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Família do Common Law: o estado de necessidade na legislação penal inglesa

7. DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO PENAL COMPARADO

7.3. Família do Common Law: o estado de necessidade na legislação penal inglesa

Juan Ignácio Piña Rochefort,407 ao estudar a estrutura da teoria do delito e os seus elementos no âmbito do Common Law, afirma que, em linhas gerais, ninguém pode ser condenado a menos que se haja provado, além de uma dúvida razoável que tenha causado um certo evento ou possa lhe ser atribuída a responsabilidade pela existência de um certo estado de coisas (state of affairs) proibidos pela lei, que tenha tido uma determinada disposição mental (state of mind) em relação ao evento causado ou à existência deste estado de coisas:

La formulación general que sirve para estructurar la teoria del delito del sistema penal anglosajón, se puede resumir diciendo que, em el Criminal

407

Law, nadie pude ser condenado a menos que se haya probado, más Allá de uma Duda razonable, que (a) há causado um cierto evento, o puede atribuírsele responsabilidad por la existência de um cierto estado de cosas (state of affairs) prohibidos por la ley, y (b) que há tenido uma determinada disposicion mental (state of mind) em relacíon al evento causado o a la existência de esse estado de cosas.

De acordo com Rochefort, desta fórmula surgem os dois elementos constitutivos do delito, cunhados na tradição anglo-saxônica: o actus reus (elemento externo) e o mens rea (elemento interno).408

Segundo o citado autor,409 a distinção entre elementos internos e externos é eminentemente doutrinária e jurisprudencial, sendo necessária, no entanto, para considerar susceptível de sanção o autor quando estiverem presentes e para, em sua ausência, em sentido contrário, impossibilitar a aplicação de pena. A ocorrência destes dois elementos deve estar provada, no entanto, além de uma dúvida razoável (reasonable doubt), recaindo a carga probatória sobre a parte acusatória.

Assim, sobre os elementos externos (actus reus) que determinam a tipologia do delito deve concorrer o elemento interno (mens rea) e, concorrendo estes dois elementos poderá ser afirmada a responsabilidade do agente.

Conforme pondera Juan Ignácio Piña Rochefort,410 a concorrência dos dois elementos, no entanto, por si só, não garante a responsabilidade do agente, sendo necessário que a eles não concorra quaisquer das circunstâncias a que a lei tenha dado capacidade de eximir de responsabilidade o agente, conhecidas como defesas gerais, na medida em que sua aplicação se refira à generalidade dos delitos, ou especiais, na medida em que sua aplicação se restrinja a algum deles:

Sin embargo, la concurrencia de estos dos elementos no garantiza sin más la existencia de la responsabilidad. Es necesario además que no concurra alguna de las circunstancias a las que la ley o el common law ha dado capacidad de eximir de responsabilidad al agente. Estas circunstancias se conocen como defensar generales (en la medida que su aplicación se rfiera a la generalidad de los delitos) o especiales (en la medida que su aplicación se restrinja a alguno o alguno de ellos). Sobre estes dos pilares se estructura la teoria del delito del sistema anglosajón. Por una parte la afirmación de la concurrencia de los elementos que integran la definición del delito, por otra, la negacion de la concurrencia de alguna defensa. Solo una vez que ambos hechos se confirman, puede sucederse la responsabilidad penal.

408

ROCHEFORT. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.14. 409

ROCHEFORT. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.14. 410

Desta forma, os pilares que sustentam a teoria do delito no sistema anglo- saxônico são, de um lado a afirmação da ocorrência dos elementos que integram a definição do delito e, de outro, a negação da ocorrência de alguma defesa.

No que diz respeito ao actus réus, Rocheffort411 afirma que este “contiene todos los elementos del delito que non son parte del mens rea. En otras palabras, forman parte del actus réus todos aquellos hechos externos que no guarden relación con la disposición mental del agente”.

Segundo o referido autor, existem peculiaridades que tornam a formulação do Common Law diferenciada do sistema, que entitula continental, e que equivale ao romano germânico. Em linhas gerais, o que o Common Law denomina definição de delito é equiparável ao que o sistema continental denomina tipo de injusto; o actus reus equivaleria à parte objetiva do tipo e o mens rea à parte subjetiva, sendo que as causas de justificação e exculpação encontram-se confusamente agrupadas no sistema, sob o rótulo de defesas gerais:412

Si tuviéramos que equiparar las categorias anglosajonas a las continentales, com todo lo temerário que ello resulta, habría que dicir que lo que el Common Law denomina definicion del delito, el equiparable a lo que el sistema continental denomina tipo de injusto. Por su parte el actus réus, equivaldría a la parte objetiva del tipoy el mens rea a la parte subjetiva de este. Posteriormente, se hará notar que las causas de justificación y exculpación, se encuentran el el sistema confusamente agrupadas bajo el rótulo de defensas generales.

Nestes termos, torna-se importante observar, de conformidade com as ponderações do citado autor, que as causas de justificação e exculpação do sistema continental se agrupam dentro do sistema de defesas gerais do Common Law:413 “Ya hemos adelantado que, en gran parte, lo que la tradición continental llama causas de justificatión y exculpacíon se agrupan dentro de las defensas generales”.

