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O MEC, antes de 6 de agosto de 1964, comunicou à UFRGS: “nos casos em que os resultados de inquéritos sejam inteiramente insuficientes, serão abertos novos inquéritos pela Comissão Geral de Investigações”.297 Isso reforça o caráter intervencionista da sociedade política, através da “Operação Limpeza”, na universidade, a despeito do apoio (coagido ou voluntário) de membros do corpo docente da instituição.

Em 25 de setembro de 1964 (uma sexta-feira), no Diário Oficial da União, foram publicados quatorze decretos, dentre vários outros, afastando sumariamente onze professores da UFRGS. Os decretos eram individuais e, no caso dos servidores docentes que acumulavam funções, havia um decreto para cada cargo. Todos os referidos decretos possuíam a seguinte forma:

O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o § 1º do art. 7º do Ato Institucional, resolve

[DISPENSAR / DEMITIR / APOSENTAR]298

[nome, função, unidade de ensino onde lecionava e instituição a que estava vinculado].299

Brasília, 24 de setembro de 1964; 143º da Independência e 76º da República. H.CASTELLO BRANCO

Flávio Lacerda.300

297 UFRGS. Arquivo Geral. Índice de processos. Processo nº 9267/64, arquivado em 06/08/1964. Origem: Ministério da Educação e Cultura. UFRGS/AG.

O texto citado foi reproduzido no referido índice, no campo “Obs”, e a indicação da data de arquivamento permitiu saber que a comunicação foi expedida pelo MEC e recebida pela UFRGS antes de agosto de 1964. 298

De acordo com a situação funcional do docente, a punição poderia assumir a forma de dispensa, demissão ou aposentadoria sumária. Ver Quadro 1, a seguir.

Os afastamentos sumários promovidos por aquelas medidas repressivas se caracterizaram conforme o Quadro 1:

Quadro 1 301

Decretos expurgatórios de 24/09/1964 (*!1 *!

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Fonte: MEC. Decretos de 24/09/1964. Diário Oficial da União, Brasília, 25/09/1964. Seção I – Parte I, p. 8634. UFRGS/BC.

300

MEC. Decretos de 24/09/1964. Diário Oficial da União, Brasília, 25/09/1964. Seção I – Parte I, p. 8634. UFRGS/BC. Grifos conforme o original.

Pouco tempo depois dos afastamentos sumários, em novembro de 1964, Cláudio Accurso, já expurgado, seria convidado para ser paraninfo da turma de Ciências Econômicas que se formaria no mês seguinte. Como resposta à solicitação da Comissão de Formatura, o Diretor da Faculdade, prof. Walter José Diehl, informou que, “levando em conta as peculiaridades que revestem o assunto, [...] a cerimônia de colação de grau será realizada, em caráter singelo, no Gabinete do Diretor, ou em outro local designado pela Direção para esse fim”.302 A despeito das “peculiaridades”, o docente pôde receber a homenagem daqueles que, como Walter Hahn, haviam sido seus alunos. A formatura acabou sendo realizada no saguão do prédio da Faculdade de Ciências Econômicas.303

É preciso mencionar também o caso de um professor que sofreu o que aqui está sendo denominado de expurgo indireto. Tratava-se de situação em que o próprio indivíduo tomava a iniciativa de se afastar da instituição em que atuava, em função de constrangimentos diversos, relacionados, via de regra, com especificidades da conjuntura política.

Em relação à UFRGS em 1964, o único caso de que se teve conhecimento foi o de Carlos Jorge Appel. Professor do Colégio de Aplicação (escola de educação básica vinculada àquela universidade), ele relatou o episódio da seguinte maneira:

Eu tinha dois alunos [...] e um deles tinha um tio no ID-4. ID-4 era o serviço secreto do 3º Exército. Eu estava em um restaurante, jantando com meus amigos, e um chegou e disse que o tio dele, que era um coronel, tinha se declarado incompatibilizado pro 3º Exército, porque eu seria preso no outro dia e, como ele era afetivamente muito ligado a mim, através de seus sobrinhos, que eram meus alunos, ele mandou me avisar. E, como eu conhecia muito a América Latina, eu, na mesma noite, desapareci. Saí por Uruguaiana, fui a Paso de los Libres, e fui procurar primeiro, no interior da Argentina, os meus amigos. Fui parar na casa de um poeta que eu havia conhecido antes, que se chama Leopoldo Castilla. Fiquei lá um tempo, em Salta, fiquei muito amigo da família e dos filhos dele, inclusive – [que] depois vieram aqui e moraram na minha casa, em Porto Alegre, por algum tempo. Eu, depois, fui para Antofagasta, fui para Santiago e, com a queda dos vários governos, tanto do Uruguai, quanto da Argentina e do Chile, fui parar na Bolívia e fui até Lima, no Peru. Sempre tentando sobreviver, falando de cultura brasileira, literatura brasileira, e fazendo música coral, curiosamente, como um dos modos de sobreviver. Contando, contudo, com a amizade que consegui nessa época. [...] E isso foi em 1964. Nessa época eu já era casado com a Mirna.304

É bastante considerável a dificuldade inerente ao estudo de casos de expurgos indiretos, como o de Appel, e internos, como o de Antônio de Pádua Ferreira da Silva, comentado anteriormente. Isso porque mesmo a simples identificação da ocorrência de tais modalidades

302

UFRGS. Faculdade de Ciências Econômicas. Procuração 2164/64, 17/11/1964. Do Prof. Walter José Diehl para a Comissão de Formatura do Curso de Ciências Econômicas. APWH.

303 HAHN, Walter. Sobre sua trajetória estudantil na UFRGS [17/01/2006]. Entrevistador: Jaime Valim Mansan. Porto Alegre.

304 APPEL, Carlos Jorge. Sobre sua atuação como professor do Colégio de Aplicação da UFRGS e seu expurgo, em 1964 [03/05/2006]. Entrevistador: Jaime Valim Mansan. Porto Alegre.

específicas de expurgo é muito mais difícil do que no caso de expurgos externos, em que a medida repressiva assume oficialmente seu caráter de afastamento sumário, viabilizando sua verificação através de fontes como os diários oficiais.

O caso de Appel exemplifica bem tais dificuldades, já que, até hoje, poucas pessoas conhecem os motivos de seu afastamento em 1964, como ele próprio observou:

Nunca falei sobre isso. Não pedi nenhuma indenização, como estão pedindo por aí, não quis saber disso. Porque foi uma época muito difícil, muito dolorosa, porque me tirou inclusive do mundo acadêmico. Ainda que meu nome não conste em nada. Mas na verdade eu entendi que eu tinha que não ser preso, que ser preso não adiantava coisa nenhuma, só ia favorecer a violência, a humilhação, e eu acho que agi corretamente quanto a isso.305

Vale lembrar que, em análises de expurgos indiretos, verificar a veracidade das causas do constrangimento mobilizador de tal processo de autodefesa não é uma tarefa imprescindível. No caso de Appel, por exemplo, saber se aquilo que seus dois alunos confidenciaram a ele correspondia à realidade – ou seja, se, efetivamente, setores do Aparato Repressivo planejavam prendê-lo – não é pré-requisito para compreender o ocorrido, já que nem ele mesmo tinha como verificar isso com certeza, na ocasião. O que importa é perceber que, em função da possibilidade de que sua prisão efetivamente viesse a ocorrer, o docente optou por abandonar seu emprego e, com sua família, buscar refúgio junto a amigos que residiam no exterior.