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Estética da justaposição: experimentações culturalistas e progressistas

Capítulo 2 PRESERVAÇÃO DO CONTEXTO URBANO: AMBIENTE E MONUMENTO

2.2. Estética da justaposição: experimentações culturalistas e progressistas

As mudanças técnicas e sociais, marcadas pela industrialização do século XIX, repercutem no ambiente urbano da passagem para o século XX. O acelerado crescimento urbano, em contradição com a ineficiente estrutura urbana de

circulação, moradia e produção, conduz à necessidade de um aprimoramento59 do

saneamento da cidade industrial.

A concepção moderna do tecido urbano, enquanto espaços de memória, tem seus fundamentos nas discussões das reformas de embelezamento urbano do século XIX e nas experimentações dos urbanistas culturalistas europeus que atuaram na política imperialista de colonização no século XX. Através da concepção e da apropriação do tecido urbano original, pode-se identificar as estratégias de dominação cultural da política imperialista das principais potências européias do início do século XX, bem como o desenvolvimento da política de preservação do patrimônio ambiental urbano.

A concepção moderna do tecido urbano enquanto espaços de memória teve contribuição das discussões e embates ideológicos das reformas de embelezamento urbano do século XIX. Na abordagem da cidade enquanto figura histórica, o debate do caráter propedêutico e do caráter museal apresentam-se como complementares, espelhando o valor histórico atribuido à cidade antiga. No entanto, para Choay (2001) são iniciativas distintas, que atuam na cidade antiga de maneira diferenciada. Os estudos que levantam o caráter propedêutico da cidade antiga fundamentam-se em um estudo histórico da forma urbana, sem necessariamente imitar o modelo anterior (medieval), de maneira a elaborar um novo sistema de arte a partir das condições históricas novas. Já os estudos de caráter museal fundamentam-se num respeito à autenticidade cultural e morfológica do sistema de arte urbana antiga, criando uma separação física e simbólica de suas extensões novas.

Complementando essa visão, Harouel (1998) esclarece que, dentro do urbanismo culturalista, essas interpretações da cidade antiga enquanto monumento são manifestadas concretamente no final do século XIX. Contribuem para o amadurecimento e despolitização (comparada à figura memorial) do discurso desse modelo os tratados escritos por arquitetos como o vienense Camillo Sitte ("Der

Städtebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen", 1889) e o alemão Joseph

Stubbën ("Der Städtebau, Handbuch der Architektur", 1893).

Até o século XIX os estudiosos trabalhavam com a cidade de maneira fragmentada, tanto em sua configuração - destacando isoladamente os monumentos arquitetônicos - como pela temática tratada (política, religião, etc.). Para Choay (2001), é a partir do estudo urbano desenvolvido pelo arquiteto vienense Camilo Sitte (1843-1903) que a cidade antiga seria estudada enquanto espaço urbano, através da história da arquitetura urbana. Sitte considerava um erro nessas reformas - Reforma de Paris (França, 1853-70) e Urbanização de RingStrasse em Viena (Áustria, 1857) - o isolamento dos monumentos, pois preservação da continuidade do tecido urbano seria a fonte da manutenção do significado do monumento (HAROUEL, 1998; CHOAY, 1990) (Figura 16). Esses novos estudos morfológicos e históricos possibilitam o reconhecimento da cidade enquanto fonte documental e pedagógica.

Partindo de uma abordagem positivista do processo de crescimento urbano, a cidade pré-industrial aparece como pertencente ao passado, logo obsoleta. No entanto, isso não significa que nela não sejam reconhecidos valores históricos que são fonte de conhecimento, reflexão e crítica à atualidade. Para Sitte (1992), as qualidades pitorescas da paisagem urbana estavam nas irregularidades das estruturas urbanas antigas, isto é, no resultado do seu desenvolvimento gradual, fruto do contínuo processo de integração entre o indivíduo e a ambiência.

Para Choay (2001), a posição do arquiteto e historiador Sitte é antes a identificação da carência de qualidade estética da cidade contemporânea, do que uma condenação à cidade industrial. Para Sitte, o plano de uma cidade é uma obra de arte que deve ser conseqüência de um planejamento orgânico, através da experiência adquirida nos estudos dos modelos medievais. Sugere a construção de

maquetes, antes de qualquer intervenção, para que o público leigo pudesse manifestar sua opinião (ARAÚJO, 1998).

Desenvolvida no final do século XIX e início do século XX, a abordagem que tende ao caráter museal caracteriza a cidade antiga por sua fragilidade e preciosidade. A cidade antiga é considerada como um artefato museográfico, ameaçado de desaparecimento, como um "[...] objeto raro, frágil, precioso para a

arte e para a história e que, como as obras conservadas nos museus, deve ser colocada fora do circuito da vida" (CHOAY, 2001:191). A crítica que Choay (2001)

faz é que na ânsia por conservá-la, congelasse um tempo específico, assim, perdendo a sua contextualização e historicidade.

