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2.2. Considerações sobre o campo da necropsia

2.2.1. Estudo cadavérico na medicina patológica

O desenvolvimento do estudo da anatomia e da ciência médica encontra relação direta com a história da autópsia (Finkbeiner et al., 2009). O interesse na investigação do interior do corpo humano é identificado nas sociedades mais antigas e há registros de manipulação do cadáver com finalidade de estudo na Europa medieval, Grécia, Egito e Roma (Amat, 2003; Espert, 2004a).

Contudo, a sua sistematização e vigência plenas tiveram início no século XIX (Espert, 2004a). Ou seja, a autópsia clínica alcança um período temporal de aproximadamente 2000 anos, mas a sua expansão e os maiores avanços foram registrados nos últimos 150 anos (Mateos et al., 2009).

O grego Hipócrates (468-377a.C.) foi uma figura que demarcou seu lugar na história da medicina, pois propôs que este campo fosse fundamentado no conhecimento científico da

natureza. Uma das formas de conhecimento da anatomia naquela época advinha da dissecação de animais. Não se pode afirmar que os hipocráticos realizaram a dissecação de cadáver humano (Espert, 2004a).

A cultura egípcia se destacou pelos conhecimentos no domínio da anatomia e farmacologia. A cidade de Alexandria se tornou um grande centro intelectual que contribuiu para avanço de diversos campos do conhecimento. O grande museu de Alexandria, fundado em 260 a.C., contava com um teatro anatômico, onde eram realizados estudos de anatomia através da dissecação de cadáveres humanos. Entretanto, em 391 d.C., o imperador romano Teodósio I, convertido ao cristianismo, proibiu os rituais pagãos, os sacrifícios e destruiu o conjunto arquitetônico dedicado à ciência e à cultura (Espert, 2004a).

Na Índia, há manuscritos datados dos séculos IV e V que registram a prática da manipulação e estudo de cadáveres humanos. O livro Nihon Shoki, que seria uma das obras mais antigas que versa sobre a história do Japão, apresenta uma crônica do ano 454, considerada como o primeiro registro de necropsia realizada nesta cultura. Esta prática teria sido interrompida, voltando a ser praticada no Japão no século XVIII (Espert, 2004a).

De acordo com estudiosos da Alta Idade Média, antes do século XIII, as dissecações realizadas em medicina aconteciam de forma isolada. As investigações neste campo iniciaram com caráter médico-legal e o interesse pelas autópsias com cadáveres humanos aumentaram e cresceram na classe médica, com investigações aprofundadas nesse campo a partir do século XVI (Espert, 2004b).

Abdalatife, médico nascido em Bagdá, em 1162, possuía vasto conhecimento do corpo humano e ensinava medicina. Ele viajou para o Egito, onde pesquisou mais de dois mil esqueletos humanos. Após as aulas na mesquita, levava os alunos para realizar exercícios práticos de dissecação em casa, possivelmente em cadáveres humanos (Espert, 2004b).

É notória a contribuição oriunda das dissecações de cadáveres humanos realizadas em Alexandria para o conhecimento da anatomia e fisiologia na medicina. A necessidade de se dedicar a essa prática cresceu e ganhou espaço a partir da segunda metade da Idade Média. Com isso, a observação do órgão direto no corpo ganhou mais importância e criou as bases para a anatomia moderna (Espert, 2004b).

Estima-se que Frederico II teria autorizado a dissecação de três cadáveres humanos para ampliar o conhecimento anatômico, no final do século XIII. Em Cremona, no ano de 1286, uma epidemia repentina motivou um médico a realizar uma dissecação humana para obter maior conhecimento sobre a doença. A primeira autópsia realizada em Pádua foi descrita pelo médico Pietro D'Abano (1250-1315) (Espert, 2004b).

Guillerme de Saliceto, cirurgião e professor da Universidade de Bolonha, é autor de uma obra que apresentava a ordem metódica de uma dissecação, a qual foi registrada em 1270. Sabe- se que ele teria realizado ao menos uma vez o referido procedimento com cadáver humano. Em Pádua ocorria a abertura ilegal dos túmulos e perseguição de caixões durante os funerais com o intuito de conseguirem cadáveres para o exercício anatômico. O Papa Bonifácio VIII promulgou a Bula "De sepulturis" que visava acabar com a referida prática clandestina (Espert, 2004b).

O médico Mondino de Luzzi deu importante contribuição no estudo da anatomia, que foi possível graças às dissecações que realizava em cadáveres humanos e de animais, tendo realizado publicamente uma dissecação humana em 1315. O ano seguinte marcou o registro do seu tratado, considerado compêndio de anatomia e manual de técnicas de dissecação, com o título de “Anatomia”, baseado em dissecações humanas (Espert, 2004b).

