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CAPÍTULO IV – MUDANÇA INSTITUCIONAL EM DILMA I

4.3 MPs e relação Executivo-Legislativo: encadeamento de eventos

4.3.3 Evento 3: Participação da oposição

Após o acordo para o rodízio das relatorias em 2013, a oposição conseguiu a relatoria de dez medidas provisórias. Esse fato passou a constituir entrave para o governo, dependente agora de atores não alinhados para a aprovação de matérias importantes de sua agenda legislativa. Além disso, com a etapa das comissões, a oposição passou a ter mais recursos para interferir no processo de tramitação das medidas provisórias. Destarte, a participação mais ativa da oposição no rito das MPs dessas duas formas teve influência clara sobre a relação Executivo-Legislativo no governo Dilma.

No que tange às relatorias, observa-se o fenômeno de boicote do próprio governo às medidas provisórias relatadas pela oposição. A análise da MP nº 623 evidencia essa prática, adotada também em outras medidas provisórias que tiveram como relator parlamentares da oposição, como a MP nº 612 (incorporada parcialmente na MP nº 610) e a MP nº 652 (incorporada na MP nº 656).

MP nº 623 – Créditos agrícolas

A MP nº 623 concedia descontos aos empréstimos dados a agricultores da região da Sudene. A medida provisória foi editada em 19 de julho de 2013, e a comissão mista instalada em 7 de agosto. Para a presidência, foi eleito o deputado José Airton (PT-CE), e designado o senador Cícero Lucena (PSDB-PB) para a relatoria.

Após a realização de audiência pública, iniciou-se grande esforço para votar o parecer do relator. Foi marcada reunião para o dia 8 de outubro, mas, por falta de quórum, não foi realizada. Nova tentativa foi feita no dia 15, e dessa vez o quórum foi atingido. O senador Cícero Lucena leu o relatório, mas encontrou resistência na votação por parte do deputado Manoel Junior (PMDB-PB), que apresentou requerimentos para retirar a matéria de pauta e adiar a votação.

No dia 22 de outubro, outra reunião foi marcada na tentativa de votar o relatório. Dessa vez, quem tentou obstruir a votação foi o próprio líder do governo no Congresso, senador José Pimentel, que apresentou requerimentos de retirada de pauta e adiamento da votação, além do deputado Marcelo Castro (PMDB-PI), que agiu no mesmo sentido. Após acordo, a reunião foi suspensa e os trabalhos foram retomados no dia 29 de outubro, o quarto

dia de tentativa de votação do relatório. Nessa data, finalmente o relatório foi aprovado e seguiu para a Câmara dos Deputados. Mas a medida provisória perdeu eficácia no dia 15 de novembro de 2013, sem ter sua votação concluída na Câmara.

Por que o líder do governo e deputados da base governista agiriam em conjunto para obstruir a votação de uma medida provisória editada pelo próprio governo? A falta de quórum, o pedido de vista e a obstrução na votação do relatório na comissão foram movimentos nítidos para impedir o avanço da tramitação da MP nº 623. A resposta não está no mérito da medida, mas na figura do relator. O senador de oposição Cícero Lucena assumiu o posto de relator da MP porque, pelo critério do rodízio, a vaga caberia ao PSDB do Senado. Naturalmente, nessa situação o governo não dispunha do mesmo controle sobre o processo caso o relator fosse de sua base parlamentar de apoio.

Desejando aprovar a medida provisória, mas sem o controle do relator, a saída do governo foi engenhosa: incluir o texto da MP nº 623 no relatório de outra medida provisória, abandonando o trâmite da própria MP nº 623 para não correr o risco de ver aprovado texto distante de suas preferências. Os descontos das dívidas dos agricultores da Sudene foram incluídos, assim, no relatório da MP nº 618, a qual não tinha nenhuma relação com o tema, pois tratava de aporte de recursos para a Valec113 e outros assuntos financeiros. No entanto, como tal medida provisória tinha como relator um parlamentar da base aliada, o senador Valdir Raupp (PMDB-RO), o governo preferiu veicular o texto da renegociação das dívidas dos agricultores da Sudene nessa matéria ao invés de tratar do tema na MP original.

