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CARTA ARQUEOLÓGICA DO CENTRO DE PORTUGAL ( Paleolítico Inferior )

3.5. A LAGOA DE ÓBIDOS

Em 1988 procurámos ainda alargar o âmbito geográfico das nossas investigações à região costeira adjacente à bacia hidrográfica do rio Lis, centrando especial atenção na área envolvente da Lagoa de Óbidos.

A presença de vestígios arqueológicos do Paleolítico inferior na zona havia sido sugerida pela primeira vez por Santos Rocha e Luís Carrisso, que publicaram nos inícios do século uma pequena nota sobre a recolha de alguns materiais líticos eventualmente talhados na Serra do Bouro (CARRISSO e SANTOS ROCHA, 1909). Poucos anos mais tarde Félix Alves Pereira efectuou novos achados, desta feita inequívocos, em Nadadouro, na margem norte da lagoa, e em Santo Isidoro, a sul das Caldas da Rainha (PEREIRA, 1915).

Ao longo dos anos quarenta Hipólito Cabaço, por seu turno, recolheu nas proximidades das Caldas da Rainha, à superfície, centenas de peças talhadas do Paleolítico inferior. Alguns desses materiais foram sumariamente descritas num pequeno trabalho da autoria de Afonso do Paço e de Hipólito Cabaço (PAÇO e CABAÇO, 1964), embora só mais tarde, após a doação destas colecções aos Serviços Geológicos de Portugal, o seu estudo tenha sido desenvolvido de forma algo mais circunstanciada (ZBYSZEWSKI e VEIGA FERREIRA, 1974; ZBYSZEWSKI e PENALVA, 1979).

Nestas últimas publicações procedeu-se à descrição dos materiais líticos oriundos de 13 locais diferentes, situados a este e a sudeste da lagoa, tendo-se efectuado a sua classificação de acordo com os métodos habituais da escola estruturada nos clássicos trabalhos de Breuil e Zbyszewski. Desta forma, as peças de cada jazida foram agrupadas em diferentes séries, de acordo com o grau de incidência da pátina eólica na sua superfície, a que pontualmente se acrescia “indícios de rolamento”, ou a sua explícita ausência.

As séries em que os objectos talhados apresentavam uma “intensa pátina eólica”, por vezes associada a um “certo rolamento”, foram consideradas do “Abbevilense”, enquanto os materiais atribuídos ao “Acheulense antigo” ou ao “Acheulense antigo e médio” evidenciavam uma “pátina eólica bastante pronunciada” e as peças com “forte pátina eólica” eram relacionadas com o “Acheulense médio” ou com o “Acheulense médio e superior”. No “Acheulense superior” incluíam-se ainda os materiais com “fraca pátina eólica” ou “eolização moderada” e os objectos “sem desgaste e com arestas vivas” tanto eram classificados do “Acheulense final” no Casal da Figueira, como do “Acheulense superior e mustierense” na jazida do Bairro. Por último, refira-se a presença nas jazidas de Lagoa e do Casal do Negrelho de pequenas séries de peças com “eolização quase inexistente”, tidas como “Languedocenses, bem como a associação ao Paleolítico superior de duas lascas “sem vestígios de pátina eólica” em Águas Santas.

A multiplicação destas séries alicerçava-se assim numa excessiva definição de diferentes níveis de incidência da eolização na pátina das peças, revelando a sua aferição uma incontornável subjectividade. Em todo caso, regista-se na esmagadora maioria dos materiais

descritos uma evidente eolização, embora nem sempre com a mesma graduação. Situação análoga pode aliás observar-se no estudo que se realizou mais recentemente na jazida de Trás do Outeiro, localizada nas proximidades da Vila de Óbidos (ZBYSZEWSKI, BELO e VEIGA FERREIRA, 1987).

A representatividade das amostragens estudadas variava também de forma significativa. Nalgumas das jazidas incluídas no estudo atrás referido apenas se identificou uma única peça, como foi o caso da Serra do Bouro, da Azenha dos Cucos e da Brigada, o que não coibiu os responsáveis pelo seu estudo de as associar ao “Acheulense médio”, no primeiro caso, e ao “Acheulense médio e superior” nos restantes dois. Em Casal da Figueira, por outro lado, a série III, correspondente ao “Acheulense superior”, integra apenas duas peças, situação que está longe de se poder considerar única nos estudos em análise.

Entretanto, M. R. Flaes havia igualmente identificado achados arqueológicos similares junto da Nazaré, um pouco mais para norte, e a meio caminho da estrada que ligava as Caldas da Rainha à Foz do Arelho. O estudo dos materiais aí recolhidos desenvolveu-se de forma mais célere, embora de acordo com a mesma metodologia. No primeiro caso tal trabalho processou-se em parceria com G. Zbyszewski (FLAES e ZBYSZEWSKI, 1946), para no segundo a colaboração se alargar a outros investigadores.

Acresce que, paralelamente, à semelhança do que sucedeu na bacia hidrográfica do rio Lis, a zona envolvente da Lagoa de Óbidos foi também objecto de prospecções arqueológicas promovidas por Manuel Heleno nos anos quarenta e cinquenta, o que se traduziu na identificação de mais de uma centena de jazidas atribuídas ao Paleolítico inferior (HELENO, 1956). Porém, também aqui a localização destas jazidas e o estudo dos materiais aí recolhidos permaneceu inédito até aos nossos dias, encontrando-se as respectivas colecções conservadas no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia.

Quando em 1988 realizámos um reconhecimento arqueológico da região, o nosso interesse orientou-se para a identificação das diversas jazidas cuja existência constava da bibliografia publicada, mas procurou-se também localizar algumas das estações do Paleolítico inferior que haviam sido detectadas por Manuel Heleno, para o que mais uma vez contámos com a prestimosa colaboração do Sr. João Pedro Santos. Só assim foi possível recolher pontualmente novas colecções e, ao mesmo tempo, reconhecer as respectivas condições de jazida dos seus constituintes.

Os materiais arqueológicos que então se detectaram provinham quer da superfície das estações, onde jaziam sobre o substrato pliocénico, cretácico ou jurássico, quer dos depósitos eólicos pouco espessos que frequentemente se sobrepunham ao substrato, depósitos esses onde se podia observar um solo pouco evoluído de tipo podzólico, o que permitia sugerir a sua associação a um episódio morfo-sedimentar recente. Os leitos de seixos que por vezes se observam no interior destes depósitos eólicos resultam da ocorrência de fenómenos de deflação poligénica, sendo como tal susceptíveis de conterem testemunhos de ocupações do local temporalmente diferenciadas entre si. Estas circunstâncias, aliadas ao facto de as peças apenas

se distinguirem pela maior ou menor incidência da eolização na sua superfície, critério distintivo esse eivado de clara ambiguidade, inviabilizaram o desenvolvimento de um estudo de vidamente fundamentado da ocupação humana da área da Lagoa de Óbidos durante o Paleolíti co inferior.