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O espectador como criador

No documento 2016SoniaGotler (páginas 88-91)

4.3 Tornar-se si mesmo

4.3.2 O espectador como criador

Os participantes criaram, a partir da identificação com as histórias e cenas dos filmes, narrativas de acontecimentos de suas vidas. No filme O barato de Grace (2000), JK coloca- se, através de sua fala, dentro do filme:

Prá mim foi legal o filme, teve parte ali que eu me identifiquei, aquela parte que eu tava na praia de Ingleses, Florianópolis, uma praia meia deserta assim, não me lembro o nome da praia, que eu tava naquelas pedra, tava eu e uma mina, e ela fumava e eu fumando assim, é a mesma coisa, nós dava risada. Mas na realidade não é uma droga pesada, mas é uma droga que a psicóloga, o doutor já me falou estraga, detona os neurônio da gente (KJ, 2016).

Esta identificação do espectador com os filmes, segundo Duarte, é

[...] definida na teoria psicanalítica como um processo psicológico por meio do qual o indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, de acordo com o modelo escolhido. Numa perspectiva mais geral, essa seria a operação pela qual o indivíduo humano se constitui enquanto tal (2009, p. 59).

A autora esclarece que, em relação ao cinema, “[...] identificar-se com a situação que está sendo apresentada e reconhecer-se, de algum modo, nos personagens que a vivenciam é o que constitui o vínculo entre o espectador e a trama” (2009, p. 59). No filme Bicho de sete

cabeças(2001), foi possível perceber esta vinculação com a trama, praticamente, de todas as

pessoas. Quando perguntei sobre o significado do filme, AB falou:

Quase ninguém viveu uma realidade dessas aí. Essa aí é uma história que aconteceu, praticamente, comigo também. Até foi meio duro de assistir isso aí, não queria lembrar mais disso aí. Não fiquei em manicômio, mas tipo em clínica forçada. Eu nem queria falar muito disso aí, porque retrata a minha primeira internação, né. Das primeiras, na terceira eu tinha passado já e tinha me recuperado e resolveram me levar pro São Pedro em Porto Alegre e eu não queria tomar remédio e eles diziam: toma remédio senão tu vai ser contido. Eles descobriram que eu escondia remédio embaixo da língua e diziam que eu ia ter que ser contido e pá, umas injeção prá mim capotar. Daí no dia de visita eles me davam dois neosine e eu só tomava um, então chegava a mãe lá e o pai e eu não conseguia falar. No primeiro mês eu consegui dizer: me tirem daqui e eles me tiraram de lá (AB, 106).

AB narrava sua história e era como se ele fosse Neto (protagonista interpretado por Rodrigo Santoro). Consegui relacionar o que AB disse com as memórias recentes das cenas do filme. AB continuou relatando sua história numa intensidade emocional como se a estivesse vivendo novamente. Um membro da equipe perguntou se ele tinha usado camisa de força, ao que AB respondeu com mais fatos, desconsiderando a pergunta, que foi feita novamente por outro participante e também por mim, pois havia certa insistência para que a resposta fosse dada por AB, se ele havia ou não usado camisa de força. Então ele respondeu assim: “Bom, eu tô explicando prá vocês, não é que nem hoje que eu já sou meio coroa e troço e tal, é o seguinte: eu não vou tomar remédio e se alguém chega e quiser, vai dar pau. Eu voava neles todo dia, claro que tinham que me amarrar.”

Relendo essa passagem da entrevista compreendi que AB não respondia diretamente à pergunta, porque não era esse o ponto fundamental de sua narrativa, se havia ou não usado camisa de força era irrelevante. AB estava significando sua narrativa na ênfase ao seu sofrimento e a sua resistência e, na minha percepção, o fato de AB relatar, várias vezes, o comportamento covarde das pessoas que o tratavam nas clínicas em que esteve internado era para, justamente, enfatizar sua capacidade de reação frente àquela condição de humilhação e submissão a que lhe impuseram. AB estava interpretando seu drama. Para Nietzsche, segundo Dias: “Interpretar é criar” (2011, p. 57). A autora esclarece que quando Nietzsche afirma que

[...] não há nada para ser ‘explicado’, mas interpretado, que nada há para ser descoberto, mas inventado e que explicar é referir uma coisa inusitada a coisas habituais, ele está querendo dizer que não há um mundo de coisas dadas para o intelecto desvelar, para extrair delas sua verdade. Tudo o que constitui o mundo é uma soma de valorações (DIAS, 2011, p. 58).

Não é suficiente conhecer os fatos, é preciso experienciá-los e ter o direito de valorá- los. Dessa forma, para Dias, “[...] interpretar e organizar o mundo não quer dizer conhecê-lo, mas criá-lo” (2011, p. 58-59). A idéia que Dias expõe da filosofia de Nietzsche, é a de que não existem acontecimentos em si, mas o “[...] mundo dos valores, o único existente, é um mundo das perspectivas; é resultado das avaliações de uma perspectiva particular, da conservação ou intensificação da potência” (2011, p. 60).