Dessa forma, o governo garantiu a aprovação do texto original da MP nº 623, ao passo que conseguiu evitar que diversos dispositivos do relatório do senador Cícero Lucena que iam além da MP original fossem aprovados na comissão.

Esse complexo mecanismo de controle do texto da medida provisória encontrou resistências e angariou críticas. A medida provisória, nesse novo formato, era menos um instrumento de governabilidade e mais uma fonte de desgastes ao governo no Congresso. A tática de afastamento da oposição logo encontrou limites. Em setembro de 2013 a Câmara não passou mais a aceitar que o parecer aprovado pela comissão mista contivesse matéria estranha ao tema original114, impossibilitando, assim, manobras de incluir o texto de uma medida provisória em outra, como visto na MP nº 623.

113Empresa pública responsável pela construção e exploração de infraestrutura ferroviária.

MP nº 617 – Alíquotas do transporte municipal

A MP nº 617 foi editada no dia 31 de maio de 2013, e reduziu a zero as alíquotas de PIS/Pasep e Cofins incidentes sobre a receita de transporte coletivo municipal. A medida estava em linha com a política de desonerações tributárias promovida pelo governo Dilma, e tinha o claro objetivo de reduzir as tarifas do transporte público municipal. Menos de quinze dias após a edição da MP nº 617, as ruas do país estavam tomadas pelas manifestações de junho de 2013, cujo objetivo inicial havia sido justamente protestar contra o aumento das passagens de ônibus. Em face do teor popular, a MP era consensual, e seria difícil imaginar que ela não seria aprovada pelo Congresso.

Ocorre que a medida provisória continha teor quase idêntico ao PL nº 2729, de autoria do deputado Mendonça Filho (DEM-PE), apresentado em 2011. No dia 11 de junho, o deputado já havia conseguido se articular com os líderes da Câmara para dar celeridade ao seu projeto, firmando acordo com o presidente Henrique Eduardo Alves quanto a aprovação de um requerimento de urgência para o PL 2729. As palavras de Mendonça Filho são claras115:

Na semana passada, nós fomos surpreendidos com a edição da Medida Provisória nº 617, editada pela Presidenta Dilma, que praticamente copiou o nosso projeto de lei. Nós levamos esse fato à Mesa Diretora, ao Presidente da Casa; levamos ao conhecimento praticamente da totalidade dos Líderes da Câmara dos Deputados e fizemos ver que era um absurdo que nós apreciássemos uma medida provisória quando existia na Casa um projeto de lei que tratava, desde 2011, da mesma matéria. Felizmente, o eco junto ao Presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves, foi positivo – junto a todos os Líderes que abordei também foi muito positivo –, no sentido de que nós priorizássemos a apreciação da matéria.

Nessa disputa pela paternidade dos projetos, a vantagem sempre pesou para o Executivo. Com efeito, a apropriação feita pelo governo em relação a projetos apresentados por parlamentares é fenômeno corrente da atividade política brasileira, no qual o Executivo atua, entre outros motivos, para manter seu domínio legislativo e gozar do credit claiming da política pública aprovada (SILVA, 2013).

No rito anterior, não é difícil imaginar como se daria essa disputa em nova análise contrafactual: o PL nº 2729, ainda que aprovado pela Câmara, ficaria parado em alguma comissão do Senado; a MP nº 617 seria votada diretamente no plenário da Câmara por volta do centésimo dia de vigência, isto é, em meados de setembro de 2013; até lá, o governo já poderia anunciar a paternidade do projeto; provavelmente o deputado Mendonça Filho

apresentaria requerimentos para obstruir a votação da matéria, os quais seriam facilmente rejeitados em plenário; aprovada a MP nº 617 nos plenários da Câmara e do Senado, o governo poderia reivindicar o crédito da aprovação da matéria, enquanto o projeto do deputado seria prejudicado.

Todavia, a inclusão das comissões acarretou o aumento dos pontos de veto e deu aos deputados maior poder de barganha. Um dia após a aprovação do requerimento de urgência do PL nº 2729, em 12 de junho, foram marcadas duas reuniões de medidas provisórias: a instalação da MP nº 617 e a votação de requerimentos da MP nº 612. Ora, o deputado Mendonça Filho conseguiu obstruir a instalação da comissão da MP nº 617 com ameaça de obstrução de outras medidas provisórias116. Também a reunião da MP nº 612 foi obstruída, mas pelo deputado Manoel Junior, que, entre outros motivos, desejava barrar a instalação da MP nº 617.

