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CARTA ARQUEOLÓGICA DO CENTRO DE PORTUGAL ( Paleolítico Inferior )

4.2. O ESTUDO DOS MATERIAIS LÍTICOS

4.2.1. O estado físico das peças

A análise do estado físico dos materiais líticos talhados ( EF ) reporta-se, como já vimos, a um conjunto de alterações que incidem na superfície das peças, aferindo-se o grau de desen- volvimento de cada uma delas a partir da análise macroscópica dos materiais. O seu real significado em termos cronológicos é porém complexo e diverge em função da própria variável que se considere.

No que se refere às modificações de cor e de brilho que frequentemente se observa na superfície das peças, conferindo-lhes pátinas com diferentes matizes, o seu valor é irrelevante. “A leur origine, les agents sont si nombreux, si divers, même dans une seule couche, et leur

étude est si complexe, qu’aucune classification chronologique basée sur la patine n’a encore abouti, y compris dans un même site” (TIXIER, INIZAN e ROCHE, 1980, p.33). Num anterior trabalho citámos mesmo a circunstância, referida por A. Tavoso, de dois fragmentos de uma mesma peça poderem apresentar pátinas bastante diferenciadas devido ao facto de terem estado associados a horizontes pedológicos distintos (CUNHA-RIBEIRO, 1992-1993, p. 35).

Quanto à alteração produzida pela acção do vento na superfície dos materiais líticos talhados, vulgarmente denominada como pátina eólica, também a partir dela não se pode tirar qualquer conclusão explícita sobre a homogeneidade cronológica ou não dos conjuntos em estudo. Como já referia François Bordes nos anos cinquenta, tem de se admitir a possibilidade de que “une partie de l’industrie s’est trouvée immédiatement enfouie, tandis que l’autre partie restait exposée à l’air, au ruissellement ou au vent” (BORDES, 1950b, p. 24).

Normalmente associado também à alteração física das peças observa-se um maior ou menor desgaste evidenciado pelas arestas definidas a partir da intersecção de diferentes negativos nas peças talhadas. A génese deste fenómeno pode derivar da intervenção de múltiplos mecanismos de alteração física e fisico-química, entre os quais avulta a própria eolização. Frequentemente, porém, este tipo de situação foi imputada a uma acção de transporte de origem fluvial, pelo que se admitia que os materiais por ele afectados haviam sido submetidos a um rolamento de intensidade variável, decorrente de uma deslocação das peças ao longo de uma maior ou menor distância, deduzindo-se em consequência que os materiais mais alterados encontrados num depósito fluvial seriam mais antigos. No entanto, como François Bordes referiu “le degré d’usure ne représente que le chemin parcouru, qui peut lui-même être fort bref, si la rivière comporte des tourbillons, qui “roulent” extrêmement vite silex taillés et galets” (BORDES, 1950a, p. 408). Aliás, havíamos já anteriormente sublinhado, que se a alteração física das arestas “resulta frequentemente de um fenómeno de transporte fluvial, casos há em que pode não ser a consequência de uma acção mecânica, mas sim o resultado da erosão desencadeada por uma corrente líquida carregada de areia, o que ultrapassa claramente o significado que se atribui ao rolamento” (CUNHA-RIBEIRO, 1992-1993, p.35). Daí que se tenha então enveredado por utilizar a expressão desgaste para denominar a incidência desta alteração física, evitando o significado equívoco de termos como rolamento ou usura, tanto mais que este último se reservava e reserva para designar exclusivamente a deterioração decorrente do uso continuado de um determinado objecto talhado por parte do homem. Respeitando essa mesma situação, no presente trabalho optou-se também pelo recurso à expressão boleamento como sinónimo de desgaste.

Um outro aspecto directamente relacionado com a análise do estado físico dos materiais líticos talhados reporta-se aos diferentes tipos de matérias-primas ( MP ) que foram utilizadas para a sua produção e à forma diferenciada como as várias alterações consideradas nelas incidiram. Esta situação havia já sido considerada pertinente nos primeiros trabalhos em que

entre nós se procurou definir a metodologia subjacente ao chamado “método das séries”4,

muito embora a sua ponderação tenha sido posteriormente postergada de forma bastante frequente.

No que se refere às colecções paleolíticas cuja análise se desenvolveu no quadro da pre- sente investigação, esta última variável referente ao comportamento diferenciado das diferentes matérias-primas utilizadas não se revelou contudo particularmente pertinente, dado que na sua totalidade a esmagadora maioria das peças talhadas que as compunham eram em quartzito, revelando as restantes matérias-primas presentes valores quantitativos quase sempre inexpressivos.

Já o contexto secundário da generalidade dos materiais estudados, bem como o facto de uma boa parte deles ter sido recolhida na superfície esventrada de depósitos fluviais, levou-nos a entrar em linha de conta com o desenvolvimento diferenciado do desgaste das arestas das peças talhadas e, em segundo lugar, com a presença ou ausência de vestígios de pátina eólica na sua superfície, por forma a tentar discernir no interior de tais indústrias líticas a presença de conjuntos eventualmente bem distintos entre si pela homogeneidade do seu estado físico. Teve- se porém sempre em atenção o contexto estratigráfico a que era possível associar cada colecção, procurando-se dessa forma aferir numa primeira fase a pertinência dos critérios de seriação utilizados. Posteriormente, a separação destes conjuntos foi ainda confrontada, quando possível, com o estudo técnico e tipológico comparativo dos seus componentes, por forma a verificar a ocorrência ou não de uma significativa individualização entre eles, pois tal separação poderia muito bem resultar apenas da complexa dinâmica que muitas vezes justificava a alteração diferenciada dos componentes de uma mesma indústria lítica.

