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4.2 U M PONTO DE INFLEXÃO : O INÍCIO DA SEGUNDA FASE DA D ITADURA

Um conhecido discurso de Márcio Moreira Alves foi a desculpa para a imposição do AI-5. Ele sugeriu, na tribuna, que a população boicotasse a parada militar de 7 de setembro, e que as mulheres brasileiras se negassem a namorar oficiais “que silenciassem diante da repressão ou participassem ativamente de violências cometidas pelo Estado”. O ato institucional, contudo, já estava pronto desde julho daquele ano, como resposta à mobilização social, particularmente expressiva naquele ano.451

O AI-5 fechava o Congresso por tempo indeterminado e suspendia todas as garantias constitucionais e individuais. A principal diferença em relação aos atos institucionais anteriores estava no fato de que não tinha vigência determinada. O Executivo adquiria poderes muito maiores sobre a sociedade e, particularmente, sobre o aparelho de Estado.

Segundo Carlos Fico, “a instauração do ‘golpe dentro do golpe’ deveu-se a duas ordens de fatores: os anseios punitivos do grupo radical e a decisão de Costa e Silva de completar a “operação limpeza” (interrompida por Castello Branco)”.452

449 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989. pp. 125-126.

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Id. ibid. p. 317. 451 Id. ibid. pp. 129-130.

452 É nesse sentido que o segundo grupo de expurgos na UFRGS é referido, neste estudo, como a “segunda ‘Operação Limpeza’”: a partir do entendimento de que, efetivamente, os expurgos promovidos após o AI-5, principalmente ao longo de 1969, foram de fato um complemento da primeira ação repressiva, necessário devido à mudança na correlação de forças nas diversas instituições da sociedade, inclusive nas universidades.

Entretanto, não se sustenta a tese do “golpe dentro do golpe”, defendida por alguns setores revisionistas da historiografia específica, que acabam, assim, sustentando a idéia de que a primeira fase da Ditadura foi um período de desvios autoritários e repressivos em um contexto democrático. A primeira parte desta dissertação evidenciou o grave equívoco em que tal perspectiva incorre e, por isso, entende-se não haver necessidade de nova argumentação nesse sentido.

O AI-5 não instituiu uma forma de Estado distinta, mas resultou em uma inflexão nos padrões repressivos, especialmente em termos formais, no interior de um mesmo contexto ditatorial, marcado pelo arbítrio, pela intolerância, pela violência e pelo desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano.

Destaca-se aqui, para os fins deste estudo, particularmente o seguinte trecho do AI-5: O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço (Art. 6º, § 1º).453

Ora, é com essa perspectiva em mente que entende-se que o marco de início da segunda fase do regime ditatorial, inclusive e principalmente no que diz respeito a esta pesquisa, deva ser considerado o AI-5, e não a crise de transição política gerada com os problemas de saúde de Costa e Silva, em agosto de 1969, que levou à constituição de uma Junta Militar para administrar provisoriamente o país, enquanto era escolhido, através de sucessivos pleitos realizados entre seletos grupos de oficiais do mais alto escalão, o nome de Médici para ocupar o posto mais alto da hierarquia ditatorial. O entendimento de que o AI-5 deva ser considerado o marco inaugural da segunda fase se deve ao fato de que o quinto ato institucional, juntamente com o AC-39, de 20 de dezembro de 1968, e o DL-477, de 26 de fevereiro de 1969, geraram, como mencionado, uma significativa inflexão nas práticas repressivas e de controle político-ideológico dos ambientes escolares brasileiros e, inclusive, das universidades, complementada, em 21 de outubro de 1969, pelo AC-75. Se, por um lado, na UFRGS, os expurgos em 1969 ocorreram quase concomitantemente ao problema de saúde de Costa e Silva, por outro lado, em algumas instituições houve grandes levas de expurgos entre março e agosto.

FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 65.

Na USP, em 28 de abril de 1969, três professores foram expurgados. Um dia depois, repetiu-se a arbitrariedade contra outros 24 professores, incluindo o reitor (que substituíra Gama e Silva, então ministro da Justiça e um dos civis que assinaram vários decretos de expurgo). A partir de 1970, o governo Médici reprimiu a universidade ainda mais violentamente. Em 1972, foi expurgada mais uma professora e, durante os primeiros cinco anos da década de 1970, muitos professores e alunos de lá foram presos e torturados. Há pelo menos 24 pessoas, entre alunos e professores da USP, consideradas desaparecidas ou comprovadamente assassinadas pelo regime ditatorial.454 Já na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foram expurgados dezesseis professores, em fins de 1969.455

O AC-39 determinava que caberia aos ministros civis e militares apresentar, ao “Presidente da República”, aqueles que, dentre o “pessoal civil ou militar dos respectivos Ministérios, assim como [...] empregados de autarquia, empresa pública e sociedade de economia mista, que lhes forem vinculadas”, deveriam sofrer “I - A suspensão dos direitos políticos pelo prazo de 10 anos; II - A demissão, remoção, disponibilidade, aposentadoria, transferência para a reserva ou reforma”.456

O DL-477, que aplicava-se a docentes, estudantes e funcionários de estabelecimentos escolares públicos ou privados de qualquer nível, aprimorava o processo expurgatório, ao definir como crime as atividades consideradas “subversivas”, como a promoção ou mesmo a participação em passeatas, a elaboração ou distribuição de panfletos e materiais de divulgação em geral, ou o uso de ambientes escolares para a prática de “ato contrário à moral ou à ordem pública”.457

Posteriormente, a Junta Militar, através do AC-75, proibiria “todos aqueles que, como professor, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público”, tivessem incorrido ou viessem a incorrer em faltas que tivessem resultado ou viessem a resultar “em sanções com fundamento em Atos Institucionais”, de lecionar ou mesmo

[...] de exercer, a qualquer título, cargo, função, emprego ou atividades, em estabelecimentos de ensino e em fundações criadas ou subvencionadas pelos Poderes Públicos, tanto da União, como dos Estados, Distrito Federal, Territórios e

454 ADUSP. O Controle Ideológico na USP (1964-1978). São Paulo: ADUSP, 2004. p. 90.

455 SALOMON, Délcio V. À guisa de prefácio. In: PIMENTA, Aluísio et al. UFMG: Resistência e protesto. Belo Horizonte: Vega, 1979. p. II.

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BRASIL. Ato Complementar nº 39, de 20 de dezembro de 1968. Disponível em <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/ACP/acp-39-68.htm>. Acesso em 06/09/2007.

457 Id. Decreto-lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969. Define infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dá outras providências. Disponível em <http://www.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194943>. Acesso em 15/05/2006.

Municípios, bem como em instituições de ensino ou pesquisa e organizações de interesse da segurança nacional.458

Em 29 de julho de 1969, seria aprovado o Decreto nº 64.902, que definia o Regimento do CFE, prevendo que à Plenária caberia, inclusive, “promover sindicâncias, por meio de comissões especiais, em quaisquer estabelecimento de ensino” (Art. 3, item 12), “aprovar os Estatutos e os Regimentos Gerais das Universidades” (Art. 3, item 20) e “suspender, após inquérito administrativo, o funcionamento de qualquer estabelecimento isolado de ensino superior ou a autonomia de qualquer Universidade” (Art. 3, item 22).459 Era um significativo incremento no controle das instituições de ensino e, inclusive, das universidades.