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Capítulo 3 A aprendizagem das operações aritméticas

3.3. Multiplicação e divisão

3.3.3. Estratégias de multiplicação e divisão

3.3.3.1. Estratégias de multiplicação e divisão com números-dígito

A terceira linha de investigação relacionada com a resolução de problemas de multiplicação e divisão, identificada por Verschaffel et al. (2007), está associada às estratégias de cálculo, ou seja, à descrição e caracterização de um conjunto de procedimentos utilizados pelos alunos para, partindo de dois números, calcularem o seu produto. Estas são, frequentemente, relacionadas com tipos semânticos ou modelos intuitivos e, por vezes, o termo estratégias de cálculo é substituído por outros tais como procedimentos de solução (solution procedures) e estratégias de solução (solution

strategies) (Sherin & Fuson, 2005).

Os estudos sobre a multiplicação e divisão com números-dígito incidem, geralmente, sobre a evolução do uso de determinadas estratégias pelas crianças, partindo das relacionadas com a contagem de objetos, de materiais ou usando os dedos, até à utilização de outras associadas à formalização da operação respetiva. Ainda assim, as investigações realizadas sobre as estratégias dos alunos para multiplicar ou dividir não são consensuais, nem na sua descrição nem na terminologia usada pelos diferentes investigadores (Sherin & Fuson, 2005). Segundo estes autores, enquanto para a adição e subtração é consensual associar as estratégias usadas pelos alunos às suas conceções gerais sobre os números, no caso da multiplicação não é bem assim.

Um exemplo de um estudo com números-dígito (o maior produto a calcular foi 5×4) foi realizado por Anghileri (1989). Este relaciona as estratégias de resolução usadas pelos alunos com a estrutura dos problemas de multiplicação que lhes foram propostos, descreve as estratégias utilizadas e a sua progressão e relaciona-a com a compreensão crescente dos alunos sobre os números e sobre as conexões entre as operações adição e multiplicação. Apesar de não ser um estudo muito recente é frequentemente referenciado em investigações sobre as estratégias usadas pelos alunos quando resolvem problemas de multiplicação.

Há autores que referem que, quando se trata da multiplicação com números-dígito trabalhada explicitamente na aula, a evolução e a mudança das estratégias usadas pelos alunos estão associadas à aprendizagem e ao uso de recursos de cálculo com números específicos (Sherin & Fuson, 2005). O facto de os alunos terem um conhecimento profundo sobre alguns números permite-lhes usar novas estratégias ou as que já conhecem em novas situações. Por isso, as estratégias a que os alunos recorrem são muito sensíveis aos números envolvidos, sendo difícil de caracterizar um modelo de progressão da aprendizagem de estratégias de multiplicação, uma vez que estas variam com os diferentes contextos culturais e de aprendizagem.

No sentido de clarificar e ultrapassar as diferenças existentes nas investigações sobre a temática da multiplicação com números-dígito, Sherin e Fuson (2005) elaboram uma síntese sobre os estudos nesta área, identificam as linhas de investigação existentes e propõem uma taxonomia das estratégias usadas pelos alunos. A apresentação desta taxonomia é justificada, pelos seus autores, do seguinte modo: “Muitas vezes, na nossa opinião, há uma relação simples entre uma determinada estratégia de cálculo e o conhecimento que o aluno possui, em termos individuais, mas nem sempre é assim” (p. 350).

Os dados em que se baseia a taxonomia referida estão ancorados em estudos efetuados não só por Sherin e Fuson (2005) mas, também, por outros investigadores. Baseiam-se, sobretudo, numa investigação desenvolvida ao longo de três anos, no contexto do projeto Children’s Math Worlds Project, que envolveu alunos do 3.º e do 4.º ano de escolaridade entrevistados e observados em aula, e que incluiu duas vertentes, uma curricular e outra de investigação. O termo estratégia de cálculo, na aceção destes autores, é entendido como “padrões na atividade de cálculo, encarados com um certo grau de abstração” (p. 350).

Apesar das situações associadas à multiplicação serem diferentes das relacionadas com a adição e estarem interligadas com os recursos de cálculo dos alunos com números específicos foi adotado um procedimento semelhante ao usado com aquela operação. Assim, foram agrupadas classes de estratégias, que Sherin e Fuson (2005) denominaram por estratégias canónicas, ao tipo de recursos de cálculo associados a números

específicos que sustentam essas mesmas estratégias. As estratégias canónicas identificadas por estes autores são: contar tudo, cálculo aditivo, contar a partir de, baseadas em padrões e produtos aprendidos. Além destas foram, ainda, identificadas estratégias híbridas. Para cada uma das estratégias canónicas são identificados os recursos de cálculo relacionados, numa perspetiva de progressão da aprendizagem. O entendimento aqui de recursos de cálculo, está relacionado com o que as crianças disponibilizam, em cada momento, que lhes permite efetuar um determinado cálculo.