Sendo assim, em relação ao cinema, é possível dizer, com Fischer e Marcello, que a “[...] imagem é irredutível às interpretações ou às significações, pois estas são e serão sempre inesgotáveis” (2011, p. 508). As autoras citadas (2011) recorrem também a Merleau-Ponty para entender que na pesquisa com imagens não existe uma verdade do que está ali exposto. O filósofo nos diz que a “[...] arte da poesia não consiste em descrever didaticamente as coisas

ou expor idéias, mas de criar uma máquina de linguagem que, de maneira quase infalível, coloca o leitor em determinado estado poético” (1983, p. 115). Da mesma maneira, acontece num filme, afirma Merleau-Ponty:

O sentido de uma fita está incorporado a seu ritmo, assim como o sentido de um gesto vem, nele, imediatamente legível. O filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio. A idéia fica, aqui, restituída ao estado nascente, ela emerge da estrutura temporal do filme, como, num quadro, da coexistência de suas partes. Trata-se do privilégio da arte em demonstrar como qualquer coisa passa a ter significado, não devido a alusões, a idéias já formadas e adquiridas, mas através da disposição temporal ou espacial dos elementos (1983, p. 115).

De acordo com Dias “Tudo o que acontece é um conjunto de fenômenos escolhidos por um intérprete” (2011, p. 61). Portanto, segundo a autora (2011), essa vontade criadora, atua constantemente como autoinventora, é uma atividade e não uma expressão do instinto de conservação.

Nesse sentido, pude perceber que, através do filme, AB pôde reviver sua história e queria ser reconhecido na sua atuação, talvez assim como Neto foi reconhecido por nós, os espectadores daquela sala, como vítima de um sistema injusto e preconceituoso, mas também como protagonista de sua história, pois conseguiu criar valor a partir de sua experiência. AB também vivenciou sentimentos conflitantes em relação a sua família, num determinado momento sentia-se culpado em relação a seus pais dizendo que eles só queriam ajudá-lo, e em outro manifestava seus sentimentos de indignação: “Esse depoimento, podia até tirar isso aí, eu sinto até vergonha disso aí, meu pai e minha mãe queriam que eu parasse e só fizeram cagada.” Questionamos que AB poderia sentir, também, orgulho de sua história. Mas ele não concordou e repetiu: “Só fizeram cagada.”

Dessa forma, compreendi que nossas vivências nesses espaços nos possibilitaram experimentar novas formas de nos ver e nos expressar, criamos perspectivas. Mesmo quando meu impulso foi de negar certos sentimentos, meus e dos participantes, posso pensar com Dias, baseada em Nietzsche, que foram assim que emergiram aqueles momentos, não precisamos explicá-los, assim como não precisamos nos fixar em determinado comportamento, podemos destruí-lo e transformá-lo. No entanto, para Dias “[...] esse movimento de vir à forma, é preciso entendê-lo em relação ao tempo, sem o qual, perderíamos a dimensão do devir. Uma forma, uma vez realizada, não dura eternamente – o tempo se encarrega de destruí-la” (2011, p. 69). A autora afirma que a vontade criadora quer crescer, mas que este crescer não quer dizer uma busca sem limites de algum objetivo, pelo

contrário, o “[...] querer crescer da vontade criadora é afirmação da temporalidade. Esse tempo não é cumulativo nem evolutivo; não há evolução contínua, mas um constante recomeçar” (DIAS, 2011, p. 69).

Este recomeço ocorreu várias vezes no mesmo dia. Em outro momento, AB perguntou- me: “Tu quase chorou assistindo o filme, né?” Respondi que sim. AB continuou: “Então imagina tu ver um negócio desses aí na vida real, tu não ia chorar? Ia, ainda mais tu participando da vida da pessoa.” Sim, AB tinha razão, eu quase chorei, só não chorei porque a mobilização da minha raiva foi mais forte. O sentimento de raiva foi também manifestado pelo membro da equipe que nos acompanhava e por BC quando perguntei se queria falar e ele respondeu: “Não, eu não vou falar, capaz, isso aí só me deu raiva”, mas um pouco depois BC disse: “Onde eu fiquei era assim.” Perguntei para BC se na época ele era menor de idade. BC respondeu: “A mãe ligou para o juiz e a polícia foi me buscar lá em casa, oito horas da manhã. Eu cheguei lá e fugi ainda.” Outro participante, DE, falou: “É a realidade da gente que passou por tanta coisa já e precisa ser melhor, né?” Indaguei se alguém mais gostaria de falar e FG comentou: “Eu gostei daquela parte que ele se revoltou, aquela hora ali que eu gostei, daí eu me senti bem, porque é muita covardia.”

Acho que todos nós naquela sala nos deleitamos com aquele momento, quando Neto foi às últimas consequências com seu ato, quando resolveu lutar com as armas que tinha. Poderia ter morrido, mas não foi o que aconteceu, ele viveu e libertou-se daquela situação e fez mais, viveu para denunciar tudo aquilo e também criou, escreveu um livro que foi inspiração para um filme, que inspirou muita gente e mostrou os equívocos de um sistema cruel e injusto. Se Neto reescreveu sua história, podemos nos indagar, então, sobre nossa capacidade de mudarmos o rumo, de nos reinventarmos, e para isso, vamos entrar na próxima impressão.

No documento 2016SoniaGotler (páginas 88-91)