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Evolução da literatura de cordel em Portugal (séculos XVI a XVIII )

Não será possível exibir com toda a certeza a data exata da introdução dos folhetos de cordel no nosso país, nem as circunstâncias em que surgiu. De qualquer forma, teremos de considerar que o conjunto dos folhetos de cordel produzidos em Portugal faz parte de um fenómeno europeu bastante mais alargado – que vingou até ao final do século XVIII, quando a imprensa periódica começou a ganhar consistência com o aparecimento das Gazetas – englobando os espanhóis plie- gos sueltos, os ingleses chapbooks, a Bibliothèque Bleue francesa ou livrets de colportage, os libri populari italianos, ou os volksbucher alemães. São ainda aqueles escritos populares nacio- nais que tiveram um papel decisivo na forma como influenciaram a posterior divulgação no Bra- sil.

No caso português, o fenómeno da literatura de cordel ocorreu, de acordo com Teófilo Bra- ga, em três períodos distintos. Numa primeira fase, correspondente ao século XVI, assiste-se a uma fértil produção de folhetos; de seguida, durante o século XVII, houve um decréscimo de edi- ções, fruto da concorrência espanhola, que publicava, sobretudo, textos hagiográficos e outros de cariz igualmente religioso, como os sermões e os milagres; finalmente, na terceira fase – século XVIII – incrementa-se a publicação de obras, sobretudo dramáticas, como veremos. João David Pinto-Correia acrescenta uma quarta fase cujas balizas temporais se podem situar entre a segunda metade do século XVIII e o século XIX; nesta época, apesar de uma visível diminuição da produ- ção editorial, continuam a circular folhetos de carácter sensacionalista.

É precisamente no século XVI que surgiram as primeiras edições de folhetos de cordel que marcarão, de forma indelével, a cultura popular portuguesa dos anos seguintes. Foi a partir de 1500 que o homem português «teve interesses morais bastantes para inspirar uma literatura parti- cularmente sua»126. Até então, a atividade literária que aqui nos interessa não tinha propriamente motivos para se desenvolver. Teófilo Braga, na obra citada, refere que os países pequenos pare- cem sofrer de uma espécie de «falta de vigor, de invenção e de originalidade»127. Só com o cres-

cimento da vida política e associativa, que exigia um envolvimento maior dos cidadãos em diver- sas áreas, mormente a artística, a expressão literária ganhou identidade. Assim, o século XVI des- taca-se, pois «cria-se a riqueza pública pela exploração colonial”128. Sendo este período “o mais

fecundo da literatura portuguesa»129, torna-se óbvio que os «autos, ou dramas hieráticos”130, as

126

O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, Vol. II, p. 318.

127 Idem, p. 317. 128 Idem, p. 318. 129 Ibidem. 130 Ibidem.

“trovas ou composições épicas e líricas»131 e as «relações ou pequenas narrativas históricas como as belas descrições dos naufrágios na carreira da Índia»132 ganham uma verdadeira dimen-

são nacional. Tão importante foi toda essa produção que, anos mais tarde, continuará, sem altera- ções significativas, a deliciar leitores. Não será por acaso que, por exemplo, grande parte dos folhetos dados a lume no século XVIII recorre a histórias da Idade Média, como é o caso da Tra- gédia de D. Inês de Castro, A Princesa Magalona, ou Carlos Magno e os Doze Pares de França, e mantém na memória do público leitor vários autores como Gil Vicente, Afonso Álvares, ou Baltasar Dias133, o que prova a recorrência de determinadas temáticas e a reedição de folhetos

que permaneceram praticamente inalterados ao longo de centenas de anos134.

Um grande número de escritores do século XVI apresenta traços temáticos e formais seme- lhantes, que resultam da inspiração nas tradições populares portuguesas como forma de as perpe- tuar. Apesar de não endereçarem as suas obras ao grande público, os autores tinham a noção de que elas lhe agradavam. É o que acontece, por exemplo, com Sá de Miranda, António Ferreira135

ou com o já citado Gil Vicente. Simultaneamente, vemos surgir um grupo talentoso de escritores populares como Bandarra, Afonso Álvares, Gregório Afonso ou Baltasar Dias136. Começa, assim,

131

Ibidem.