É relevante destacar outros marcos que a prática da autópsia teve, como: as dissecações públicas realizadas na França; no ano de 1376, em Montpellier; no ano de 1400, em Paris. Em

Lérida, Espanha, desde 1391, as autoridades se responsabilizavam de fornecer cadáveres destinados ao estudo anatômico. Em 1404, Galeazzo di Santa Sofia, professor de medicina da escola de Pádua, realizou publicamente a dissecação de um cadáver humano em Viena (Espert, 2004b).

Durante a época pré-vesaliana, pintores do movimento naturalista destacam a importância do conhecimento do corpo humano e expressaram-na em suas obras. Estes apresentavam, portanto, grande interesse pelo cadáver humano, inclusive pela prática da necropsia. Como exemplo, podemos citar: Donatello (1382-1416), Andrea del Castagno (1390- 1457), Antonio Pollaiuolo (1429-1498), Andrea de Verrocchio (1405-1488), Leonardo da Vinci (1452-1519), dentre outros. No século XVI, médicos filólogos começaram a traduzir as obras de Galeno diretamente dos originais, do grego para o latim, a maioria foi publicada em Paris (Espert, 2004c).

O Renascimento inaugurou um novo modo de pensar, considerado revolucionário. Este momento marca uma ruptura com os saberes tradicionais, como a anatomia descritiva, cuja autoridade tradicional era representada por Galeno. André Vesálio foi uma figura fundamental para esse novo modo de conceber o ensino e a pesquisa em anatomia. (Espert, 2004c).

André Vesálio, considerado pai da anatomia moderna, nasceu em Bruxelas, no ano de 1514. Ele revolucionou o ensino da anatomia, levando os alunos para presenciarem a dissecação de cadáveres, método que obteve grande êxito e reconhecimento no meio acadêmico. Durante essas aulas, Vesálio começou a encontrar contradições nos textos galênicos (Espert, 2004c).

O juiz do Tribunal Criminal de Pádua se interessou pelas investigações de Vesálio e, em 1539, colocou à sua disposição os cadáveres dos criminosos que eram condenados à morte. Isso fez com que Vesálio pudesse ampliar as suas pesquisas, realizando observações comparativas detalhadas. Com isso, Vesálio teve como afirmar com convicção que a maioria das descrições

anatômicas de Galeno não foi construída a partir da pesquisa com cadáveres humanos, mas sim de animais (Espert, 2004c).

Em 1543, Vesálio publicou a sua grande obra: “De humanis corporis fabrica”, um tratado sobre a anatomia, fruto das observações em cadáveres humanos. A nova anatomia e a nova fisiologia facilitaram o avanço da medicina, possibilitando a descrição de novas enfermidades e a realização de autópsias anatomopatológicas. Esta obra influenciou muitos anatomistas a ingressarem na prática das autópsias, especialmente na Itália, no período considerado época pós-vesaliana (Espert, 2004c).

Estima-se que foram construídos teatros anatômicos em Pisa e em Pádua, no ano de 1522. Houve em Valência, na Espanha, uma escola de anatomia, cujas práticas de dissecação eram realizadas no Hospital Geral da cidade, contribuindo para o estudo da anatomia da época. A Faculdade de Medicina de Valência se tornou importante centro de estudo de anatomia humana, tendo como base a obra de Vesálio (Espert, 2004c).

A Holanda, nesse período, se apresentava como um dos países europeus que gozava de liberdade religiosa e de pensamento. Além disso, tornou-se um expoente no ramo do comércio, o que lhe promoveu prosperidade. Tal contexto fez com que este país atraísse muitos intelectuais, cientistas e humanistas, promovendo-lhe desenvolvimento científico (Nabais, 2009).

Harmenszoon van Rijn Rembrandt (1606-1669), grande pintor holandês, teve o quadro A Lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (Figura 01) como uma de suas mais importantes obras-primas. Esta obra registra a dissecação do antebraço do cadáver de Aris Kindt, que havia sido enforcado pelo crime de assalto à mão armada. O procedimento foi realizado por membros da ordem médica da Associação de Cirurgiões, na sala de conferências da corporação, em 16 de fevereiro de 1632 (Nabais, 2009).

Figura 01: Rembrandt (1632) Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp - óleo sobre tela, 216 × 170 cm, museu

Mauritshuis, Haia - Holanda.

