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Estigma, preconceito e resiliência

No documento 2016SoniaGotler (páginas 66-70)

4.1 Territórios e fronteiras

4.1.2 Estigma, preconceito e resiliência

Os participantes trouxeram muitas falas, nas quais perceberam o preconceito das pessoas. AB disse que as pessoas pensam que drogas são para os pobres e para a marginalidade. No entanto HI disse que o filme O barato de Grace (2000): “Mostrou também que qualquer classe social usa maconha, desde o mais rico ao mais pobre.”

Neste filme, o policial, o médico, o jardineiro, e muitos outros personagens, fumam maconha. O conceito de estigma pode ajudar a esclarecer o sentimento que percebi em AB. É difícil com apenas uma ou duas citações entender a complexidade deste conceito que Goffman procura desvelar. O autor esclarece que os gregos “[...] criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais procuravam evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (1975, p. 11 grifo do autor). Conforme o autor, estes sinais eram feitos no corpo para identificar pessoas que deveriam ser evitadas, principalmente em lugares públicos, tais como escravos ou criminosos. Atualmente, afirma Goffman “[...] o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que a sua evidência corporal” (1975, p. 11).

Goffman menciona três tipos de estigmas diferentes. No entanto, interessa para este estudo o estigma provocado por “[...] culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, [...]” (1975, p. 14). AB comenta que a equipe do CAPSad melhorou seu pensamento devido ao trabalho de um membro da equipe.

[...] melhorou até com os funcionários, assim o modo deles pensar tem ajudado com o negócio de não ver o cara como um sem-vergonha, mas ver o cara como um cara doente, que nem tão dizendo agora que tá evoluído, porque eles tinham um pensamento muito errado do cara, Ah, esse maconheiro, esse bêbado, ela conseguiu fazer eles ficar um pouquinho mais perto, um pouquinho mais realista como é a real (AB, 2016).

Na conversa sobre o filme Bicho de sete cabeças (2001), AB falou que o que aconteceu com o protagonista do filme, aconteceu com ele. “Os pais dos amigos ficam

dizendo que ele é drogado e não querem que ficam andando com ele.” Esta fala foi feita referindo-se ao momento em que Neto volta para casa depois da internação, vai na casa de um amigo e os pais deste amigo pedem para mandá-lo embora, que não o querem dentro de sua casa. Goffman esclarece que uma passagem por um hospital para doentes mentais instaura um estigma no sujeito e “[...] conserva sobre ele uma influência desacreditadora” (1975, p. 105).

O preconceito em relação às drogas ilícitas aparece entre os usuários em tratamento na fala de LM. No primeiro encontro, falávamos que geralmente as pessoas acham que usar drogas é uma escolha, que não deveriam nunca ter provado porque sabiam dos riscos. LM falou, então, que “Quem usa drogas sabe dos riscos que está correndo.” Perguntei se ela sabia dos riscos e LM respondeu: “Meu problema não é a droga, é o álcool.” O preconceito existe entre os usuários dos diferentes tipos de substâncias psicoativas. Bueno (2001) descreve em seu livro o tratamento diferenciado que era dispensado, nos manicômios, aos alcoolistas. “Fim de tarde... bom apenas para coçar, curtindo o peso do martírio de não fazer nada. A ociosidade era tediosa. Alguns jogavam baralho, grupo fechado, até o enfermeiro-maconheiro participou. Eram alcoólatras, grupo fechado, elite do hospício” (2001, p. 75).

Opondo-se ao termo estigma, Goffman categoriza os “normais”. “Nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão serão por mim chamados de

normais” (1975, p. 14 grifo do autor). A palavra “normal” é utilizada pelos entrevistados para

se referir ao retorno a um estado desejado de vida, como trabalhar, se sustentar, ter uma família. Um membro da equipe usa o exemplo do filme O barato de Grace (2000) para dizer que: “No filme, todo mundo que usava tinha uma vida...” HI completa a frase da psicóloga: “Normal, assim, trabalhava...”

Contudo, apesar do estigma e preconceito, é importante lembrar que os usuários de um CAPSad estão em tratamento por assim o desejarem. Nesse caso, podemos falar de resiliência? Conforme Cyrulnik

Só se pode falar de resiliência quando ocorreu um traumatismo seguido da retomada de algum tipo de desenvolvimento, a reparação de uma ruptura. Não se trata do desenvolvimento normal, na medida em que o traumatismo inscrito na memória passa a fazer parte da história do sujeito como um fantasma que o acompanha. A pessoa ferida na alma poderá retomar um desenvolvimento a partir de então desviado pela violação de sua personalidade anterior (2005, p. 7).

Algumas falas dos pesquisados podem denotar crenças e esperanças, bem como a vontade de retorno a vida “normal.” JK disse que não estava no encontro anterior porque foi

procurar emprego. AB comparou o vício em jogo do personagem do filme Tudo por dinheiro (2005) com o vício da cocaína,

Tu vê, o cara não dormia e não comia. É a mesma coisa que cheirar cocaína o dia inteiro, não conseguir se livrar que nem nós. O cara vem aí tentar parar com as drogas aí com qualquer último recurso de ajuda que tem aí, tem que tentar outras coisas, tem que ir atrás, não dá prá desanimar também, né? (AB, 2016).

NO falou que é importante colaborar com a pesquisadora, pois pode aprender algum comportamento para com o chefe para depois procurar emprego. HI disse durante a conversa sobre o filme O barato de Grace (2000) que sempre fumou maconha e sempre trabalhou.

