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Capítulo 1 Proteção do Patrimônio Verde Público Urbano

1.5 Patrimônio Verde Público Urbano Carioca: implicações da proteção dos jardins de interesse histórico na contemporaneidade

1.5.2 Medidas de preservação em jardins de interesse histórico

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1980 define o Patrimônio Cultural Brasileiro enquanto formado por bens de natureza material e imaterial, incluídos os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Assim, essa categoria de bem cultural também é objeto das operações de intervenção e preservação, tais como identificação, proteção, inventário, registro, documentação, conservação, restauração, recuperação, renovação, revitalização, restituição, valorização, divulgação e monitoramento (Carta de Bagé, 2007).

As medidas de preservação dos bens patrimoniais, tombado individualmente ou integrante de um conjunto urbanístico, devem englobar toda e qualquer ação que vise a salvaguarda e a valorização do bem e a sua perpetuação para gerações futuras. Por essa razão as ações devem ser específicas para cada situação e

condição do bem. Entre as medidas adequadas, destacam-se a conservação, que

implica em medidas de segurança e manutenção do edifício, e a restauração, que devem ter caráter excepcional.

Nas intervenções no patrimônio edificado são recomendadas a manutenção do partido arquitetônico (linguagem característica da tendência estilística e da articulação dos volumes da edificação), manutenção dos elementos decorativos relevantes originais, manutenção dos materiais originais do revestimento, da cobertura e das esquadrias, manutenção das dimensões dos vãos de iluminação e ventilação, e a adoção de suas proporções quando da criação de novos vãos. A função utilitária do objeto arquitetônico muitas vezes é alterada e, com isso, é inevitável que os vestígios da tipologia edilícia original sejam perdidos. Quando a edificação é parte integrante de um conjunto arquitetônico de interesse cultural, as intervenções devem respeitar o seu aspecto externo, suas fachadas (portas, janelas, esquadrias, revestimento, beirais, ornatos, etc.), sua volumetria e sua cobertura. No entanto, a utilização de espaços internos é sempre flexibilizada, desde que se integrem aos elementos arquitetônicos originais da fachada.

Já para as intervenções de salvaguarda em jardins de interesse histórico, como parques e jardins, as adaptações têm uma maior complexidade, pois os espaços

interno e externo possuem uma evidente interatividade. Aliado a isso, ainda existe muita dificuldade por parte dos profissionais técnicos, inclusive dos órgãos do patrimônio, de como conciliar a “imaterialidade” da substância vegetal e suas inevitáveis substituições com os preceitos da disciplina da preservação.

Isso pode ser exemplificado pela Ata da 23ª reunião do Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN, em 10/08/2000, sob a presidência de Carlos Henrique Heck (IPHAN). Entre os assuntos tratados nesta reunião destacam-se o parecer sobre a proposta de tombamento do Conjunto Histórico no Bairro da Luz51 (SP) e da rerratificação da delimitação da poligonal de tombamento do Sítio Roberto Burle Marx e tombamento das suas coleções museológica e bibliográfica (RJ). Diante do questionamento do Conselheiro Nestor Goulart sobre a validade técnica do tombamento de um jardim, o Conselheiro Ítalo Campofiorito apresenta as seguintes ponderações:

O jardim não permanecerá imutável, porque é impossível, são coisas vivas. Mas da forma como um jardinista pode esperar que um jardim se preserve, ele será preservado. Eventualmente uma planta será substituída por uma jovem, que nasce ao lado, como se faz em nosso Jardim Botânico [...] Toda a coleção, o grande viveiro, tudo é conhecido, está relacionado e especificado, com indicação da quantidade e da qualidade. Já não é o mesmo, com certeza, de quinze anos atrás, alguma planta desapareceu e outra surgiu. Mas a conservação se fará mantendo o desenho original. [...] Se no futuro irão respeitá-lo ou não, é o mesmo problema para qualquer outra obra de arte. No caso dos jardins em geral, a pergunta cabe e é complexa.

[...]

Então quando tombamos um jardim deveríamos ter igual

documentação e deveríamos pautar uma política de preservação

mantendo o projeto original. As plantas perecem e devem ser renovadas, as mesmas espécies com os mesmos desenhos, de modo que considero a preocupação pertinente, seria importante fazer um levantamento não apenas das espécies, mas da disposição das espécies, do projeto e da concepção paisagística das espécies (Ítalo Campofiorito, 2000.apud. DIAS, 2008, grifo nosso).

A documentação é uma função indispensável não só para democratizar o acesso à experiência humana, mas também para estabelecer as linhas de inteligibilidade da trajetória humana (MENEZES, 1992). A conservação e a restauração de bens patrimoniais têm assumido a postura de conferir ao objeto

protegido um valor documental, acima do seu valor de uso. Neste contexto, a conversão do uso das edificações e espaços construídos é um dos pontos cruciais na atualidade. A partir da década de 1980, com a introdução do termo “destinação compatível”, um novo foco de discussão é introduzido.