Nova reunião para instalar a MP nº 617 foi marcada para o dia 7 de agosto, também sem sucesso. Nesse ínterim, o PL nº 2729 já havia sido aprovado na Câmara e estava em apreciação no Senado. O deputado Mendonça Filho continuou a obstaculizar a instalação da MP nº 617 enquanto o governo não se comprometesse a aprovar seu projeto no Senado. A discussão do deputado com o líder do governo no Congresso esclarece a situação117:

Deputado MENDONÇA FILHO – V. Exª já me informou que, no caso da 617, expirou o prazo [para a realização da reunião] e que V. Exª vai se entender com o Governo para que se dê prioridade à urgência do projeto que é de 2011. O Governo Federal copiou o projeto e não quer, infelizmente, não sei por conta de quê, consagrar a autoria para um Parlamentar da oposição. Mas a gente está dentro da legitimidade da nossa representação política aqui no Parlamento brasileiro. E eu quero que os Regimentos da Casa, da Câmara, do Senado e o Comum, sejam cumpridos; e serei vigilante quanto a isso. V. Exª me instou a fazermos um entendimento, mas até agora não há entendimento. O entendimento aqui é cumprir o Regimento da Casa. Só isso.

Senador JOSÉ PIMENTEL – Não tenha dúvida, nobre Deputado. V. Exª é uma pessoa vigilante. Estamos sempre atentos. E no que diz respeito à 617, o compromisso é não instalar hoje, conforme disse a V. Exª. É por isso que eu nem a pautei. E vamos construir o cumprimento do acordo feito na Câmara aqui no Senado. Enquanto isso não acontecer, ninguém anda com a 617.

Na semana seguinte, no dia 13 de agosto, agendou-se nova reunião para tentar instalar a MP nº 617. Dessa vez, o deputado Mendonça Filho aquiesceu com a instalação, após

116 Observação participante.

receber do senador José Pimentel o compromisso de que o PL nº 2729 seria aprovado no Senado118:

“Eu estou dizendo aqui ao Senador Pimentel que nós não vamos obstruir a instalação dessa Comissão Mista, com o compromisso de que o texto da Medida Provisória nº 617 não venha a suplantar o texto do projeto de lei de minha autoria de 2011 e que o nobre Senador vai obter do Governo o compromisso de sanção de um projeto que mostra e que demonstra a autonomia do Legislativo em legislar matéria dessa ordem. Então, eu peço o compromisso de V. Exª e digo que, se porventura o Governo não cumprir com o acordo, nós vamos, e eu pessoalmente, adotar todas as medidas para obstruir não só essa medida provisória, mas qualquer outra medida provisória que tramita aqui no Senado e na Câmara, no Congresso Nacional”

De fato, o PL nº 2729 foi aprovado no plenário do Senado na semana seguinte, em 21 de agosto, transformando-se na Lei nº 12.860 de 2013. Já a MP nº 617, apesar de perder objeto com a aprovação do projeto do deputado Mendonça Filho, teve relatório aprovado na comissão com a inclusão de outros pontos. No entanto, não houve tempo hábil para a aprovação pelos plenários da Câmara e Senado, de modo que a MP perdeu vigência por decurso de prazo em 27 de setembro de 2013.

Em suma, o projeto de um deputado da oposição foi aprovado e transformado em lei em detrimento de uma MP do governo. O caso revela de maneira clara como as novas possibilidades de obstrução nas arenas das comissões deram aos parlamentares maior força para lidar com o Executivo. A apropriação pelo governo de uma matéria popular, especialmente no contexto das manifestações de junho de 2013, não prosperou devido à obstrução feita nas comissões.

Os casos das MPs nºs 617 e 623 ilustram a maior participação da oposição no novo rito de tramitação das medidas provisórias e como isso interferiu na relação do governo com o Congresso. A Figura 7 permite visualizar melhor esses processos que tiraram força do principal instrumento legislativo do governo e assim contribuíram para desgastar a coalizão governista.

Figura 7 – Sequência de eventos relacionados à participação da oposição Elaboração própria