AB citou o papel de um membro da equipe do CAPSad como uma referência na melhoria do tratamento, principalmente, na desconstrução de preconceitos da equipe de servidores. Cyrulnik (2005) afirma a importância fundamental de pessoas de referência no processo de recuperação, o autor insiste que a presença do outro é vital para a ressignificação dos traumas. AB agradeceu a Deus e disse que a pessoa nunca pode desanimar, referindo-se aos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos como vistos no filme Bicho de sete

cabeças (2001).

No entanto, as drogas são fator de traumatismo? Carl Hart, um neurocientista estadunidense, desafia nossa visão sobre as drogas através de estudos científicos e de sua própria experiência de vida. Em seu livro Um preço muito alto (2014), o autor afirma que, fatores como isolamento, carência de apoio familiar ou social e a situação sócio-econômica na qual os pais não têm tempo para seus filhos, expõe as crianças e jovens a situações de vulnerabilidade à dependência química, como vimos no filme O diário de um adolescente 1995).

Neste filme, fica claro que o protagonista, Jim, não possui uma rede social de apoio em nenhum grupo aos quais está vinculado, família, escola e amigos. No contexto do filme, Jim, adolescente de bairro de classe pobre, gosta muito de jogar basquete, único vínculo positivo que mantém com a escola. Porém, o treinador do time, pessoa antiética, explora sexualmente os meninos. Na sala de aula os professores (des)educam utilizando-se da violência física e verbal. Podemos perceber que a mãe gosta de Jim, porém está numa situação tão vulnerável quanto ele, cria o filho sozinha e não tem condições intelectuais e emocionais para lidar com a complexidade da vida. Acompanhamos, portanto, a sensação de vertigem e a queda livre de Jim nas vicissitudes das experiências da adolescência sem amparo, abandonada a própria sorte, ilustrada na fala de PQ “O estado lamentável que a pessoa chega.”

Situação similar e ao mesmo tempo completamente diferente pode ser encontrada no relato de Hart (2014), que foi um adolescente de bairro de classe pobre, com o esporte como principal vínculo com a escola. Embora seu contato com vários tipos de drogas, não tornou-se dependente químico, devido, segundo ele, a sua ampla rede de apoio e proteção da família extensa e de seus amigos. Dessa forma, Hart afirma que o problema não é a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e recompensa causada pela substância psicoativa o fator que determina se a pessoa vai ou não tornar-se dependente destas substâncias, mas sim, o apoio social. Conforme Hart “Os pesquisadores que estudam a resistência ao estresse constatam reiteradamente que o apoio social é um dos maiores fatores de proteção” (2014, p. 94). Fatores sociais do uso de substâncias psicoativas também mudam com a idade, afirma Hart. “Por exemplo, ter filhos e se casar estão associados à redução do uso de drogas” (2014, p. 95). A fala de AB sobre o filme O barato de Grace, confirma a colocação de Hart, senão na realidade, pelo menos no desejo de AB.

Prá quem já fez um crime ali, matar não custa nada, vai dá no mesmo, um a mais, um a menos, o cara não ta nem aí, daí mostrou ao mesmo tempo um usuário, duma família, duma pessoa, da responsabilidade de um marido que não sabia que a mulher tava grávida e se envolveu com isso aí (referindo-se a venda de maconha). Se tu souber que vai ter uma família, tu logicamente não vai se envolver (AB, 2016).

AB estava se referindo ao personagem jardineiro que fumava e vendia maconha junto com Grace e quando soube que sua mulher estava grávida mudou de perspectiva.

Quanto a Jim Carrol, poeta, músico e escritor, acaba encontrando apoio num homem que, as vezes, dividia com ele a quadra de basquete do bairro. Este amigo ofereceu-lhe ajuda, pois havia passado pelo mesmo problema. O filme Diário de um adolescente (1995), é baseado no livro que Jim escreveu contando sua história (interpretada por Leonardo DiCaprio). No final do filme, Jim está numa palestra para adolescentes numa escola, falando de seu livro, e ao que parece, bem de saúde. Estas e outras histórias me fazem concordar com Frankl (2008), psicólogo judeu austríaco que viveu por três anos num campo de concentração nazista, quando faz uma crítica ao que ele chama de pandeterminismo, visão de ser humano “[...] que descarta sua capacidade de tomar uma posição frente a condicionantes, quaisquer que sejam” (2008, p. 152-153). O psicólogo sustenta que podemos predizer o futuro das pessoas somente “[...] dentro de um quadro muito amplo de um levantamento estatístico relativo a um grupo inteiro; a personalidade individual, entretanto, permanece essencialmente imprevisível” (2008, p. 153). As previsões, segundo Frankl, precisam captar as condições biológicas, psicológicas ou sociológicas e, mesmo assim, “[...] uma das principais

características da existência humana está na capacidade de se elevar acima dessas condições, de crescer para além delas” (2008, p. 153).

Carl Hart também desconstrói a visão fatalista sobre substâncias psicoativas e afirma que “Em matéria de drogas, a maioria das pessoas tem convicções que não se apóiam na realidade” (2014, p. 114). O autor insiste em dizer que as crenças de quem faz uso problemático de drogas, assim como também, da maioria dos profissionais que tratam do problema, prejudicam o tratamento das pessoas e da criação de políticas públicas adequadas para lidar com a questão.

No documento 2016SoniaGotler (páginas 66-70)