132 Ibidem. 133 É Teófilo B

RAGA quem testemunha este fenómeno, mostrando que os autores mais antigos rivalizam com os «novos escritores (…): tais são pela sua ordem António José da Silva, Alexandre António de Lima, Diogo da Costa, José Daniel, António Xavier e Jerónimo Moreira de Carvalho.» (idem, p. 332).

134 Interessante é a visão de Pires de L

IMA, ao afirmar que a persistência de textos de cordel ocorre «como se o público fora sempre o mesmo e a Morte se cansasse da sua ceifa (…) [e a temática das obras] atravessou a poeira dos séculos, sem perda do poder emotivo, antes mantendo o viço das coisas novas.» («Literatura de Cor- del», p. 113).

135 A título de exemplo, podemos atentar na obra de António Ferreira – Castro – criada a partir do interes-

se manifestado em torno da figura de Inês de Castro. Esta tragédia, apesar de abordar um tema solene, usa uma linguagem simples, com recurso ao verso branco e ao decassílabo com quebrados de 4 e 6 sílabas, sobretudo no Coro. Trata-se de uma obra sobretudo política que valoriza os princípios e sacrifícios do indivíduo ao bem comum. A peça introduz novas personagens que reaparecerão imitadas em obras subsequentes: Ferreira imagi- nou uma ama para contracenar com D. Inês, tornando-a sua confidente, e também um secretário, símbolo da moral social e política, que funciona como mentor de D. Pedro. Apesar de se conhecerem cerca de dezoito tra- gédias completas em português sobre o mesmo tema, a Castro tem sido considerada a mais importante e origi- nal de todas. Dadas as suas características formais e o facto de a primeira edição ter sido difundida sob a forma de folheto em 1587, onze anos antes da publicação da peça em livro, é possível concluir que os herdeiros de António Ferreira tinham a intenção de fazer chegar a obra a um público vasto e pertencente a classes sociais diversas. O folheto referido é a Tragédia mui Sentida e Elegante de Dona Inês de Castro a qual foi Representa- da na Cidade de Coimbra. Agora Novamente Acrescentada. Trata-se de uma edição rara, da qual se conhece apenas um exemplar em todo o mundo. O folheto encontra-se no British Museum, em Londres, e conseguimos obter, a muito custo, uma cópia microfilmada. Poderá ser interessante notar que foi acrescentada à peça a seguinte informação manuscrita: «Esta tragédia é a mesma de António Ferreira, que vem na edição de todas as suas obras.».

136 O talento deste escritor explica o seu sucesso junto de um público ávido de novidades, cuja curiosidade

perdurou por muitos anos. Alguns dos seus escritos serviram, inclusivamente, de inspiração a outros autores. Para Teófilo BRAGA, «Baltasar Dias, poeta cego, do tempo de D. Sebastião, é o escritor clássico do povo portu-

a ganhar forma uma tradição literária que se caracterizará pela perenidade dos seus temas e pela fidelidade de um público que manifesta uma apetência especial por aqueles escritos, sobretudo por aquilo que Aubrey Bell, num estudo realizado sobre a literatura portuguesa, denominou como o «gosto particular por temas estranhos e fantásticos.»137. Na sua opinião, este gosto deriva

de uma tradição cultural muito antiga, porventura anterior ao cristianismo e até ao Império Romano, que se prende com a necessidade da presença do maravilhoso no imaginário do homem, na tentativa de explicar fenómenos naturais e sobrenaturais.

Neste século, predominam as narrativas em verso, abordando questões de índole religiosa, cuja função principal se prendia com a catequização do povo, ou com a narração de acontecimen- tos extraordinários. Formalmente, os textos não obedeciam a nenhum critério uniforme no que diz respeito à extensão, sendo possível encontrar folhetos de oito a 64 páginas. Quanto à qualida- de, Márcia Abreu sublinha uma «inegável superioridade das produções oriundas do século XVI e princípio do XVII (…) e de sua permanência ao longo dos anos.»138.

