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CARTA ARQUEOLÓGICA DO CENTRO DE PORTUGAL ( Paleolítico Inferior )

3.4. O VALE DO RIO LIS

Em posição um pouco mais meridional surge a bacia hidrográfica do rio Lis, onde a descoberta de vestígios da presença do homem do Paleolítico inferior remonta também ao último quartel do século XIX, quando em 1879 Carlos Ribeiro aí recolheu à superfície dois artefactos líticos isolados, oriundos das imediações das povoações de Milagres e de Marrazes, um dos quais correspondendo a um biface (LEITE DE VASCONCELOS, 1897; FONTES, 1917), tendo pouco depois Émile de Cartailhac detectado igualmente na zona de Leiria um outro biface de que se desconhece a proveniência precisa (CARTAILHAC, 1886). Achados similares ocorreram ainda no início do nosso século, altura em que Tavares Proença Júnior encontrou também à superfície um biface na Quinta da Cortiça, nas margens do rio Lena (PROENÇA JÚNIOR, 1910; LEITE DE VASCONCELOS, 1922), e Mesquita de Figueiredo recolheu dois utensílios similares, um junto de Milagres e outro defronte do Mosteiro da Batalha, este último integrado num depósito de textura arenosa (MESQUITA DE FIGUEIREDO, 1914).

A partir dos anos quarenta, toda esta zona foi objecto de várias campanhas de prospecção arqueológica, promovidas e orientadas por Manuel Heleno, então Director do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia. Segundo o referido investigador, tais trabalhos conduziram à descoberta de “60 estações com abevilense, clactonense e acheulense”, embora a sua identificação e localização tivessem permanecido inéditas por não ter encontrado nenhuma “estação cuja estratigrafia pudesse ser a chave duma cronologia” para os achados efectuados (HELENO, 1956, p. 226 e 227). As primeiras referências nominais a estas jazidas surgem apenas posteriormente, quer no âmbito da apresentação das actividades do Museu onde haviam sido atempadamente integrados (MACHADO, 1965), quer em inventários das colecções aí depositadas (PEREIRA, 1974-1977).

O potencial interesse arqueológico desta região reforça-se porém com os levantamentos efectuados nos anos sessenta para a realização da folha de Leiria da Carta Geológica de Portugal na escala de 1/50000, que permitiram assinalar a presença de três jazidas associáveis ao Paleolítico inferior. Duas delas haviam já sido na realidade descobertas anteriormente por Manuel Heleno, que as identificou pelos topónimos de Outeiro Pelado e Pousias, e integravam- se em terraços fluviais do rio Lis, enquanto a terceira se localizava aparentemente num depósito coluvionar (TEIXEIRA e ZBYSZEWSKI, 1968).

A recolha de uma significativa colecção de artefactos na jazida de Pousias/Quinta do Cónego, situada a norte da povoação de Cortes, nas imediações da quinta homónima, veio mesmo a dar origem a um primeiro estudo circunstanciado do Acheulense da região (ZBYSZEWSKI e VEIGA FERREIRA, 1969), a que se seguiu mais tarde um outro trabalho, resultante da reunião de um novo conjunto de utensílios líticos no mesmo local (ZBYSZEWSKI

et al., 1980). Tratava-se, porém, de materiais encontrados na superfície de um terraço fluvial

intermédio que foi considerado como “tirreniano”, tendo-se apenas procedido ao seu estudo em separado e com base no “método das séries”.

Um primeiro conjunto de 25 peças foi assim repartido por quatro séries diferentes, de acordo com o rolamento e a pátina apresentada por cada objecto. Na série Ia incluíram-se dois bifaces com pátina eólica e usura das arestas que se atribuíram ao “Acheulense antigo e médio”. Três outros bifaces e uma lasca que se apresentavam “menos usados e menos patinados” foram agrupados na série Ib, considerada do “Acheulense médio”. A série II foi, por seu turno, relacionada com o “Acheulense superior” e nela se integraram 18 peças sem rolamento ou com um rolamento pouco pronunciado, ligeiramente lustradas, entre as quais se destacavam 4 bifaces, 9 unifaces e dois machados de mão. Finalmente, a série III foi definida a partir de uma única peça não alterada e atribuída ao “Languedocense”.