As destinações compatíveis são as que implicam a ausência de qualquer modificação, modificações reversíveis em seu conjunto ou, ainda, modificações cujo impacto sobre as partes da substância que apresentam uma significação cultural seja o menor possível (Carta de Burra, 1980, Art. 7 apud. CURY, 1995:249).

Os documentos normativos de preservação consideram que a “destinação compatível” é a utilização que implica em impacto mínimo de agenciamento do bem. Desta maneira, a configuração dos espaços internos é preservada, embora assumindo um novo uso. Já a “adaptação” configura um agenciamento mais abrangente, de maneira a readequar os espaços para uma nova destinação, mas sem destruir sua significação cultural.

Esta adaptação requer que a nova destinação não prejudique ou destrua a sua significação cultural. A possibilidade de diversidade de usos para englobar as tipologias de lazer - ativo, passivo, contemplativo e alternativo - qualifica em termos de obsolescência, durabilidade e estabilidade um espaço livre da edificação ou de urbanização, portanto também os espaços verdes. A longevidade do patrimônio verde público urbano está diretamente vinculada à possibilidade constante de apropriação que este possui à chamada "qualificação". Ou seja, "quanto mais e

melhor possa ser apropriado (o espaço), desde que convenientemente mantido, maior vai ser sua aceitação social e por mais tempo será mantida sua identidade morfológica" (MACEDO, 1996:11, grifo nosso).

Na contemporaneidade, os projetos arquitetônicos e urbanísticos que utilizam técnicas operativas de requalificação desses artefatos arquitetônicos de um “tempo social” anterior podem ser classificados enquanto conservação, restauração, reciclagem (retrofit) e reforma. Embora sejam técnicas que abordam o objeto de intervenção de maneiras distintas, apresentam uma mesma característica: trabalham a partir de uma matéria prima existente. Tanto a reciclagem, como a reforma, trabalham com o objeto arquitetônico independente do seu estado de preservação

ou conservação. Contudo, a reciclagem, empregando o termo retrofit52, está associada a tudo que envolve a reutilização, em especial aquela voltada para garantir um aprimoramento de economia e sustentabilidade energética. Embora esse termo seja mais aplicado para edificações, o discurso de “eficiência“ é aplicado para intervenções urbanas, inclusive em espaços livres, já que o termo “reforma” é munido de carga negativa, ao contrário de décadas atrás, sendo evitado no discurso oficial53.

A princípio é uma questão de coerência com o contexto de poucos recursos (financeiros e ambientais) pensarmos em manter ao invés de sempre criar. A possibilidade de obtenção de valores aceitáveis para o investimento, como a redução do prazo de execução e a adequação geográfica do imóvel, estimula cada vez mais a adoção desta prática. Esta deve requerer uma análise da viabilidade econômica posto que a mera análise por parâmetros convencionais pode conduzir a equívocos na conclusão. Mas é fundamental, ao se trabalhar com bens culturais, que sejam promovidos estudos sérios que identifiquem a capacidade de carga que o objeto de intervenção (edificação ou um meio urbano) pode suportar.

A cultura é integrada às dimensões fundamentais do cotidiano e do trabalho da vida humana. Essa “qualificação cultural” das atividades humanas deve ser suficiente e estar presente na escolha dos programas compatíveis com os diversos bens arquitetônicos preservados. Não devem objetivar torná-los peças de museus, pois esta concepção poderia levar-nos a conferir ao monumento uma propriedade de vida e morte. Pois, uma vez considerando que o monumento teve sua época de

52 O termo em inglês, traduzido como “colocar o antigo em boa forma”, tem sido muito utilizado nos

últimos tempos na construção civil. Esta palavra pode ser definida como reformas que buscam customizar, adaptar e melhorar os equipamentos, conforto e possibilidades de uso de um antigo edifício.

53 Surgida na Europa, a prática do retrofit teve como principal meio de promoção as experimentações

nos Estados Unidos. Nestes países, a rígida legislação não permitiu que o rico acervo arquitetônico fosse substituído, abrindo espaço para o surgimento desta solução, que preserva o patrimônio histórico ao mesmo tempo em que permite a utilização adequada do imóvel. No Brasil, com a ampliação da preocupação com a defesa de áreas tombadas, aliada ao desenvolvimento das cidades, cria-se uma demanda para este tipo de solução. O retrofit é uma opção a ser considerada

apogeu, o que hoje se conserva seria apenas o resquício ou casca da sombra do que foi um dia (momento de declínio).