Por a considerar suficientemente relevante no contexto da revisão da literatura que efetuo, apresento uma adaptação da tabela construída por Sherin e Fuson (2005), sobre a progressão da aprendizagem da multiplicação com números-dígito.

Para cada uma das estratégias canónicas, a tabela tem uma leitura coluna a coluna, de cima para baixo, apresentando os respetivos recursos de cálculo, numa perspetiva de evolução da aprendizagem. A partir de um determinado momento, quando as crianças já têm um conhecimento suficientemente rico sobre a estrutura dos números até 81 (maior produto obtido a partir de dois fatores que são números-dígito) torna-se difícil distinguir as estratégias utilizadas no cálculo (Sherin & Fuson, 2005).

Um aspeto fundamental do trabalho apresentado por Sherin e Fuson (2005) é a justificação da sua universalidade em muitos aspetos. Os autores sustentam que a progressão na aprendizagem de estratégias de multiplicação com números-dígito é bastante uniforme e independente da natureza do ensino, das salas de aula e dos contextos culturais, daí a importância do seu conhecimento. Assim, para cada estratégia canónica é feita a identificação do que é considerado quase universal, do que é culturalmente dependente e do que é fortemente dependente do contexto. Ilustrando a distinção desta caracterização, os autores sustentam que as estratégias do tipo contar tudo ou de cálculo aditivo são praticamente universais, apesar de poderem surgir diferenças culturais ou dependentes do contexto de sala de aula, no modo como são utilizados alguns dos procedimentos associados. Contudo, estratégias relacionadas com produtos aprendidos são bastante dependentes da aprendizagem e da prática efetuada na sala de aula, para além de poderem estar associadas, também, a tradições culturais.

Na sequência da discussão associada à apresentação da taxonomia das estratégias usadas pelos alunos na multiplicação com números-dígito, os autores fazem, ainda, algumas observações com suporte empírico, baseando-se, tanto em estudos anteriores levados a cabo por outros investigadores, como na sua própria experiência:

– Dependência do uso da estratégia dos valores operados. Os autores apresentam evidência que a estratégia usada depende dos números-dígito envolvidos;

– Variabilidade no uso da estratégia persiste tanto durante o ensino como na

vida adulta. O uso de estratégias diferentes de acordo com os números

envolvidos mantém-se, tanto depois de os alunos serem ensinados como durante a sua vida adulta, fazendo-as depender dos números operados;

– Diversidade de variantes de estratégias. A diversidade de estratégias parece estar associada tanto aos números envolvidos como à especificidade das tarefas a resolver;

– Sensibilidade ao ensino. Alguns dados mostram que parecem existir diferenças nas estratégias utilizadas, relacionadas com o ensino;

– Mistura de recursos de cálculo. Alguns exemplos das estratégias dos alunos são ambíguos, sobretudo quando a estratégia usada depende de um grande número de recursos numéricos interligados (Sherin & Fuson, 2005).

As considerações elencadas por Sherin e Fuson (2005) são importantes, nomeadamente, quando pensamos nas suas implicações ao nível do ensino. No entanto, os próprios autores chamam a atenção para o cuidado que é necessário ter, na apropriação de alguns dos aspetos que estabelecem relações entre o uso de determinadas estratégias e o desenvolvimento de estruturas conceptuais associadas à multiplicação com números- dígito. Em particular, se é consensual que os alunos precisam de desenvolver estratégias de cálculo associadas a números específicos, é também consensual que essas estratégias não podem ser um conjunto de factos isolados, mas devem ser trabalhadas de modo integrado na sala de aula.

Tabela 3.1 – Mapa aproximado da progressão na aprendizagem (Sherin & Fuson, 2005, p. 381)

Estratégias Canónicas Híbridas

Inicialmente Contar tudo Cálculo aditivo Contar a partir de Baseadas em padrões Produtos aprendidos

Uso de tríades de multiplicação, contagem por sequências, contar tudo e cálculos aditivos Estruturas conceptuais de adição. Resolução de tarefas de multiplicação usando o contar tudo Normalizadas técnicas de desenho e do uso dos dedos das mãos.

O seu uso pode ser continuado em problemas de palavras, para além dos problemas numéricos Representam e usam recursos aditivos: 4×g= g+g+g+g Algumas técnicas devem ser desenvolvidas e usadas repetidamente. Uso como estratégia diferenciável e fraca, para números pequenos.

Uso como estratégia diferenciável e fraca. Usam algumas sequências conhecidas (2, 5 e 10) como meio de contagem rápida. Desenvolvimento do conhecimento de contar por sequências.

