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3. Trilhas metodológicas

3.4. Processos de construção de vínculos e de dados

3.4.1. Etapa 01

Em virtude da problemática aqui circunscrita, a presente pesquisa demandou o desenvolvimento de uma investigação com delineamento qualitativo (González-Rey, 2002), no campo da psicologia do trabalho (Bendassolli, 2012a) e de natureza clínica, pautada na busca da singularidade e da riqueza de detalhes. Como mencionamos anteriormente, a presente pesquisa contou com a realização de duas etapas de construção de dados, de configurações específicas.

Na Etapa 01, realizamos entrevistas semiestruturadas com cada técnico em necropsia, sendo todas elas individuais. Estabelecemos que a participação desta etapa se tornaria um pré- requisito para participar da Etapa 02, possibilitando assim a formação prévia de vínculo com os técnicos em necropsia que engajaram na etapa clínica.

Tal perspectiva visou, portanto, uma postura menos diretiva e sem intenção de generalização com relação aos dados (Martins & Bicudo, 1989) que construímos com os técnicos em necropsia. Portanto, um dos nossos interesses aqui foi a compreensão das particularidades e da profundidade da investigação das vivências desses profissionais.

A pretensão inicial era fazer o convite e realizar as entrevistas semiestruturadas de todos os técnicos em necropsia interessados, para só então iniciar a Etapa 02. Ocorre que houve dificuldade de contato com um dos técnicos em necropsia, que reside em outro município. Portanto, iniciamos as entrevistas individuais em 18/07/16 e realizamos a décima segunda, ou seja, a penúltima, no dia 21/08/16. A última entrevista da Etapa 01 só foi possível ser realizada no dia 24/09/16, após ter iniciado a Etapa 02 da pesquisa.

Uma vez que a intenção de concluir todas as entrevistas da Etapa 01 era verificar quem teria interesse e disponibilidade para participar da Etapa 02, avaliamos que a dificuldade de agenda deste técnico em necropsia comprometeria o seu ingresso na etapa clínica. Portanto, entendemos que não haveria prejuízo em iniciar as atividades da Etapa 02 antes de concluir a anterior.

O roteiro de entrevista semiestruturada (Apêndice IV), instrumento norteador desta etapa, foi pensado de modo que seguisse um recorte temporal da vivência do técnico em necropsia diante da sua trajetória profissional. Para tanto, ao elaborar este instrumento, consideramos o critério da temporalidade, começando das questões mais longínquas para as mais atuais e, por último, passamos às que abordam aspectos voltados para o futuro. Atentamos para o fator complexidade, partindo das perguntas de menor para as de maior complexidade. Consideramos ainda os temas das questões, procurando articulá-las em uma sequência coerente, agrupando aquelas que tratam de assuntos inter-relacionados (Marín, 2011).

O instrumento inicia com perguntas que remontam ao veículo informativo ou contexto biográfico que possibilitou o conhecimento dessa ocupação e a tomada de decisão pelo ingresso na mesma, aludindo aos motivadores dessa escolha e às experiências iniciais na carreira profissional. Em seguida, aborda questões relativas ao presente, de modo a contemplar as relações do trabalhador com os aspectos do seu contexto laboral, incluindo as possíveis

influências que sua ocupação profissional exerce em outros campos da vida. Ao final, tratamos sobre os planos profissionais desses trabalhadores, sobre as possíveis expectativas que eles teriam para a carreira.

No decorrer das entrevistas da Etapa 01, fomos informados da iniciativa coletiva de formalização de uma entidade de classe profissional que possa representar os técnicos em necropsia. Trata-se da Associação Brasileira de Técnicos em Anatomia, Necropsia e Tantatopraxia (ABRANT), que visa atuar em todo o território nacional defendendo os interesses da categoria. O comitê de oficialização jurídica da entidade conta com 12 (doze) representantes, que estão distribuídos entre 4 (quatro) regiões brasileiras: Centro-Oestes, Nordeste, Norte e Sudeste.

A ABRANT visa assistir os trabalhadores de nível técnico que têm o cadáver humano como objeto científico de estudo e de prática profissional. Estão incluídos nesse grupo: os técnicos em necropsia clínica/ patológica (Serviços de Verificação de Óbito e Hospitais), os técnicos em necropsia forense/ médico-legal (Institutos Médicos Legais e Polícias Científicas), os técnicos em anatomia humana (Universidades) e os tanatopraxistas (Tanatórios).

Uma das perspectivas da ABRANT é a valorização dos trabalhadores supracitados em termos de condições de trabalho, condições salariais, regulamentação jurídica das ocupações a ela vinculadas etc. Tem como planos também a criação de uma cooperativa e um sindicato. Em suma, almeja desenvolver estratégias que visam à proteção, ao reconhecimento, à garantia de direitos e ao fortalecimento da categoria.

O projeto de criação da ABRANT conta com a participação de alguns dos técnicos em necropsia que atuam no SVO onde desenvolvemos esta pesquisa. É importante notar que os trabalhadores da área demandam reconhecimento e montaram estratégias de articulação política em prol da luta pelos direitos da categoria. Apesar de haver todo este investimento e este tipo

de iniciativa em nível macro, o grupo de técnicos em necropsia do SVO em questão apresenta divisões e conflitos internos que dificultam a articulação do grupo diante da instituição, conforme veremos a seguir.

Esta etapa possibilitou que pudéssemos conhecer previamente a dinâmica da instituição, algumas das divergências entre a atividade prescrita e a atividade realizada, os entraves presentes no cotidiano etc. Os relatos que emergiram nesta etapa permitiram que nós nos defrontássemos previamente com nuances presentes nos diálogos construídos na etapa clínica, o que possibilitou novos olhares para tais questões, como os conflitos existentes no grupo, por exemplo.

Este contato inicial propiciou também a formação de vínculos com os técnicos em necropsia, dando espaço e voz a todos eles, protagonistas dessa pesquisa. No decorrer das entrevistas semiestruturadas, alguns técnicos em necropsia relataram que se depararam com questões nunca refletidas antes. Alguns chegaram a manifestar a expressão “me fez sair do modo automático”, possibilitando elaborar novas reflexões. Outros verbalizaram ainda que

sentiam falta de atendimento psicológico e/ou que seria bom tê-lo na instituição. Além da verbalização, a adesão de todos os técnicos em necropsia à pesquisa é um dado sinalizador, que converge no sentido de considerar que possa haver de fato uma demanda pela escuta psicológica por parte do grupo.