Em qualquer dos casos, quer em relação à aferição do grau de desgaste, quer relativamente à incidência da pátina eólica, reduziu-se ao mínimo indispensável o número de grupos considerados, evitando uma multiplicação de critérios que certamente conduziriam à definição de grupos de validade dúbia e cuja determinação se revelaria subjectiva. Mesmo assim, ter-se- ia sempre de admitir a ocorrência de peças cuja integração num ou noutro grupo classificativo seria problemática, o que só se poderia ultrapassar quando o valor quantitativo das amostragens em estudo fosse suficientemente expressivo para reduzir ao mínimo a subjectividade dessas situações pontuais.

Relativamente à análise do grau de desgaste das peças, recorremos a um critério origi- nalmente definido para o estudo das indústrias acheulenses recolhidas num terraço fluvial do rio Tejo, em Pinedo, nas proximidades de Toledo (QUEROL e SANTONJA, 1979), o qual já tinha já sido por nós adoptado num primeiro trabalho de investigação sobre o Paleolítico

4 Em 1943 Georges Zbyszewski afirmava: “Il faut tenir compte de la nature du matériel taillé, de sa dureté

et de ses possibilités d’altération. Il sera nécessaire dès lors, de refaire séparément pour chaque roche la classification précédente, car les pièces en calcaire ou en basalte, malgré un fort degré d’usure, n’auront pas le même âge que d’autres, également usées, en quartzite, en quartz filonien ou en silex (plus résistants)” (ZBYSZEWSKI, 1943, p. 11-12).

Inferior no vale do rio Lis (CUNHA-RIBEIRO, 1992-1993), bem como no estudo das indústrias líticas do litoral minhoto realizado por José Meireles (MEIRELES, 1991). Os materiais foram assim divididos em três grupos identificados pelo seu número de ordem, cada um dos quais reunindo peças cujo estado físico revelava características bem definidas.

Num primeiro grupo, identificado pelo digito correspondente à unidade (EF=1), integraram- se peças que evidenciavam um desgaste tão acentuado que se tornava mesmo difícil determinar o posicionamento das arestas resultantes da intersecção dos negativos aí observáveis, dado que estas se encontravam particularmente esbatidas pelo boleamento sofrido.

Os materiais que apresentavam indícios claros de desgaste, embora o seu grau de incidência não perturbasse a delimitação dos negativos de anteriores extracções, associaram-se por seu turno no grupo número 2.

Por último juntaram-se no chamado grupo 3 as peças cujo estado físico não permitia vislum brar qualquer vestígios de desgaste, destacando-se em todas elas a intersecção dos levantamen- tos anteriores aí presentes pelas suas arestas vivas.

Relativamente aos materiais provenientes de depósitos detríticos de textura mais fina, como ocorria em determinadas coluviões, a incidência de fenómenos de deflação nos materiais arqueológicos pontualmente aí abandonados à sua superfície desenvolveu-se, como já vimos, de forma bastante complexa. Esta situação não impediu contudo que a maior ou menor eolização dos vestígios aí exumados pudesse reforçar ou não a homogeneidade do conjunto, sempre que esta era previamente sugerida pelo estudo técnico e tipológico dos materiais talhados, bem como pelas respectivas condições de jazida. Neste sentido, paralelamente aos grupos de desgaste já referidos, considerou-se ainda a existência de dois grupos de alteração definidos em função do grau de incidência da eolização na superfície das respectivas peças.

Num primeiro grupo associado à letra maiúscula E, integraram-se os objectos líticos talhados globalmente afectados pela eolização, muito embora o grau de incidência de tal alteração possa variar de intensidade entre as diferentes zonas da superfície de cada uma das peças.

Os objectos parcialmente eolizados, evidenciando uma alteração da sua superfície pela acção do vento limitada a uma determinada face ou a uma ou mais zonas da sua superfície, foram agrupados à parte, identificados pela sigla pe.

No âmbito da análise do estado físico dos materiais estudados individualizaram-se ainda as peças com dupla pátina (dp) e assinalou-se também, sempre que tal se justificava, a presença de objectos líticos talhados com diferentes graus de desgaste que apresentavam ao mesmo tempo claros vestígios de eolização (1e, 2e ou 3e). Os materiais com dupla pátina constituíam porém um caso particularmente significativo, já que correspondiam a peças que após terem sido numa primeira fase talhadas, sofreram em seguida um desgaste mais ou menos pronunciado ou viram a sua superfície afectada pela acção do vento, sendo a sua posterior reutilização testemunhada por um número variável de levantamentos que se destacam dos

restantes pela ausência de qualquer alteração na superfície dos seus negativos. A existência destas peças tanto pode resultar da sobreposição de duas ocupações cronologicamente bem distanciadas entre si, como permite admitir nalguns casos a possibilidade de o local ter sido apenas sazonalmente habitado, sendo as condições climatéricas prevalecentes na sua fase de abandono responsáveis pela alteração entretanto sofrida pelas peças em causa.

Não se pode contudo deixar de sublinhar mais uma vez que os conjuntos definidos a partir da triagem dos materiais com base nos pressupostos acabados de definir devem ser apenas considerados como uma hipótese de trabalho. A confirmação ou não da sua validade só é no entanto alcançável por intermédio de um ulterior estudo comparativo das respectivas características técnicas e tipológicas. Acresce que, paralelamente, é ainda possível tentar de- terminar o grau de integridade de cada conjunto ou de uma indústria no seu todo aferindo as proporções relativas dos seus núcleos e utensílios nucleares com as das lascas recolhidas e deles extraídas, ou com a presença ou ausência de determinados produtos resultantes da sua transformação por talhe (SANTONJA e VILLA, 1990).