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Liberdade e destino

No documento 2016SoniaGotler (páginas 91-96)

4.3 Tornar-se si mesmo

4.3.3 Liberdade e destino

O nome desta impressão que é também o nome do livro do psicólogo Rollo May, foi escolhido devido ao meu pensamento de que existem condições que nos são dadas pelo nascimento com as quais temos que aprender a enfrentar o mundo. No entanto, há outras que nos acontecem, e a partir das quais, temos alguma liberdade para mudar ou não. Conforme May, é um “[...] fato surpreendente que a liberdade tem sido considerada, ao longo da história humana, tão preciosa que centenas de milhares de seres humanos morreram de bom grado por ela” (1987, p. 15).

Contudo, o conceito de liberdade não é tão simples assim de se captar, se é que isso é possível, como quis Schelling, que de acordo com May “[...] achava que liberdade era axiomática, que até falar e pensar pressupõe a liberdade, não havendo assim necessidade de prova” (1987, p. 17). O psicólogo esclarece que precisamos compreender a natureza excepcional da liberdade, por ela não ser oferecida, pelo fato de que sua função é “[...] mudar sua natureza, tornar-se algo diferente do que é em qualquer momento determinado. Liberdade é a possibilidade de se retirar, de se excluir, negar e neutralizar o próprio crescimento. Paul Tillich escreve: “‘A natureza da liberdade é determinar a si mesma’” (1993, p. 18). May considera a liberdade a mãe de todos os valores.

Se consideramos valores como honestidade, amor ou coragem, vamos descobrir, por mais estranho que possa parecer, que não podem ser situados em posição paralela ao valor da liberdade. Pois os outros valores derivam o seu valor de ser livre; são dependentes da liberdade (1987, p. 18).

A liberdade, portanto, conforme o autor citado, “[...] é mais do que um valor em si mesmo: sustenta a possibilidade de avaliação; é básica para a nossa capacidade de determinar o valor” (1987, p. 19). Sendo assim, podemos considerar que não existe um conceito auto- evidente de liberdade e, portanto, May questiona,

Não encaramos com muita facilidade e prontidão a liberdade como um direito de nascimento, esquecendo que cada um deve redescobri-la por si mesmo? Esquecemos as palavras de Goethe, ‘Só ganha a liberdade e existência / Quem a reconquista todos os dias?’ Contudo o destino voltará para nos atormentar, enquanto não for reconhecido. O destino está eternamente presente para nos lembrar que existimos como parte de uma comunidade. Não podemos nos dar ao luxo de ignorar ‘os que foram antes’, como diz Tocqueville, e ‘os que virão depois’ (1987, p. 32-33).

O pensamento de Rollo May nos auxilia na compreensão desta impressão, pois o filme

Intocáveis (2011) mobilizou os participantes no sentido da relação que estabelecem com o

tempo passado e futuro. As vivências de Driss (personagem representado por Omar Sy), negro, pobre e já marcado com passagem pela prisão, e Phillipe (personagem representado por François Clozet), branco, rico, culto, tetraplégico, trouxeram reflexões relativas a questões como: resistência a novas experiências, ter uma nova chance, aceitar o outro e ser aceito e transformar a própria vida em algo totalmente diferente do que era. Para JK o filme significou

Respeito, porque no começo o negão (Driss) não aceitou e depois aceitou o jeito do cara ser e mudou a vida do negão, né. E como o negão teve problema nas antiga, mas ele (Phillipe) não quis saber, passado é passado, não importava o que ele tinha feito, importava o presente, isso aí me pegou bastante (JK, 2016).

Outros participantes assentiram. CD falou:

É, foi o que mais me chamou a atenção no filme, o outro senhor (parente de Phillipe) disse prá ele (Phillipe) que condenava o passado do negão, e ele (Phillipe) nem quis saber quem era e ele (Driss) tava com uma vida nova, uma nova chance né, e acho que ele (Driss) mudou totalmente a vida do senhor aquele (CD, 2016).

Na mesma direção AB disse: “Prá mim também.” No tom de voz e expressão utilizados pelos participantes pude perceber o quanto aquilo tinha sido significativo, era como se eles quisessem dizer: “É isso que eu preciso para mudar a minha vida, uma oportunidade de trabalho, mas teria que ser de alguém que não considerasse meu passado.” No entanto, a reflexão dos participantes não foi no sentido de acontecer algo mágico em suas vidas, pelo contrário, eles ponderaram sobre as dificuldades que Driss precisou enfrentar cuidando de Phillipe, ou seja, demandou aceitação e escolha daquela situação por parte de Driss.

No filme fica muito claro que, apesar de Driss estar vivendo num conforto nunca antes imaginado por ele, precisou aceitar o ônus de seu trabalho, tudo o que implicava cuidar de todas as necessidades físicas de um tetraplégico. No entanto, após vencer a barreira inicial de seu trabalho, Driss foi além, conforme a fala de CD: “E depois tudo o que o negão se dedicou por ele (Phillipe), fez a loucura, mas tudo em favor da melhora do cara.” No mesmo sentido FG falou:

O filme foi interessante porque ali no começo que ele (Driss) foi fazer a entrevista prá cuidar do cara (Phillipe), no começo ele não queria. Acho que não era o que ele queria, apesar que ele queria só aquele bagulho do desemprego, ele nem podia imaginar que ele ia trabalhar lá cuidando do cara. No começo ele não queria e depois ele foi criando um afeto, foi gostando do convívio com o cara, porque nem a família ficava com o cara, nem a família ficava perto, que nem na festa de aniversário, eles vinham só fazer a festa por fazer mesmo, só por interesse pelo que ele tinha, né. E o cara que foi cuidar dele era de coração (FG, 2016).

