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2.2. Considerações sobre o campo da necropsia

2.2.3. Os técnicos em necropsia no contexto brasileiro

Há pesquisas brasileiras dedicadas ao técnico em necropsia sob a perspectiva da psicologia do trabalho e realizadas no contexto institucional dos Institutos Médicos Legais (Barros, 2004; Silva, 2014; Barros & Silva, 2004; Cavedon & Amador, 2012). Contudo, até o presente momento, não encontramos nenhum estudo realizado com técnicos em necropsia que atuam em Serviço de Verificação de Óbito no contexto brasileiro.

O Instituto Médico Legal da cidade de Belo Horizonte foi o cenário escolhido para o desenvolvimento de pesquisa, que contou com a participação de médicos legistas e auxiliares de necropsia (técnico em necropsia) (Barros & Silva, 2004; Barros, 2004). No Rio Grande do Sul foi realizada uma pesquisa com diversos servidores que atuavam no campo pericial do Instituto-Geral de Perícias (IGP). Dentre eles havia o auxiliar de perícia (técnico em necropsia) que também fez parte da investigação (Cavedon & Amador, 2012). Houve ainda estudo que se dedicou exclusivamente aos necrotomistas (técnicos em necropsia), desenvolvido no IML de uma capital do Nordeste brasileiro (Silva, 2014).

Conforme informado, os estudos supracitados foram desenvolvidos em um tipo específico de instituição, o IML, e em diferentes regiões do território nacional: Sudeste (Barros, 2004; Barros & Silva, 2004), Sul (Cavedon & Amador, 2012) e Nordeste (Silva, 2014). Apesar das diferenças regionais, estes estudos apresentaram diversos pontos em comum. Dentre eles,

podemos citar os atravessamentos relacionados ao contato direto com o cadáver, incluindo aí o caráter social negativo envolvido no tema da morte, e os riscos ocupacionais presentes no ambiente de trabalho.

O referencial teórico adotado na pesquisa desenvolvida no IML da cidade de Belo Horizonte foi a Ergonomia. Um dos pontos destacados nos seus resultados foi a atribuição aos técnicos em necropsia de tarefas inerentes aos médicos legistas, evidenciando as diferenças entre o trabalho prescrito e o trabalho real. No decorrer da pesquisa de campo, verificou-se que os técnicos em necropsia desempenhavam atividades que seriam de responsabilidade dos médicos legistas, como as dissecações, constatando que eles estavam submetidos à prática de desvio de função (Barros, 2004).

As autoras chamaram atenção ainda para os fatores inerentes ao ambiente de trabalho, enfrentados pelos trabalhadores daquela instituição, tais como: a insalubridade e o odor, dentre outras condições de trabalho inadequadas. Discorreram também sobre o aumento da demanda de trabalho, em decorrência da interrupção do atendimento do Serviço de Verificação de Óbito da cidade, e as cobranças que os trabalhadores sofriam quanto à urgência para a realização das necropsias e liberação dos cadáveres (Barros & Silva, 2004; Barros, 2004).

Nas análises de dados elas convocam o conceito de “mecanismo de defesa” para o diálogo, pois, para elas, os trabalhadores evitam saber da história do cadáver para não se envolverem com a situação. As autoras afirmam que os trabalhadores, na lida diária de realização dos exames de necropsia, procuram objetificar os cadáveres de modo que não os encarem como humanos, para que seja possível e suportável desempenhar a função. Além disso, as crenças religiosas e o uso de bebidas alcoólicas também são considerados pelas autoras como fatores que funcionam como mecanismos de defesa para conseguirem lidar com o cotidiano profissional (Barros & Silva, 2004; Barros, 2004).

A análise produzida no estudo realizado com a equipe pericial do Instituto-Geral de Perícias é embasada no referencial teórico da Clínica da Atividade. As autoras alertam para o fato de estes trabalhadores depararem no seu cotidiano com cadáveres que tiveram uma morte relacionada à violência. Ao mesmo tempo, estes trabalhadores têm que lidar com aqueles que enfrentam a dor da perda e cuidar para não aumentar ainda mais o sofrimento dessas pessoas (Cavedon & Amador, 2012).

Cavedon e Amador (2012) citam a expressão ouvida de um dos trabalhadores, o qual afirmou que: “Trabalhar com o que a gente trabalha não é pra qualquer um; exige estômago”

(p. 185). Elas ressaltam que, além de estes trabalhadores precisarem “ter estômago”, fazendo alusão às adversidades que têm de suportar cotidianamente, o fazer profissional exige deles outras habilidades para o bom desempenho da função, como: a visão, a audição, o raciocínio e o fator emocional. Tais habilidades têm relação com o caráter investigativo inerente à função, com o qual é preciso “estar atento a todo e qualquer detalhe do local, prestar atenção aos vestígios, analisar possibilidades, compor hipóteses, formular dinâmicas (...)” (p. 185).

