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Estado de necessidade na legislação penal portuguesa

7. DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO PENAL COMPARADO

7.2. Família romano-germânica

7.2.1. Estado de necessidade na legislação penal portuguesa

O estado de necessidade foi recepcionado no direito português, nos artigos 34 e 35 do Código Penal, como causa de justificação e como causa de exclusão da culpa, respectivamente. Neste sentido Jorge de Figueiredo Dias:369

É de acordo com a teoria diferenciada que o CP regula hoje a figura complexa do estado de necessidade. Distinguindo o estado (direito) de necessidade como causa de justificação, no art. 34º, do estado de necessidade como causa de exclusão da culpa, no art.35º; mas submetendo até certo ponto as duas figuras a um denominador comum: o do afastamento, através da prática de um facto típico, de um perigo actual que ameaça bens jurídicos

368

DAVI. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. p.33. 369

do agente ou de terceiro. Se o interesse salvaguardado for de valor sensivelmente superior ao sacrificado, o facto está justificado por direito de necessidade; se o não for o facto é ilícito mas o agente poderá, dentro de certos e estritos pressupostos, ver a sua culpa excluída.

Nestes termos os referidos dispositivos legais que integram o Código Penal Português:370

Artigo 34.º

Direito de necessidade

Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e

c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.

Artigo 35.º

Estado de necessidade desculpante

1 - Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

2 - Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser

dispensado de pena”.

Analisando o direito de necessidade constante do art.34 do Código Penal, Figueiredo Dias leva em consideração a situação de necessidade e, dentro desta, os interesses juridicamente protegidos em conflito, o perigo que ameaça o bem jurídico e a provocação do perigo.

Quanto aos interesses juridicamente protegidos em conflito, o citado autor afirma que um perigo atual que ameace tais interesses do agente ou de terceiro só poderá ser afastado, eliminado ou diminuído se outro bem jurídico for lesado ou posto igualmente em perigo.

Figueiredo Dias371 ressalta que a legislação portuguesa preteriu a expressão “bem

jurídico”, substituindo-a por “interesse juridicamente protegido”, tendo por fundamento as

discussões e deliberações da comissão que discutiu o Anteprojeto do Código Penal Alemão de 1962 e que preferiu não falar em bens jurídicos, mas de interesses juridicamente protegidos:

370

Disponível em: <http://www.juareztavares.com/textos/codigoportugues.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2010. 371

[...] a ponderação de grandezas conflituantes que, como vimos, constitui a

essência desta causa de justificação, não se reduz a uma comparação “seca”

de bens jurídicos, mas de bens jurídicos projectados no contexto global – não necessariamente externo-objectivo- da situação (infra § 11 e SS). O que significa que os bens jurídicos conflituantes constituem apenas uma perspectiva entre várias relevantes para a ponderação, v.g., o grau do perigo ameaçador, a intensidade da lesão esperada, a autonomia pessoal do lesado, a maior ou menor adequação do meio salvador, etc.: tudo isto terá de ser tomado em conta para levar a cabo uma correcta ponderação. Foi seguramente a mesma intenção que presidiu, entre nós, a redação do art.34.º na parte questionada.

Desta forma, segundo o citado autor,372 qualquer bem jurídico, penal ou não penal, pode ser protegido pelo que denomina de direito de necessidade e, ainda que seja um tema controvertido, inclusive bens jurídicos, não do indivíduo, mas da comunidade, podem ser abrigados sob esta proteção.

No que diz respeito ao perigo que ameaça o bem jurídico, este deve estar objetivamente em perigo, que deve ser atual e, comparativamente à legítima defesa, mais alargado. Nestes termos, Figueiredo Dias:

Importa seguidamente pôr em evidência que o bem jurídico a salvaguardar tem que se encontrar objectivamente em perigo, porque só então se pode justificar que um dever de suportar a acção típica recaia sobre o atingido pela intervenção, demais se ele não for implicado na situação inicial. No mesmo sentido corre, de resto, a exigência expressa no art.34.º de que se trate de um perigo actual, não havendo razão bastante para que se afastem

completamente aqui os princípios definidos a propósito da “actualidade” da

agressão na legítima defesa(supra, 15º cap., §11 e SS.).

A respeito deste tema, Figueiredo Dias, ao comentar o perigo atual na legítima defesa, afirma que este só é admissível contra agressões atuais e que estas somente são atuais quando iminentes, já se iniciaram ou ainda persistem. Segundo o autor, a agressão é iminente quando o bem jurídico já se encontra imediatamente ameaçado. Quanto ao término da atualidade da agressão, esclarece que este não se confunde com o momento da consumação do crime, posto que, em inúmeros casos, a agressão e o estado de antijuridicidade perduram para além da consumação típica ou formal do crime:373

Relevante para este efeito é o momento até ao qual a defesa é susceptível de pôr fim à agressão, pois só então fica afastado o perigo de que ela possa vir a revelar-se desnecessária para repelir aquela. Até esse último momento a agressão deve ser considerada como actual.

372

DIAS. Direito Penal: parte Geral. p.442. 373

Em relação à provocação do perigo, Figueiredo Dias afirma que é necessário à justificação que este não tenha sido voluntariamente criado pelo agente e que prevaleça o seu fundamento que é o da solidariedade devida a quem se encontra em uma situação de necessidade:374

[...] a justificação só deve considerar-se afastada se a situação foi intencionalmente provocada pelo agente, isto é, se ele premeditadamente criou a situação para poder livrar-se dela à custa da lesão de bens jurídicos alheios.

No que diz respeito ao princípio do interesse preponderante e à vista do que

dispõe a alínea “b” do art.34 do Código Penal português, no sentido de que só tem lugar a

justificação por direito de necessidade se houver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, Figueiredo Dias o aponta como o cerne do fundamento justificador, esclarecendo:375

Por outras palavras, a lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do grau do perigo que os ameaça, é dizer, dos decursos possíveis do acontecimento em função da violação (ou perigo de violação) dos bens jurídicos que lhe está ligada.

Conforme o citado autor, é relevante a observância da hierarquia dos bens jurídicos em confronto, não havendo uma fórmula para a resolução definitiva do problema. Cita como referência para a distinção de relevância entre um bem jurídico e outro, a pena que lhe é cominada. Também afirma que a intensidade da lesão do bem jurídico exerce papel

fundamental na referida ponderação, especialmente quanto “a saber se está em causa o

aniquilamento completo do interesse ou só uma sua lesão parcial ou passageira”.376

Do exposto, percebe-se, portanto, que o estado de necessidade foi recepcionado no direito português, nos artigos 34 e 35 do Código Penal, como causa de justificação e como causa de exclusão da culpa, respectivamente.

Nestes termos, se o interesse salvaguardado for de valor sensivelmente superior ao sacrificado, o fato estará justificado pelo estado de necessidade e, se não for, o fato será considerado ilícito, mas o agente poderá, dentro de certos pressupostos, ver a sua culpa excluída.

374

DIAS. Direito Penal: parte Geral. p.444. 375

DIAS. Direito Penal: parte Geral. p.445. 376