Uso como estratégia diferenciável e fraca. Padrões conhecidos ou induzidos cedo envolvendo o 0, 1, 5 e 10. Desenvolvimento do conhecimento de padrões, com 9s, em particular. Algumas tríades de multiplicação envolvendo números pequenos. Aprendizagem gradual de tríades de multiplicação usando os dobros (com números pequenos, aprendidos inicialmente).

6’s, 7’s e 8’s aprendidos mais tarde

Mais tarde Recursos de cálculo emergem do conhecimento rico sobre as estruturas multiplicativas dos inteiros ≤ 81

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. Torna-se difícil diferenciar as estratégias, em particular para multiplicandos pequenos.

A operação divisão é pouco referida nos documentos que abordam a aritmética com números-dígito, considerando, naturalmente, a grandeza dos números envolvidos e as especificidades da operação. Quando é mencionada em alguns dos estudos, são dados exemplos em que o dividendo é um número multidígito e o divisor é um número-dígito e é sempre associada à operação multiplicação (Fuson, 2003a; Mulligan & Mitchelmore, 1997; Sherin & Fuson, 2005). Neste âmbito, é sugerida a sua abordagem a partir de produtos relacionados, mas os autores supramencionados consideram que a investigação realizada não é suficientemente clara sobre a possibilidade da divisão ser introduzida mais cedo do que o habitual e ao mesmo tempo que a multiplicação. Ainda assim, começam a surgir alguns dados nesse sentido, associados ao projeto Children’s Math

Worlds Project (Sherin & Fuson, 2005). No contexto da divisão é feita, também,

referência à necessidade de compreender o modo como os diversos símbolos associados a esta operação podem ser ensinados e usados adequadamente pelas crianças (Fuson, 2003a).

No caso da multiplicação com números-dígito, surge uma outra linha de investigação relacionada com modelos ou estratégias de recuperação (retrieval), que se foca na natureza e no desenvolvimento deste tipo de estratégias ligadas a esta operação (Sherin & Fuson, 2005). Esta linha de investigação está associada a teorias cognitivas de processamento da informação, analisando a aprendizagem como um processo através do qual a informação é recebida, organizada, retida e usada/recuperada pelo cérebro. Uma vez que o objetivo da aprendizagem da multiplicação é o desenvolvimento da capacidade para calcular um produto – rapidamente e de modo eficaz – alguns investigadores relacionam-na com a construção e desenvolvimento de modelos cognitivos relacionados com esta operação. Apesar deste tipo de investigação estar, também, associado a estratégias de cálculo, nos estudos realizados estas são identificadas e categorizadas distinguindo-se, apenas, entre estratégias de recuperação e de não recuperação (Sherin & Fuson, 2005).

Um outro estudo sobre a multiplicação com números-dígito é o levado a cabo por Baroody (1999). Nele participaram 36 alunos do terceiro ano com um domínio muito fraco sobre os diferentes produtos cujos fatores são números entre três e nove. Segundo o

autor, os resultados verificados foram inconsistentes com os de outras investigações, em particular com os obtidos por Siegler (1988), onde é proposta a prática do cálculo associado a itens específicos no sentido de promover a mudança dos padrões de erro das crianças. No estudo de Baroody (1999) os resultados associados à multiplicação com números-dígito sugerem que as crianças inventam, progressivamente, estratégias de estimação cada vez mais adequadas e flexíveis e usam o conhecimento de relações, tais como o princípio da comutatividade, aumentando a sua compreensão sobre aquela operação.

Verschaffel et al. (2007) realçam que, no que diz respeito à proficiência com números-dígito, o trabalho a fazer deve envolver mais do que a memorização de factos associados às operações. A investigação sugere um conjunto diversificado de questões a ter em conta, relacionadas com a aritmética: o modo como as crianças desenvolvem a compreensão sobre as operações, como vão evoluindo na utilização de métodos cada vez mais eficazes e como selecionam as estratégias a utilizar consoante (ou não) os números envolvidos. É referida, também, a necessidade de aumentar o rigor metodológico dos estudos a realizar e são apontados alguns temas para investigações futuras, tais como: o aprofundamento do modo como se relaciona o desenvolvimento dos conceitos com as estratégias associadas, a realização de mais estudos sobre a subtração e a divisão e de investigações que incidam sobre a interligação entre o desenvolvimento dos conceitos associados aos números e às operações e o contexto cultural e pedagógico em que as crianças se inserem, em particular, a relação entre as suas experiências na escola e no seu meio familiar.

Associada à aritmética com números-dígito é referida, por vezes, a realização de testes cronometrados em alguns países. Contudo, existe uma certa controvérsia sobre esta questão e não há dados empíricos que sustentem o benefício deste tipo de prática. Se, por um lado, há alunos que os encaram como um desafio individual, outros há que manifestam grande ansiedade na sua realização, sobretudo se aqueles forem efetuados antes de os alunos desenvolverem o conhecimento conceptual que lhes permite responder às questões colocadas (Fuson, 2003a).