De acordo como Rocheffort,414 há casos em que o autor ou o partícipe de um delito pratica o ato com certas motivações tão poderosas (duress) que lhe resulte impossível ou inexigível orientar o seu agir de um modo diverso. Durante séculos o sistema do Common Law tem reconhecido em certas ameaças este tipo de poder motivante, desde que a força por ameaças (duress by threats) tenha surgido pacificamente como uma defesa geral:

411

ROCHEFORT. La estructura de la teoría el delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.23. 412

ROCHEFORT. La estructura de la teoría el delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.59. 413

ROCHEFORT. La estructura de la teoría el delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.55. 414

Puede suceder que el autor de um delito (o incluso algún outro partícipe) obre com ciertas motivaciones tan poderosas que le resulta imposible (o resulta imposible exigírsele) que oriente su actuar de um modo diverso. Durante siglos, el sistema del Common Law há reconocido em ciertas amenazas este tipo de poder motivante, hasta el punto que la fuerza por amenazas (duress by threats) se há erguido pacíficamente como una defensa general.

A particularidade da formação anglo-saxônica é que esta contempla, sob este mesmo princípio, uma classe de força diferente: a força moral ou pressão externa aplicada sobre o ânimo do autor, não necessariamente terá suas origens na ameaça de um terceiro, mas em outras circunstâncias independentes das vontades de terceiros (duress by circunstances).

Apesar de, jurisprudencialmente, a força por ameaças ser notadamente superior à força por circunstâncias, estas não se regem por princípios diferentes, uma vez que o princípio de ambas as defesas está radicado em poderosas motivações que podem alterar a formação da vontade do autor, razão pela qual se erguem como defesas gerais:415

Aun cuando el desarollo jurisprudencial de la fuerza por amenazas es notablemente superior que el de la fuerza por las circunstancias, nada indica que deban regirse por princípios diferentes. Em efecto, si se reconoce que tanto uma amenaza como determinadas condiciones adversas son capaces de producir tales alteraciones em la formación de la voluntad del autor, de modo de llegar a negar la disposición mental exigida por el delito, no parece sensato aplicarles tratamientos diferentes.

Quanto ao perigo envolvido e a resistência exigível, não há acordo sobre o seu grau, devendo se ponderar sobre o que seria pior no caso concreto e como deveria se medir a tolerância do agente:416 “No existe acuerdo respecto del grado de peligro que há de existir em

la situación (sea en la amenaza o en las circunstancias) para aceptar la defensa em juicio”.

Especificamente em relação ao estado de necessidade (necessity), Rocheffort417 afirma que este se refere a uma situação em que o agente se vê envolto e, em virtude da qual a infração da norma penal aparece como um mal menor que o que se produziria se não a violasse, podendo se constituir num fundamento de defesa:

El estado de necesidad, est estado de necessidade, aquella situación em que se ve envuelto el agente y em virtud de la cual la infracción de la norma penal aparece como um mal menor que el fundamento de uma defensa. Mientras em el caso de la fuerza la voluntad del agente se vê malformadea por estímulos poderosos (como estado de necessidade el daño próprio o ajeno), em el caso de la necesidad el agente opta por la violación de la norma em aras a evitar um mal mayor.

415

ROCHEFORT. La estructura de la teoría el delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.147. 416

ROCHEFORT. La estructura de la teoría el delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.151. 417

Assim, enquanto no caso da força, a vontade do agente se vê malformada por estímulos poderosos, no caso da necessidade o agente opta pela violação da norma para evitar um mal maior.

Segundo Rochefort,418 a defesa da necessidade foi reconhecida por autores clássicos, não havendo um case law que possa justificar sua aplicação de um modo geral. Já houve casos de sentenças absolutórias reconhecendo o estado de necessidade, mas nunca houve um reconhecimento expresso deste princípio nem uma referência à necessidade como uma defesa geral, devendo se ressaltar, no entanto, que já houve reconhecimento tácito destes princípios em diversos julgados.

7.3.1. Estado de necessidade na legislação penal inglesa

Em relação ao estado de necessidade na legislação penal inglesa, Cecil Turner,419 fundamentado no direito costumeiro daquele país, afirma que o fato de uma pessoa valer-se da força para se salvar ou para salvar terceiros de um mal muito maior ou para destruir ou invadir uma residência ou propriedade alheia em caso de incêndio para por fim às chamas e evitar que a mesma se espalhe para outros locais, tem sido considerado como atos de defesa na esfera cível, apto a gerar a reparação pelos danos ocorridos.

Ocorre que estes atos de defesa criminal, invariavelmente, geram a possibilidade de uma reparação pelos danos ocorridos na área cível. Tal possibilidade termina por distorcer os limites do estado de necessidade que, na esfera criminal, tem como principal função punir o ilícito, em caso de culpa, ou determinar a sua exclusão, se reconhecida a situação de necessidade, e no contexto civil determinará a verificação de aspectos indenizatórios associados à sua prática.