Posteriormente, uma outra colecção de 20 peças talhadas foi objecto de um novo estudo alicerçado nos mesmos princípios metodológicos. A série mais antiga (série I), agrupava 4 peças talhadas, incluindo 2 bifaces e 1 uniface, e era agora atribuída exclusivamente ao “Acheulense antigo”, já que os respectivos materiais evidenciavam um pronunciado rolamento. Na série II surgiam 3 bifaces, um uniface e um raspador com uma “eolização pouco pronunciada”

considerados do “Acheulense médio”. A série III, classificada como “Acheulense superior”, era, por seu turno, integrada por 3 machados de mão, 2 unifaces e três seixos talhados com “isenção de rolamento e eolização”. Finalmente, um último biface, com dupla pátina, foi associado ao “Acheulense médio e superior”.

A percentagem de artefactos e as características dos restantes objectos líticos descritos em ambas publicações deixa acima de tudo transparecer uma recolha seleccionada das peças mais elaboradas e com maiores dimensões, o que contribui para acentuar a já de si diminuta representatividade das duas amostragens.

Na sequência destas investigações surge pouco depois o estudo de algumas colecções reunidas por Manuel Heleno na área de Monte Real e conservadas inéditas no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, o qual revela também fragilidades tanto ao nível quantitativo, como em relação aos métodos aplicados na análise e classificação dos materiais. O trabalho reporta-se a um total de 55 peças líticas talhadas, oriundas de 15 sítios diferentes, o mais representativo dos quais com apenas 11 peças, tendo tido o seu exame “como base a tipologia e também o estado físico dos instrumentos e a estratigrafia local” (ZBYSZEWSKI e PENALVA, 1982, p. 300). Como, porém, se desconhece a localização precisa de tais achados e não são especificados pelos autores os princípios tipológicos a que se recorreram, o único fundamento que ironicamente emerge da classificação dos materiais líticos reside no clássico “critério das pátinas”, de cuja fiabilidade o próprio Manuel Heleno desconfiava (HELENO, 1956).

Não obstante todas as limitações apontadas, no seu conjunto estas publicações tiveram o mérito de chamar a atenção para a importância arqueológica da região, testemunhando além do mais a significativa densidade de vestígios atribuíveis ao Paleolítico inferior1.

As investigações que aí decidimos desenvolver a partir de 1984 vieram aliás a confirmar as nossas melhores expectativas. Com efeito, não só nos foi possível reunir colecções particu- larmente representativas em locais cuja existência havia já sido anteriormente assinalada, como sucedeu em Pousias/Quinta do Cónego e no Outeiro Pelado, como tivemos também o ensejo de detectar novas jazidas do Paleolítico inferior, nalguns casos associadas aos terraços do rio Lis a jusante de Leiria, noutros situadas em pontos sobranceiros aos principais vales, em conexão com depósitos coluvionares.

Um primeiro balanço destes trabalhos foi apresentado em 1987, em provas académicas que defendemos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (CUNHA-RIBEIRO, 1992-1993), tendo-se aí esboçado uma primeira interpretação dos múltiplos dados coligidos, baseada essencialmente no estudo morfo-tipológico dos materiais líticos recolhidos e na sua inserção no quadro crono-estratigráfico do Quaternário da região.

1 Não obstante as difusas referências à existência de “objectos mustieróides, soltos, na área da Quinta da

Moura, a NE de Azóia” (TEIXEIRA e ZBYSZEWSKI, 1968, p. 92), a presença de testemunhos arqueológicos associáveis a períodos posteriores da Pré-história antiga foi apenas recentemente assinalada com a descoberta, em Dezembro de 1998, no Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo, Freguesia de Sta Eufémia, da sepultura paleolítica de um criança sapiens e de diferentes níveis com indústrias do Paleolítico superior.