Como revitalizar o centro histórico? Transformando botequim em centro cultural? O botequim era um centro cultural. [...] A cidade é o lugar da reprodução do conhecimento na fala diária dos homens que precisam conviver. Se você faz o panegírico do edifício especificamente cultural, primeiro você nega que, antes, ali havia cultura (ROCHA, 2007:66).

Assim, revitalizar os bens preservados através do uso compatível e original é reintegrá-los à comunidade e perpetuá-los às gerações futuras acrescidos com novas cargas de memória. No entanto, tais cargas devem ser compatíveis com os seus valores específicos, ou seja, com os quais foram originalmente atribuídos como significação cultural destinado para a preservação. Deve-se ter em mente que cada situação representará desafios mais ou menos complexos devido às características morfológicas próprias e por refletirem formas de viver distintas de um passado recente ou não. Assim, deve ser ponderada a possibilidade de adequação aos padrões de morar, trabalhar, circular e de entretenimento contemporâneo.

É evidente que nem todos os bens culturais devem ou podem ser restaurados, mas a ação de selecionar esses monumentos deve ter claros os seus propósitos e motivações. O confronto dos novos usos desejados com as possibilidades de modernização de uma edificação, considerada obsoleta, deve ser sempre analisado à luz da teoria de preservação e da arquitetura. Logo, é uma opção consciente e responsável.

Sem reflexão, sem escolha, sem comparações, o artista é incapaz de dominar o conteúdo que pretende tratar, e um erro é

pensar que o verdadeiro artista não sabe o que faz. Nunca ele poderá dispensar a concentração de alma (HEGEL, 1999:275, grifo nosso).

Tendo isso em vista, a ação e a percepção do artista criador não é imparcial. Além disso, as variantes que interferem entre o projeto e a concretização da obra são fundamentais para a percepção. A materialidade da obra de arte é fundamental, pois o objeto percebido não é o projetado, mas sim o construído.

Esta questão é polêmica, pois o autor da obra arquitetônica ainda é visto e se vê como agente principal de uma obra individual, e não de um produto social. São comuns exemplos de permissividade na intervenção em bens patrimoniais modernistas. Os entusiastas fundamentam seus pareceres favoráveis na existência de “projetos originais” ou na figura de ilustres arquitetos brasileiros em ativa, como Oscar Niemeyer54. Outro fator que contribui negativamente para essas intervenções

sem critério é o fato da produção modernista ainda ter o estigma de passado recente, distante do ideal preconcebido de antiguidade, logo não representativa para ser protegida. Soma-se a isso o fato de muitos exemplares encontrarem-se obsoletos e abandonados. São pertinentes as considerações de Carlos Fernando de Moura Delphim, Ana Rosa de Oliveira e Claúdia Girão, que discorrendo sobre a polêmica da proposta de intervenção da Marina da Glória (no Parque do Flamengo) para os Jogos Pan-americanos de 2007, apontam o limite das intervenções em bens tombados:

Um bem inscrito nos Livros de Tombo que constituem o Patrimônio Cultural Brasileiro deve ser preservado dentro das características

tipológicas e programáticas com que se manteve até a ação

protetora do Poder Público. Prevalece sempre o padrão com que a História o legou e, embora não seja excluído um natural dinamismo, só podem ser aprovadas intervenções de manutenção, e conservação desses bens sendo toleradas apenas leves alterações que valorizem sem descaracterizá-lo. O valor e a individualidade de um bem tombado transpõe até a própria vontade do seu criador quando se trata de intervir posteriormente na obra. Compreende-se, portanto, que um bem tombado não pode ser modificado nem por seu criador, nem por quem herdou sua griffe (DELPHIM, OLIVEIRA, GIRÃO, 2006, grifo nosso).

Os bens arquitetônicos e paisagísticos modernistas, cujo autor original do projeto permanece “completando” sua obra, são desvirtuados em sua essência. A obra não é a mesma da imaginada e não pertence a um único personagem (seu autor original). Uma vez realizada, qualquer nova intervenção tem que deixar clara sua natureza: de ser uma intervenção.

Em postura contrária, o restaurador percebe a obra de arte como a verdade e o testemunho de um tempo, o qual deve ser respeitado. Os fatores que interferem ou baseiam essa consciência ocorrem por estímulos racionais, através de

comparações, reflexão, escolha, com o objetivo de dominar o conteúdo que pretende tratar. A relevância dessa consciência coletiva insere-se na natureza subjetiva da disciplina de conservação e de restauração. O monumento guarda testemunhos das diversas épocas pelas quais passou e a opção do que se deve conservar recai sobre o especialista de restauração. Mas sua tarefa não deve ser isolada, outros campos do conhecimento devem contribuir, bem como o entendimento das particularidades do ecossistema do bem construído deve ser considerado. Para isso, a aplicação da disciplina deve ser fundamentada e comprometida com valores reconhecidos pela comunidade científica, evitando o risco da perda dos valores patrimoniais para as gerações futuras.