Viação e da Educação e Cultura, constava o de Ernani Maria Fiori.388 Era uma referência aos expurgos publicados na referida edição do Diário Oficial da União.

Maria Assunta Campilongo, que ingressou em 1964 no curso de Filosofia da UFRGS, observou que, naquele ano, presenciou uma aula, ministrada por Fiori, interrompida por duas pessoas não-identificadas, que solicitaram ao docente que as acompanhasse.389 Como observou Gabriel de Britto Velho sobre Fiori, “na AP, ele tinha prestígio e se pronunciava. Era um dos principais líderes da esquerda aqui. [...] era puramente intelectual. Ele não tinha nenhuma ligação com partidos”.390

385 Cf. a esse respeito: TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva; ANDREOLA, Balduíno Antonio. Freire e Fiori no exílio: um projeto pedagógico-político no Chile. Porto Alegre: Ed. Ritter dos Reis, 2001.

386 FILOSOFIA: estudantes voltaram às aulas. Zero Hora, Porto Alegre, p. 19, 29/09/1964.

387 MEC. Decretos de 25/09/1964. Diário Oficial da União, Brasília, 28/09/1964. Seção I – Parte I, p. 8685. UFRGS/BC.

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PROFESSOR Fiori incluído no expurgo de 152 funcionários. Zero Hora, Porto Alegre, p. 4, 30/09/1964. 389 CHALA, Ânia. Especial: Memórias da repressão. Jornal da Universidade, Porto Alegre, Ano XII, n. 114,

Dez/2008, pp. 8-9. Disponível em <http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/114/pagi>. Acesso em 04/01/2009.

390 BRITTO VELHO, Gabriel Azambuja de. Sobre seu expurgo da UFRGS e sua trajetória profissional e política [03/09/2008]. Entrevistador: Jaime Valim Mansan. Porto Alegre.