No século XVII, ocorreu, conforme referimos, um decréscimo relativamente à edição de folhetos de cordel. As principais causas desta situação passam pelo desenvolvimento da cultura humanista, que contraiu as produções de cariz popular, e pelo estabelecimento da censura no nosso país e consequente proibição de muitas obras, como vimos anteriormente. A perda da soberania nacional também não facilitou a criatividade dos escritores seiscentistas portugueses. Por isso, os folhetos que circulavam durante este período eram aqueles que obtiveram um enor- me sucesso no século XVI (sobretudo os que cultivavam o maravilhoso e o picaresco), adaptados agora a uma nova época. No entanto, essa adaptação verificou-se apenas a um nível superficial, mantendo inalterados o esquema e o modelo que estruturam aqueles textos. Trata-se de um pro- cesso que Ana Margarida Ramos apelida de «standartização»139. Daqui resultam textos que, por

guês; as suas obras conservam-se quase integralmente na leitura vulgar. Ele teve o dom de se apoderar da ima- ginação ingénua do povo, e os seus versos nunca são ouvidos sem lágrimas.» (O Povo Português nos seus Cos- tumes, Crenças e Tradições, Vol. II, p. 323). Também Fernando de Castro Pires de LIMA não poupa elogios a este poeta popular, considerando-o «humilde predecessor de Lope de Vega, e como ele incrustou na sua obra, com pouca ou nenhuma alteração, numerosos versos dessas cantilenas jogralescas (…) filho do povo, vivendo do povo, para o povo cantando, autêntico jogral cujas composições brotavam tão naturalmente, tão esponta- neamente, como a vegetação, opulenta e perfumada, da sua ilha de encantamento.» («Literatura de Cor- del», p. 123). É, em síntese, segundo Luciana Stegagno PICCHIO, «um dos mais felizes autores dessa literatura de cordel, que depois havia de dar uma pincelada de cor ao obscuro século XVIII português.» (História do Tea- tro Português, Lisboa, Portugália Editora, 1969, p. 105).

137 Aubrey B

ELL, A Literatura Portuguesa (história e crítica), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931, p. 458.

138 Histórias de Cordéis e Folhetos, p. 36.

via das repetições sucessivas e do exagero, acabam na «degradação e [no] esgotamento da fór- mula inicial.»140.

Relativamente à produção de folhetos de cordel, o século XVIII merece um destaque especial. De facto, a maior parte dos textos incluídos nos catálogos atualmente conhecidos pertence a esta época141, marcada pelo contraste entre as fulgurantes produções artísticas e o contexto político,

económico e social do Portugal setecentista, que iniciava um processo de declínio, amenizado, no entanto, pelos recursos provenientes do Brasil, e bastante controlado pelo Clero, que monopoli- zava a educação e a cultura e fortalecia a sua vocação inquisitorial. A arte barroca ilustra, na per- feição, esta realidade. Diz José Oliveira Barata que

assim acontece com a linguagem, revestida pelos ouropéis da metáfora, com a moda extravagante que oculta a “banalidade” do corpo, com a pompa precária das manifestações religiosas e pagãs,

comprovando como o “fingimento” se identifica e assume como realidade.142

Por um lado, é evidenciado o interesse dedicado a acontecimentos como as caçadas reais e outros aspectos da vida cortês, animada pelas festas no palácio real e pelos serões literários de gosto e qualidade duvidosos; por outro lado (e aqui reside um dos aspetos mais fascinantes do século XVIII), ocorre um efervescente progresso, visível, por exemplo, na fundação da Academia Real da História, por Decreto de D. João V, de 8 de dezembro de 1720, na criação de novas bibliotecas, ou no incremento do movimento editorial, incluindo aqui os exemplares da literatura de cordel. Esta verdadeira renovação cultural iniciou-se no reinado de D. João V e foi aprofun- dada no do seu sucessor.