Apesar da relevância do trabalho de Rembrandt, este não é considerado o primeiro quadro anatômico. Tal feito é atribuído a Aert Pietersz, com trabalho datado de 1603. Registros históricos indicam que “(...) 1600 é a data da primeira autópsia pública, realizada por Ján

Jesenský (1566-1621) em Praga” (Nabais, 2009, p. 290).

É importante frisar que nesse tempo só era permitido realizar 1 (uma) autopsia por ano, que geralmente ocorria no inverno, pelo fato de a temperatura ser mais favorável à conservação do cadáver. Outra condição para o processo é que os cadáveres fossem de “(...) ex-condenados,

vítimas de enforcamento público e não podiam estar ligados à Igreja” (Nabais, 2009, p. 291,

destaque do autor).

No século XVII surgiu uma nova mentalidade anatomofisiológica, quando houve o crescimento do interesse pelo estudo da fisiologia. O estudo da anatomia também cresceu por toda Europa com a edição de livros e a criação de disciplinas dedicadas ao campo, além da construção dos teatros anatômicos para a formação dos médicos nas suas mais importantes

Universidades. Neste século, muitos médicos passaram a realizar o exame post mortem dos seus pacientes, o que possibilitou novas descobertas no campo da ciência médica (Espert, 2004d).

As contribuições de Vesálio no estudo da anatomia influenciaram a busca de relação entre os sintomas patológicos do cadáver e as enfermidades dos vivos. Giovanni Battista Morgagni (1682-1771), anatomista italiano, defendeu através dos seus estudos que os cadáveres fossem submetidos aos exames post mortem para descobrir a causa da morte e as mudanças físicas encontradas nestes em decorrência de uma enfermidade. Estima-se que Morgagni tenha realizado em torno de setecentas autópsias, fato que contribuiu para a construção de larga experiência neste campo (Espert, 2004d).

A expansão das ideias racionalistas do século XVIII foi marcada pela busca da compreensão da natureza para controlá-la. A ideia de investigação moderna ganhou espaço, visando a busca do conhecimento da verdade através da observação e experimentação em laboratório (Espert, 2004d).

Desde o século XVII, aumentou-se a demanda por cadáveres com finalidade didática, pois houve o crescimento do ensino da anatomia e da quantidade de estudantes de medicina. O aumento pela busca de cadáveres fez crescer a prática ilegal de comercialização destes, chegando a acontecer de pessoas inescrupulosas desenterrarem cadáveres que haviam falecido recentemente para vendê-los às escolas de anatomia. Tal situação foi rechaçada socialmente e contribuiu para que aqueles que trabalham com dissecação de cadáveres humanos naquela época fossem hostilizados (Espert, 2004d).

Grandes acontecimentos surgiram ao longo do século XIX, que transformaram a forma como a sociedade se organizava e o seu modo de pensar. Dentre tais mudanças podemos citar a revolução científica, a primeira guerra mundial, a migração do velho mundo para o novo mundo, o aumento da migração das zonas rurais para as urbanas, a revolução industrial, a

substituição da mão de obra humana pelas máquinas, a mudança de perspectiva da ciência médica que abandona as singularidades humanas ao concentrar esforços para estabelecer patologias e diagnósticos (Espert, 2004d).

Com relação à prática da autópsia, o melhores médicos e cirurgiões do século se distinguiram pelo uso da dissecação humana como método de suas investigações, bem como pela experiência em dissecação e como docente no referido campo. Em suma, a investigação cadavérica manteve seu papel fundamental nas investigações da época e as técnicas da autópsia foram aprimoradas (Espert, 2004d).

Rudolf Ludwig Karl Virchow (1821-1902), médico polonês, contribuiu para o desenvolvimento da anatomia patológica. Ele foi considerado o fundador da patologia celular, além de ter reconhecido a célula como unidade central na constituição do organismo, tendo sido considerado o maior patologista de todos os tempos. Virchow sentiu a necessidade de criar um método ordenado, partindo de técnicas determinadas, para a realização dos exames anatomopatológicos (Espert, 2004d).

2.2.2. Estudo cadavérico na medicina legal

A Medicina Legal pode ser definida como um “(...) conjunto de conhecimentos médicos

e paramédicos destinados a servir ao Direito, cooperando na elaboração, auxiliando a interpretação e colaborando na execução dos dispositivos legais atinentes ao seu campo de ação de Medicina aplicada” (Gomes, 1982, p. 7). É fato que a própria nomenclatura desse campo de

conhecimento explicita a ligação existente entre a medicina e o direito. Esta definição deixa claro também que nesse campo do conhecimento a medicina atua fornecendo meios que subsidiem a ação da justiça.