É possível concordar com os participantes que Driss escolheu a possibilidade que se apresentou para ele, muito embora, tenha sido algo totalmente diferente do que ele foi buscar na casa de Phillipe. Nesse sentido, May questiona: “A possibilidade ou o poder de fazer alguma coisa em relação à situação iminente não confere à pessoa alguma responsabilidade para fazê-la?” (1987, p. 129 grifo do autor). O psicólogo também responde: “Eu escolho a

resposta sim. A responsabilidade não está mais vinculada apenas às causas passadas – isto é, o que a pessoa fez. Deve funcionar também com a liberdade presente – isto é, o que eu posso fazer” (1993, p. 129). May , no entanto, coloca liberdade e destino num paradoxo, pois a

[...] liberdade deve sua vitalidade ao destino e o destino deve seu significado à liberdade. Nossos talentos, nossos dons, são de empréstimo, a serem cobrados a qualquer momento pela morte, doença ou qualquer das outras incontáveis ocorrências sobre as quais não temos controle direto. A liberdade é essencial às nossas vidas, mas também é precária (1987, p. 33).

No entanto não foi só Driss que mudou, Phillipe aceitou muitas coisas as quais resistia, que acabaram por provocar profunda transformação em sua vida. Para XY, Phillipe, apesar de ter muito dinheiro, não tinha amigos e “[...] encontrou no cara problemático, vindo de uma história de vida de problemas, sendo criado pelos tios, de uma família problemática. Então, pelo que eu entendi, quem mais aprendeu nessa história toda foi o rico, não o pobre.” Entre a fala de XY e a fala de JK fez-se um silêncio, então perguntei: O que vocês acham? JK respondeu prontamente: “E o pobre aprendeu também com o rico, né.”

A mudança de Phillipe e o fato de que, a partir da relação com Driss ele começou a fazer coisas que um tetraplégico dificilmente faria, gerou em AB, a seguinte reflexão: “Outra coisa, que a limitação física tá na cabeça não no corpo, né. Se tu não tiver a tua alma livre, apesar dos pesares tu não pode desanimar, né. A doença pode ter acometido o corpo dele, não a cabeça.” Sobre a expressão “alma livre” da qual falou AB, penso que possa haver alguma relação com o sentimento de Frankl no campo de concentração, pois assim como Phillipe, preso a sua cadeira de rodas e Driss, limitado em sua condição sócio- -econômica, Frankl também estava com sua vida restringida pelas circunstâncias. Aproximei, então, o que nos diz Frankl em relação à vida no campo de concentração à vida dos personagens do filme. O psicólogo (2008) nos diz que o conhecimento que considera que os prisioneiros que passaram mais tempo em campo de concentração têm sua alma condicionada pelo ambiente, merece objeções e com razão se pode

[...] perguntar: ‘Onde fica a liberdade humana?’ Não haveria ali um mínimo de liberdade espiritual no comportamento, na atitude frente às condições ambientais ali encontradas? Será que a pessoa nada mais é que um resultado de múltiplos determinantes e condicionamentos, sejam eles de ordem biológica, psicológica ou social? Seria a pessoa apenas o produto aleatório de sua constituição física, da sua disposição caracteriológica e da sua condição social? (FRANKL, 2008, p. 87).

Frankl nos fornece uma resposta tanto em nível de experiência, quanto em caráter fundamental. Conta que a pessoa no campo de concentração

[...] pode muito bem agir ‘fora do esquema’. Há suficientes exemplos, muitos deles heróicos, que demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação; e que continua existindo, portanto, um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta, tanto exterior como interior (2008, p. 88).

Frankl lembra que “[...] Dostoievsky afirmou certa vez: ‘Temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento’” (2008, p. 89). Frankl (2008) fala que o sentido não é apenas encontrado na realização de valores na experiência da beleza ou da arte. “Se é que a vida tem

sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas, o sofrimento faz parte

da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo” (2008, p. 90 grifo do autor).

Na experiência de vida de Frankl, penso que podemos encontrar aquilo que Maffesoli (2004) fala de integrar todos os aspectos do ser, os “bons e os maus.” Contudo, é importante lembrar que o sociólogo alerta que, nem por isto, “[...] teria cabimento apressar-se a descartar a ação que deve ser empreendida sobre o mal. Faz parte da consciência humana negociar com ele. Há uma distinção, que encontramos no pensamento grego, que nos ajuda neste sentido” (2004, p. 39). São dois termos, um sobre o qual podemos agir e outro do qual sofremos a ação e não temos como evitar. De um lado o mal

[...] sobre o qual podemos agir, que podemos evitar de diversas maneiras. Do outro, a ‘poluição’, que é automática, tão impiedosa quanto o micróbio desta ou daquela doença, e, como tal, tragicamente incontrolável. Eu diria que ‘temos que aguentar’. Um é pontual, a outra é ‘estrutural’ (2004, p. 39).

O sociólogo sustenta que reconhecer este aspecto estrutural pode provocar

[...] uma sabedoria cotidiana da necessidade. Esta conduzindo a uma postura existencial que integra o desamparo para alcançar um equilíbrio mais completo, mais complexo, o do ‘contraditorial’, de uma lógica que não funciona em relação à superação do mal: a síntese, a perfeição, mas repousando na tensão, jamais terminada, que faz da imperfeição, da parte sombria, um elemento essencial de toda vida individual ou coletiva (2004, p. 39-40).

Estas reflexões provocaram outras formas de olhar os mesmos fenômenos, um estranhamento que levou a próxima imagem.

No documento 2016SoniaGotler (páginas 91-96)