O elevado número de tipografias permitiu, como vimos, a publicação de muitos textos. Mesmo as tipografias reais editavam textos de cordel, o que revela a sua extrema importância. Os fatores que estiveram na base de uma prodigiosa produção de cordel no século XVIII são elenca- dos por Carlos Nogueira. Para este estudioso das coisas populares, para além do evidente cres- cimento das tipografias, convirá assinalar «o fortalecimento e a diversificação do conjunto de leitores (…); as várias alterações nos hábitos de trabalho e de convivialidade; ou os novos inte- resses culturais»143. Deste modo, a publicação de livros não só continuará a permitir o acesso a

estes objetos por parte de leitores cultos, mas irá facilitar igualmente o contacto de grupos menos favorecidos com a leitura, mesmo que, para tal, tivesse sido necessário um esforço de adaptação do texto que passou pela sua segmentação em trechos breves e de fácil memorização, pelo recur-

140

Ibidem.

141 Márcia A

BREU conclui que 78% dos folhetos que integram os mais importantes catálogos de cordel foram produzidos no século XVIII (apud O Essencial sobre a Literatura de Cordel Portuguesa, p. 26).

142 História do Teatro Português, p. 209.

so a imagens que facilitavam a compreensão da mensagem e pela aposta em temas e motivos do agrado da maioria da população. Este último aspeto justificará as opções tipográficas, uma vez que os textos mais procurados eram aqueles que, com mais frequência, se produziam. Por este motivo, a análise do número de edições de um determinado folheto de cordel permitirá aferir os gostos do público português de Setecentos, como teremos oportunidade de sublinhar mais adian- te, quando nos dedicarmos ao estudo detalhado das peças de teatro daquela centúria.

No seguimento do que ficou expresso, poderemos concluir que os hábitos das populações nunca mais seriam os mesmos, pois a edição de folhetos, para além de fomentar progressos ao nível económico e social – desenvolvimento das atividades ligadas à impressão e venda de folhe- tos e incremento do poder da burguesia, detentora, agora, do conhecimento – vulgariza a palavra escrita e, nas palavras de Ana Margarida Ramos,

[a] partir daqui a evolução é a que se conhece: aumento exponencial do número de autores, cresci- mento da produção de livros, criação de hábitos e costumes de leitura, incremento da alfabetização, criação e desenvolvimento do mercado do livro, nascimento da publicidade, multiplicação e trans- formação dos jornais, sucesso dos pequenos formatos, divulgação das sociedades e gabinetes de lei- tura, generalização do empréstimo de livros, profissionalização do autor e aumento do público, cada vez mais extenso, mas também mais heterogéneo quanto aos seus interesses e capacidades, além de mais exigente e informado.144

Mais adiante, a mesma autora esclarece que

(...) é através do texto publicado (onde a palavra se encontra “fixada”) que se promovem comporta- mentos e atitudes, se transmitem ideias, crenças e se incentiva a imaginação e o sonho, a uma escala até então impensável, já que a circulação dos impressos é cada vez mais veloz, o preço é mais acessí- vel, as tiragens são maiores e os prazos de produção são muito encurtados. As leis do mercado fazem sentir o seu vigor com especial destaque, uma vez que é possível ter mais a preços inferiores.145

No caso específico da literatura de cordel, todas aquelas mudanças concorrem para a seguin- te situação:

A edição popular de textos, ou literatura de cordel, acompanha esta evolução, uma vez que, do ponto de vista económico, é acessível ao grande público e se desenvolve, do ponto de vista do conteúdo e dos géneros, em estreita articulação com os seus interesses e gostos. É esta proximidade entre leitores das edições de cordel e a edição dos textos que explica a sobrevivência destas publicações durante vários séculos, algumas delas sem alterações significativas.146

O início do século XIX marca o fim, não da literatura de cordel em sentido amplo, mas do teatro de cordel. Albino Forjaz de Sampaio toma consciência dessa realidade, considerando que,

144 Os Monstros na Literatura de Cordel Portuguesa do Século

XVIII, p. 25.

145 Idem, p. 26. 146 Ibidem.

no ano de 1808, «pende um pouco já para o fim. O teatro popular morrera. O país atravessava uma crise agónica. Teatro e cómicos estavam positivamente pela hora da morte.»147. Mais adian-

te, acrescenta que «depois do século XIX o teatro popular apaga-se. Perde em primeiro lugar o aspeto tipográfico que o seriava. Depois extravia-se no formato e promiscua-se por fim com a folhetada incómoda que todos os dias aparecendo vai.»148.

2. O teatro