No início do século XX, a renovação do pensamento de como interferir na cidade, através da investigação histórica e análises urbanas, é incentivada devido ao caos gerado no espaço urbano pela intensificação da industrialização e a destruição causada pela Primeira Guerra Mundial. O debate de como organizar o espaço urbano é promovido por associações interdisciplinares – políticos, higienistas e arquitetos – em diversos centros europeus (Nice, Paris, Lyon, Marselha, Berlim e Londres). Destaca-se a formação de associações francesas como o Musée Social (1904), a Societé Française des Architectes Urbanistes (1911), a Societé Française

des Urbanistes (1919) e a École des Hautes Études Urbaines (1919). Neste

contexto, é elaborada na França a “primeira carta do urbanismo” (LAMAS, 2000): a Lei Cornudet (19 de março de 1919). Os primeiros traços dessa lei foram elaborados durante a convenção de 1912 do Musée Social.

Este documento, revisado em 1924, impõe a obrigação da planificação urbana - plano de regularização, embelezamento e extensão urbana - para as cidades com mais de 10.000 habitantes, incluindo as aglomerações de qualquer dimensão que apresentassem um caráter pitoresco, artístico ou histórico. Deve ser compreendida enquanto uma tentativa de organizar metodicamente as aglomerações francesas, através da promoção de estudos sobre questões de infra-estrutura urbana e equipamentos, mas também como um reconhecimento da importância da conservação desses núcleos históricos europeus.

O arquiteto Joseph Stubbën (1845-1936), chefe do Departamento de Planejamento em Aachen e Colônia, contribuiu para reforçar a museificação da cidade antiga desenvolvendo diversos projetos de extensão de cidades na Alemanha e no exterior. Para ele, o erro dos planejadores consistia em buscar soluções que sobrepunham uma cidade moderna a uma malha antiga, pois o passado deveria ser respeitado. Em sua análise, os projetos deveriam buscar construir a cidade nova ao lado da antiga.

A tendência de respeito à cidade velha também pode ser observada na expansão de RingStrasse em Viena (1857). Embora a articulação do plano velho com o novo seguisse a rigidez formal da Beaux Arts e tenha sido objeto de críticas por Camillo Sitte, este projeto de embelezamento urbano promovido por técnicos da prefeitura da cidade é renovador porque justifica a conservação do núcleo medieval construído por reconhecê-lo enquanto "coração" da cidade. Convém destacar que as muralhas e áreas verdes foram destruídas para implantar o novo traçado.

No entanto, na mentalidade dos colonizadores europeus, os centros históricos de suas colônias não tinham o mesmo valor que os de suas metrópoles, apenas representavam o “exótico”. O fenômeno da colonização imperialista nas primeiras décadas do século XX contribui para novas experiências de apropriação do tecido urbano original em colônias européias da Ásia e África (FREY, 2004; LECLERC, 1994).

A organização político-econômica e a estrutura social das culturas locais colonizadas, em grande parte “arcaicas” (SICA, 1981), são dissolvidas pelo choque brutal produzida pela política de dominação cultural imperialista – fundamentada na ideologia do darwinismo ético e doutrinas de cunho racista. Assim, concebe-se um espaço público totalmente segregado e controlável, com a definição de zonas especializadas, com passeios arborizados, com sistema de água, esgoto e iluminação pública e com ruas largas e retas que promovem a integração com os marcos significativos do poder da cidade colonial de maneira a unir as condições locais a um ambiente similar ao da metrópole (PINHEIRO, 2002). Os centros indígenas são deixados à margem ou destruídos para dar lugar à cidade francesa (colônias na Argélia, 1930 e cidade de Saigon na Indochina, 1897).

Destacam-se implantações de cidades coloniais - na Tunísia e em Marrocos (Casablanca, Fez, Meknès, Marrackech, Rabat) - que não provocaram a destruição de seus antigos assentamentos. Foi o urbanista Léon Henri Prost o inspirador das cidades novas que seguiam essa mentalidade de interferir o menos possível nas cidades “indígenas”. A implantação da nova cidade, seguindo o modelo da City

Beautiful, era feita em seus arredores, nos espaços vazios. A justaposição à cidade

antiga era defendida como a melhor maneira de permitir a convivência de ambas as culturas, além de manter os espaços tradicionais e buscar uma especialização funcional dos assentamentos (LECLERC, 1994) (Figuras 17 e 18).

O ambiente urbano criado aparenta um convívio harmonioso entre a paisagem dos bairros franceses e os guetos da população indígena. Na realidade, essa conservação dos núcleos históricos ocorre em casos em que a própria unidade (“células funcionais”) ou a compactação do tecido original torna difícil essa conversão estrutural programada (SICA, 1981). Assim, os tecidos originais convertem-se em guetos ou bairros indígenas afastados dos novos agrupamentos dos colonos europeus e da infra-estrutura especializada – área comercial, institucional, residencial e recreacional. Embora a fisionomia original dos centros seja conservada, estas configurações urbanas legitimam as diferenças de classe, etnia e refletem a dominação e controle imperialista nos territórios coloniais.

Figura 16 – A liberação e regularização do entorno de monumentos arquitetônicos, como a Catedral de Notre-Dame, tinham a pretensão de “valorizar” através de perspectivas grandiosas. Situação do entorno da Catedral antes e depois das obras de embelezamento

urbano. Fonte: BENEVOLO, 2005.