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Fronteiras entre ficção e realidade

No documento 2016SoniaGotler (páginas 70-73)

4.1 Territórios e fronteiras

4.1.3 Fronteiras entre ficção e realidade

Esta impressão surgiu de várias situações, nas quais minha percepção era de que os participantes ultrapassavam as fronteiras entre ficção e realidade, discutindo e argumentando sobre a possibilidade de determinadas cenas ocorrerem na vida real. Eles falaram de vários filmes como se fossem “bem como acontece na realidade.”

Sabemos que os filmes criam um efeito de realidade que supera em muito o de qualquer outra forma de arte; a imagem em movimento produz o que se convencionou chamar de impressão de realidade, base do grande sucesso do cinema. Essa impressão de realidade encontra do lado de cá da tela, uma pessoa que também está buscando a ficção e é por essa razão que ela vai ao cinema. Precisamos da ficção tanto quanto precisamos da realidade. Embora não possamos viver em um mundo de fantasias, temos necessidade de sair um pouco do mundo do real para aprender a lidar com ele. Além disso, a ficção atua como um dos elementos dos quais lançamos mão para dar sentido à nossa existência (DUARTE, 2009, p. 58 grifo do autor).

Nesse sentido, já no primeiro encontro, quando conversávamos sobre filmes, AB perguntou se eu já tinha assistido Pulp Fiction de Quantin Tarantino e Tropa de Elite 2 de José Padilha, falando em seguida que morou no Rio e que teve experiências muito fortes quando lá esteve. Compreendi que AB relacionou os filmes com as experiências fortes que teve no Rio, pois os dois filmes que citou são violentos e o segundo foi gravado no Rio de Janeiro. Falou, também, do filme New Jack city – a gang do Crack e disse que as coisas na realidade se passam bem daquele jeito.

No terceiro encontro AB falou que o filme Bicho de sete cabeças (2001) retrata bem como a sociedade vê as pessoas que usam drogas. RS perguntou se eu conhecia o filme

Segurando as pontas, falou que é uma comédia, mas que tem tudo a ver com as coisas como

acontece com o protagonista, a forma como as pessoas começam a usar drogas, enfim, o desenrolar do filme é muito real. Este usuário, provavelmente, relacionou a forma como o protagonista começou a usar drogas com sua própria experiência de vida.

No filme O barato de Grace (2000), surgiu um diálogo que demonstrou como são tênues as fronteiras entre ficção e realidade. Este filme é uma comédia que se passa numa cidadezinha do interior da Inglaterra, onde uma dona de casa com idade em torno de 55 anos, fica viúva e herda uma imensa dívida financeira do marido. O jardineiro de Grace (a viúva) fuma e cultiva maconha para uso próprio. Na cidade, várias pessoas fumam maconha, o médico, o policial, o dono do bar, e outros.

Grace (protagonizada por Brenda Blethyn) é uma exímia jardineira e um dia seu jardineiro pede para que olhe uma planta que está morrendo e no desenrolar dos acontecimentos os dois começam a produzir maconha para levantar dinheiro para pagar a dívida de Grace e para um “pé-de-meia” do jardineiro. Quando Grace vai a Londres para encontrar um comprador para seu produto de ótima qualidade, acaba envolvendo-se com um grande traficante francês e casa-se com ele. O casamento acontece no final do filme e Grace acaba ganhando muito dinheiro, mas não com maconha e sim com seu livro, que supostamente é uma ficção, mas que se trata da narrativa de sua própria aventura com o comércio ilegal de maconha. A maconha produzida, por sua vez, acaba sendo queimada por Grace para evitar uma tragédia maior, ou seja, não chega a ser comercializada.

Em relação ao casamento de Grace com o traficante, um membro da equipe comentou: “Quantos, por exemplo, conseguem casar com um traficante ou uma traficante, mas a maioria são homens, então, isso é bem de filme, né?” AB respondeu: “Isso é da vida real mesmo, traficante ganha muito dinheiro.” Membro da equipe: “Mas assim oh, quantos de vocês que vão lá e conseguem casar com a traficante, assim, que nem ela, ela acabou com o traficante (risos), é coisa de filme.” AB falou: “Um amigo meu foi pro Paraguai e casou com a filha do patrão lá.” Membro da equipe: “Sim, um ali e quantos outros que tão na rua.” AB continuou a fala do membro da equipe: “Na cadeia, morreram, tão se tratando.” TU disse baixinho para o membro da equipe: “Eu era amante do traficante.” O membro da equipe concordou: “É, então, acontece, oh!”

Entendi que o membro da equipe, preocupado com a forma como a questão do uso de maconha foi tratada no filme, procurou alguma identificação com a realidade para trazer algum tipo de mensagem sobre o filme, entretanto, as cenas do filme, mesmo as mais inusitadas, encontraram eco nas vivências dos participantes. Pude compreender também, a preocupação do membro da equipe, já que o filme trata da questão do uso de maconha de uma

forma muito divertida, sendo que os participantes riram muito. Dessa forma, as emoções despertadas pelo filme podem ter sido motivo de dúvida quanto ao entendimento dos usuários em relação ao uso da maconha e receio de que o mesmo pudesse ser estimulado.

Para nos ajudar a compreender este fenômeno, trago algumas considerações de Franco, sobre cinema e educação na hipótese-cinema de Alain Bergala, cineasta, escritor, roteirista e crítico de cinema. Conforme Franco (2011), Bergala traz uma questão fundamental, que é a forma como tratamos cinema e educação, pois temos uma cultura de uso da mídia áudio- -visual vinculada às disciplinas, ou seja, usamos os filmes como uma ferramenta para ilustrar algum conteúdo do currículo. A autora (2011) busca, entretanto, numa realidade contemporânea, ressintonizar essas relações entre cinema e educação. Para isso utiliza o termo instrução como educação escolar (sem nenhum demérito, conforme a autora), para diferenciar os momentos de uso do cinema como método da lógica disciplinar e o termo educação para se referir “[...] a transformações mais abrangentes de visão de mundo / comportamento, surgidas de situações mais aleatórias e mesmo emocionantes” (2011, p. 27). Cabe esclarecer que o estudo da autora foi feito nas escolas, no entanto, entendo que os espaços educativos não- -formais acompanham a mesma lógica.

É importante relembrar, que neste trabalho, meu foco são os processos educativos estéticos vivenciados através do cinema. Portanto, de acordo com Franco, Bergala esclarece que a utilização do cinema apenas como instrução, reduz o alcance “[...] simbólico da arte e sua potência de revelação, no sentido fotográfico do termo. A arte, para permanecer arte, deve permanecer um fermento de anarquia, de escândalo, de desordem. A arte é, por definição, um elemento perturbador dentro da instituição” (2008, p. 29-30).

Os filmes mobilizaram nossas emoções, e Franco orienta que, na elaboração dessas emoções, não se pode, “[...] pretender ‘limpar’ suas influências, pois perderemos qualquer autoridade se atuarmos, a priori, como juízes condenatórios dos mais queridos e desveladores sentimentos oferecidos pelos filmes [...]” (2011, p. 29).

O cinema, como toda forma de arte, provoca emoções, tema complexo, o qual vamos tratar neste estudo somente o suficiente para a compreensão das unidades de significados que deram origem a imagem: Cinema: o teatro da pele e as impressões que a constituem: divertimento, humor e autodistanciamento; percepção do belo; o diabo como aliado.

No documento 2016SoniaGotler (páginas 70-73)