De acordo com as autoras, “frente ao risco e ao perigo, os coletivos de trabalho acabam por se potencializarem como forma de sobreviverem a estas experiências” (Cavedon &

Amador, 2012, p. 196). Para elas, a exposição aos diversos tipos de risco aos quais os trabalhadores estão submetidos, inclusive aqueles relacionados às intervenções de cunho investigativo realizadas fora dos muros institucionais, possivelmente contribuiriam para promover a intensificação e a consolidação dos laços do coletivo de trabalho.

A carga social negativa atribuída aos trabalhadores de perícia também esteve presente nas análises de Cavedon e Amador (2012). Um dos participantes da pesquisa, ao relatar sobre as possíveis interferências do seu trabalho em outras áreas da sua vida, afirmou haver pessoas

que não o cumprimentariam com um aperto de mãos se soubessem a função que ele desempenha.

O estudo dedicado aos técnicos em necropsia de um IML situado em uma capital do interior do Nordeste brasileiro fundamentou-se, em termos teórico-metodológicos, em 4 (quatro) abordagens teóricas. O autor adotou, portanto, as contribuições da ergonomia da atividade, da psicodinâmica do trabalho, da clínica da atividade e da ergologia (Silva, 2014).

O referido estudo contemplou em sua análise os modos de organização do trabalho e os riscos encontrados no ambiente de trabalho dos técnicos em necropsia. O autor trouxe as falas dos técnicos em necropsia denunciando os diversos riscos aos quais eles estão submetidos, sejam físicos, químicos ou biológicos. Aponta que, durante o procedimento metodológico de observação, foi possível perceber que nenhum dos trabalhadores fez uso de todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s) necessários, mesmo tendo sido disponibilizados

pela instituição. O autor pontua que os técnicos em necropsia teriam, durante a pesquisa, classificado os fatores de risco como nocivos e que, contudo, não se protegiam adequadamente. Ele sugere, em sua análise, que estes trabalhadores estariam minimizando os riscos aos quais estavam submetidos (Silva, 2014).

A relação de trabalho face ao contato diário com mortes violentas e as imagens sociais que costumam atribuir aos trabalhadores deste campo, também surgem como pontos de análise no decorrer da pesquisa. Tais questões encontrariam relação com a estigmatização que estes trabalhadores sofrem na esfera social, o que contribuiria para a produção do sofrimento psicológico, demandando-lhes o desenvolvimento de estratégias para conseguir superá-la (Silva, 2014).

A partir das análises, o autor classificou alguns comportamentos como possíveis estratégias individuais e/ou coletivas de defesa. Entre elas estariam a objetificação dos

cadáveres e a evitação do contato com a história de vida destes, o uso de recursos lúdicos, a iniciativa de diferenciar os espaços públicos e privados, a adesão às crenças religiosas e o consumo de bebidas alcóolicas. Tais estratégias seriam adotadas com o objetivo de manter o equilíbrio do trabalhador, como recurso para protegê-lo do adoecimento (Silva, 2014).

A desvalorização que o setor de necropsia e, consequentemente, os técnicos em necropsia sofreriam por parte do Estado também foi levantada pela pesquisa. Dentre tais fatores foram considerados: a baixa remuneração, o pouco investimento no setor por parte do Estado, as deficiências da estrutura física do ambiente reservado para os exames de necropsia etc. (Silva, 2014).

Outro ponto que está relacionado com a falta de valorização dos técnicos em necropsia é a forma como o cargo era tratado pela instituição, o qual era colocado como instrumento de castigo aos trabalhadores do órgão. Eram encaminhados para o setor os servidores que não apresentavam competência para outras funções, aqueles cuja formação não atendia às necessidades do órgão ou ainda os policiais que cometiam infrações graves no decorrer do exercício das suas atribuições. O setor de necropsia era considerado entre os servidores do IML como o “purgatório da polícia civil” (Silva, 2014, p. 152).

O referido procedimento de ocupação do cargo caiu em desuso, pois a via de ingresso ao cargo de técnico em necropsia no IML passou a ser através da submissão de concurso público específico para a função. Essa mudança teria possibilitado um ambiente de trabalho com técnicos em necropsia que tiveram maior poder de decisão sobre o seu ingresso e permanência no cargo. Contudo, é importante frisar que a marca da imposição compõe a história da categoria profissional na referida instituição (Silva, 2014).