• Nenhum resultado encontrado

Estudo da dependência química pelo viés das ciências humanas

No documento 2016SoniaGotler (páginas 42-45)

2.3 Dependência química

2.3.5 Estudo da dependência química pelo viés das ciências humanas

Segundo Ormezzano, Gallina e Albani, a dependência química, vem sendo vista, atualmente, “[...] por uma perspectiva da integralidade, que envolve diversas áreas do conhecimento na acolhida aos usuários de drogas” (2013, p. 43). No entanto, durante muito tempo, as pessoas que apresentavam quadros de dependência química eram vistas como marginais e essa condição era relacionada a problemas de caráter dos sujeitos. O recurso utilizado para lidar com a questão era trancá-los em hospitais psiquiátricos e exilá-los da sociedade. De acordo com as autoras, esse cenário desumano estava amparado pela lei, independentemente de quem fossem os sujeitos envolvidos:

[...] em 1934, surgia a primeira versão daquela que se tornaria a primeira ‘Lei de Drogas’ do Brasil e que já marginalizava os usuários. Na verdade, essa lei não foi a primeira a tratar do tema, mas fazia referência à ‘toxicomania’, definindo-a, a exemplo da França (em 1917) e de outros países, como crime no mesmo nível com que tratava os ‘alcoólatras, doentes mentais, mendigos, etc.’ (SIQUEIRA, 2010, p. 65).

Ormezzano, Gallina e Albani informam que os avanços dos estudos psicossociais foram contribuindo para a mudança dessa visão e citam como exemplo a estratégia de redução de danos, adotada no Brasil na tentativa de “[...] amenizar problemas de saúde e sociais ocasionados pelo consumo de drogas, sem, no entanto, impor a abstinência como parte do tratamento” (2013, p. 44).

A estratégia de redução de danos se insere no movimento amplo da reforma psiquiátrica brasileira, “[...] que teve início como movimento social no final da década de 1970 e início dos anos 1980 e foi legitimada pelo texto legal no ano de 2001, através da Lei n° 10.216” (DIAS; OLIVEIRA, 2010, p. 29).

De acordo com Dias e Oliveira (2010), essa lei dispõe sobre “[...] a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2001), e com a posterior publicação da Portaria 3088/2011, os serviços estratégicos responsáveis para prover os cuidados às pessoas com transtornos

psíquicos decorrentes do uso de álcool e outras drogas são os CAPSad, “Serviço de saúde mental aberto e de caráter comunitário, indicado para municípios ou regiões com população acima de 70.000 habitantes” (BRASIL, 2011, p. 5); CAPSad III “Serviço com no máximo 12 leitos para observação e monitoramento, de funcionamento 24 horas, [...] indicado para municípios ou regiões com mais de 200.000 habitantes” (BRASIL, 2011, p. 6); CAPS i (infantil) serviço que “Atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas” (BRASIL, 2011, p. 6). Os autores referenciados sustentam que, aos “[...] CAPS cabe o desafio de invenção de práticas cujos objetivos não se reduzam a buscar um ideal em que haveria uma suposta cura/reabilitação representada pela abstinência às drogas” (DIAS; OLIVEIRA, 2010, p. 31).

A Lei da Reforma Psiquiátrica legitimou, portanto, a desconstrução dos saberes médico-psiquiátricos e jurídico-policiais que delimitavam as pessoas que usavam substâncias psicoativas tornadas ilícitas como doentes e criminosos. Operando sob o aval da neutralidade científica, mas engendrados a partir dos mais variados interesses econômicos, políticos e religiosos, Dias e Oliveira esclarecem que “[...] a apropriação do campo de uso das drogas por estes sistemas restringiu as possibilidades de inserção do tema em outros campos, e determinou a forma como o assunto deveria ser abordado” (2010, p. 28). No contraponto àqueles saberes, conforme Labate, Fiori e Goulart,

Insatisfeitos com a pouca atenção dada ao tema nas humanidades, com tal supremacia das ciências da saúde e com um debate público marcado pelo simplismo e por uma estéril dualidade entre posturas ‘contra’ e ‘a favor’, um grupo de pesquisadores, com vinculações disciplinares e interesses de pesquisas os mais diversos, todos de alguma forma ligados à questão das ‘drogas’, começou a se reunir para discutir regularmente o tema (2008, p. 24).

O Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LABATE; FIORI; GOULART, 2008), surgiu no ano de 2001, na Universidade Federal da Bahia, dos esforços de diversos profissionais de diversas áreas das ciências humanas que já dedicavam-se ao estudo do fenômeno do consumo de substâncias psicoativas. Segundo os autores, o grupo se constituiu sob duas vertentes de atuação:

[...] a busca pela consolidação de um eixo temático duradouro nas ciências humanas, fincando o pé num campo de pesquisa bastante inexplorado ou, infelizmente, muitas vezes mal explorado; e a inserção direta através de uma postura mais ativa, quase militante, no debate público, buscando influenciá-lo (2008, p. 24).

Este grupo de pesquisa, seguindo uma tendência geral, busca abrir-se ao diálogo interdisciplinar frente a esse fenômeno complexo e multifacetado. De acordo com Labate, Fiori e Goulart,

Entre os especialistas tem sido cada vez mais consensual que as políticas de ‘repressão’ ou ‘demonização’ do uso de drogas se mostraram historicamente ineficazes. As propostas caminham muito mais no sentido da informação e da educação, tornando disponível para a sociedade, principalmente os jovens, um conjunto de informações mais precisas sobre as ‘drogas’ e seus efeitos (2008, p. 29).

Este conhecimento teórico fundamentou a pesquisa de campo, cuja metodologia está descrita no próximo capítulo.

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa é qualitativa de cunho fenomenológico. Segundo Masini, este enfoque “[...] caracteriza-se pela ênfase ao ‘mundo da vida cotidiana’, pelo retorno àquilo que ficou esquecido, encoberto pela familiaridade [...]” (2008, p. 61). A autora afirma que não existe “o ou um” método fenomenológico, mas uma “[...] atitude de abertura do ser humano para compreender o que se mostra” (2008, p. 62). Esta abertura, esclarece Masini, é no sentido de “[...] estar livre para perceber o que se mostra e não preso a conceitos ou predefinições” (2008, p. 62). Estamos livres, conforme a autora, “[...] quando sabemos de nossos valores, conceitos e preconceitos e podemos ver o que se mostra cuidando das possíveis distorções” (2008, p. 62).

A autora afirma ainda que o “[...] método fenomenológico não se limita a uma descrição passiva” (2008, p. 63). Por descrição, a autora entende “[...] um caminho de aproximação do que se dá, da maneira como se dá e tal como se dá” (2008, p. 63). O método fenomenológico, portanto, é “[...] simultaneamente tarefa da interpretação (tarefa da hermenêutica) [...]” (2008, p. 63). Masini define interpretação como a decifração do sentido aparente, que consiste em “[...] desdobrar os sinais de significação implicados na significação literal... há interpretação onde houver sentido múltiplo e é na interpretação que a pluralidade de sentidos torna-se manifesta” (2008, p. 63). Toda hermenêutica, de acordo com Masini, é “[...] explicita ou implicitamente compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro. Ricoeur afirma que para compreender-se a si mesmo o ser humano necessita refletir” (2008, p. 63).

Foram utilizadas algumas técnicas da pesquisa participante para coleta de informações, como a entrevista livre, que para Brandão, é “[...] concebida como um diálogo aberto onde se estimula a livre expressão da pessoa com quem se conversa, amplia o campo do discurso que passa a incluir não só fatos e opiniões bem delimitadas, mas também devaneios, projetos, impressões, reticências, etc.” (1990, p. 29). Também fazem parte da pesquisa participativa as tomadas de decisões conjuntas, que foram feitas através da escolha dos filmes, dias e horários para as sessões de cinema.

No documento 2016SoniaGotler (páginas 42-45)