A consequência desta dicotomia, conforme se observa das ponderações de Turner,420 é que se corre o risco de uma má compreensão do instituto do estado de

418

ROCHEFORT. La estructura de la teoría el delito en el ámbito jurídico del “common law”. p.154. 419

TURNER. Kenny‟s outlines of criminal Law. p.59: “The fact that a man Who has inflicted harm upon

another‟s person or property, did so for the purpose of saving himself or others from a much greater harm, has from early times been recognized as a defence in civil actions, brought to recover compensation for the harm thus inflicted. It is admitted no torp to pull down houses to prevent a fire drom spreading, or to enter a person‟s house to put out a fire. It would therefore seem natural that such prospect of greater harm shoul be still more readily admissible as a defense to criminal proceedings”.

420

TURNER. Kenny‟s outlines of criminal Law. p.59-60: “For in them the main object is not to compensate loss

but to punish actual guilt (which here seems almost or altogether absent); and punishment itself must fail to attain its great object, that of deterrence, in those cases of so-called necessity where the evil itthreatens is less than the evil which would have been suffered if the crime had not warded it off. So a person who commits some

necessidade pois, uma conduta pouco relevante na área cível pode ser muito relevante na área criminal, ou vice versa.

Ademais, como bem pondera Cécil Turner,421 é muito difícil afirmar se uma determinada conduta é evitável ou inevitável e, além disto, seria muito mais razoável e preferível para a pessoa praticar, em tais circunstâncias, uma conduta que lhe fosse mais conveniente do que outra que lhe causasse mais transtornos.

Relevante no direito criminal inglês e com forte repercussão na doutrina e jurisprudência do estado de necessidade de outros países, o julgamento do caso do Iate Mignonette, Dudley and Stephens (1884), já referido no item 2.1, em que, de acordo com Turner,422 a tese do estado de necessidade, que foi sustentada por Lord Bacon, foi vencida,

prevalescendo o entendimento da Corte de Queen‟s Bench, no sentido de que não há princípio

geral de direito que autorize um homem a tirar a vida de uma pessoa inocente para preservar a

sua própria vida: “the court of Queen‟s Bench declared emphatically that there is no general

principle of law which entitles a man to take the life of an innocent person in order to

preserve his own”.

7.3.2. Aspectos do direito comparado na legislação penal analisada

Segundo Rochefort,423 existem peculiaridades que tornam a formulação do Common Law diferenciada do sistema, que entitula, continental e que equivale ao romano germânico.

Em linhas gerais o que o Common Law denomina definição de delito é equiparável ao que o sistema continental denomina tipo de injusto, o actus reus equivaleria à parte objetiva do tipo e o mens rea à parte subjetiva, sendo que as causas de justificação e exculpação encontram-se confusamente agrupadas no sistema, sob o rótulo de defesas gerais.

trivial offense, for the purpose of saving life – who goes at night, shal we say on a lampless bicycle to fetch the fire-engine-might seem to have a valid legal excuse. Yet, though theoretical writers have been willing to accept this ground of defence, there is no English case in which the defense has been actually raised with success; however Lord Mansfield gave an obiter dictum that even an act of treason, like the deposition of a colonial governor by his council, might, in some circunstances of public danger, be justified by its necessity. The word „necessity‟ which is often used to indicate these predicaments, is somewhat mislanding”.

421

TURNER. Kenny‟s outlines of criminal Law. p.60: “Strictly speaking there is no necessity in the sense that

the thing is inevitable or unavoidable. For if it were, then there wouldo be the legal defense that the accused‟s act was not voluntary. In reality the position is that the person (perhaps with very good reason) much prefers to do the thing which he does rather than something else which would be more umpleasant”.

422

TURNER. Kenny‟s outlines of criminal Law. p.60. 423

As causas de justificação e exculpação do sistema continental se agrupam dentro do sistema de defesas gerais do Common Law, com a particularidade de que esta contempla, sob este mesmo princípio, uma classe de força diferente que é a força moral ou pressão externa aplicada sobre o ânimo do autor e que não tem suas origens, necessariamente, na ameaça de um terceiro, mas em outras circunstâncias independentes das vontades destes.

Todavia, apesar de, jurisprudencialmente, a força por ameaças ser notadamente superior à força por circunstâncias, característica do Common Law, tem-se que o princípio de ambas as defesas está radicado em poderosas motivações que podem alterar a formação da vontade do autor.

Quanto ao perigo envolvido e a resistência exigível, há que se proceder a uma ponderação das circunstâncias para se verificar o que seria pior no caso concreto e como deveria se medir a tolerância do agente.

Como já visto, relevante no direito criminal inglês e com forte repercussão na doutrina e jurisprudência do estado de necessidade de outros países, o julgamento do caso do Iate Mignonette, Dudley and Stephens (1884), em que, de acordo com Turner,424 a tese do estado de necessidade, que foi sustentada por Lord Bacon, foi vencida, prevalescendo o

entendimento da Corte de Queen‟s Bench, no sentido de que não há princípio geral de direito

que autorize um homem a tirar a vida de uma pessoa inocente para preservar a sua própria vida.