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3.1. Análise sociológica das relações amorosas 1 Da vida privada

3.1.2. Da noção de amor

3.1.2.2. A génese do amor

Ao pretendermos empreender um estudo acerca da génese socio-histórica do amor, devemos estar conscientes de que essa tarefa não é fácil, pois muitas dúvidas assaltam o nosso pensamento quando se trata de contextualizar o mais importante e rico sentimento humano.

Antes de mais, é fundamental referir que o amor surge da admiração que sentimos por alguém que, aos nossos olhos, é um modelo de perfeição.625 Stendhal626 foi um dos primeiros

622 Idem, pp. 95-96.

623 Elisja Schulte van KESSEL, «Virgens e mães entre o céu e a terra», in História das Mulheres – do

Renascimento à Idade Moderna, p. 183.

624 Idem, p. 185.

625 Devido ao facto de este modelo de perfeição ser fruto da imaginação, quase uma utopia, o amor nele

fundado corre o risco de morrer quando desaparecer aquela ilusão.

626 Abel BONNARD (Cf. La Vie Amoureuse d’Henri Beyle (Stendhal), Paris, Ernest Flammarion, 1926)

mostra-nos que Stendhal, apesar de teorizar sobre o amor, nunca amou deveras e parece que nunca foi autenti- camente amado. Assim, como diz ORTEGA Y GASSET, «os amores falsos só podem deixar na alma a melancolia da sua falsidade, a experiência da sua dissolução.» (Estudos sobre o Amor, p. 25), acrescentando mais à frente que o «amor morre porque o seu nascimento foi um equívoco» (ibidem). Apesar de conhecedores desta realida- de, todos sabemos que não há ninguém capaz de ver «as coisas na sua realidade nua» (idem, p. 34). É por isso

pensadores modernos a considerar este facto. Pormenores associados à pessoa amada surgem, através da imaginação, hipervalorizados. O amor que daqui nasce é algo difícil de explicar, mas consubstancia-se em diversos sintomas fisiológicos, como «tremuras, batimentos cardíacos, ton- turas, rubor súbito, afluxo de sangue ao cérebro»627 e também psíquicos: «desordem nervosa,

loucura, timidez, melancolia.»628. Os sintomas da paixão revelam-se tão inusitados que, por

exemplo, na Idade Média, eram tidos como achaques físicos e mentais que afetavam sobretudo os nobres (conotados como mais sensíveis). Pouco regular, o comportamento de quem estava apaixonado passava de uma exaltação intensa para uma imensa desolação num curto espaço de tempo. Mesmo que não correspondesse à realidade, era obrigatório, para quem cortejava, manter uma atitude de languidez, acompanhada de suspiros cavos629.

Todos estes indícios de paixão eram perfeitamente observáveis pelos outros, mas, apesar disso, o apaixonado mostrava algum retraimento em declarar-se. O pensador francês estava cons- ciente do perigo que certas declarações poderiam acarretar, por serem exageradas e, muitas vezes, ridículas. Assim, aconselha a moderar a interação verbal dos apaixonados sob pena de fazer perigar a relação.

Depois de iniciado, o processo amoroso tende a evoluir para uma etapa de cristalização, caracterizada pela total confiança e abandono aos prazeres do amor. No fundo, a imagem real da pessoa amada vai adquirindo formas imaginárias na mente daquele que ama, fazendo dela o ser mais perfeito. Tratava-se, pois, da experimentação de uma felicidade completamente despreocu- pada, que se alimentava de breves momentos diários passados com a pessoa amada. No entanto, a felicidade não era sempre garantida, por ser toldada pela saciação ou pela alteração da impor- tância que o amado dava ao seu parceiro: a mulher, de única, passava, com frequência, a mais uma ou a escrava do marido; o homem invulgar tornava-se perfeitamente banal.

Após a primeira etapa, ocorria uma segunda cristalização que pretendia garantir a durabili- dade do amor. Para tal, os amantes ambicionavam fazer dissipar as dúvidas em relação ao amor

que a maioria das pessoas «vivem de palavras e sugestões, avançam sonambulamente pela existência, trotando no seu delírio. Aquilo a que chamamos génio não é mais que esse poder magnífico que alguns homens têm de dissipar um pouco dessa névoa da imaginação e descobrir, através dela, tiritando de pura nudez, um novo frag- mento autêntico da realidade.» (ibidem).

Assim, conclui-se que a vida mental se resume a uma cristalização, não sendo esta realidade exclusiva do amor.

627 José PACHECO, O Tempo e o Sexo, Lisboa, Livros Horizonte, 1998, p. 99. 628 Ibidem.

629 Interessante será notar que, ao longo do tempo, surgiram alguns remédios para os males de amor.

Megan TRESIDDER refere que

[n]o século XI, Constantino Africano afirmava no seu Viaticum Peregrinantis que Eros era uma doença da cabeça dos homens e recomendava o recurso a prostitutas como meio de acalmar a inflamação. Os padres aconselhavam curas menos radicais, como viagens, jogos e banhos regulares. No século XVII, suspeitava-se que as causas dos males de amor eram o magnetismo, os micróbios e a influência dos astros e, ainda em 1904, o Dr. Charles Féré comparava o impacto do amor à primeira vista com um choque eléctrico ou um espasmo. (A Linguagem do Amor, p. 69).

do outro. Esta fase permitia grandes loucuras e prazeres, mas não deixava de ser bastante exigen- te, especialmente para aqueles que desanimavam com facilidade ou para os que deparavam com a frieza, com a impassibilidade, com a cautela ou com a idade mais avançada do objcto de amor.

Para Ortega y Gasset, esta teoria da cristalização é idealista, «porque faz do objecto externo em função do qual vivemos mera projecção do sujeito»630, e pessimista, uma vez que procura

«demonstrar que aquilo que consideramos funções normais do nosso espírito não são mais que casos especiais de anormalidade»631. Estes atributos que compõem a teoria da cristalização são

típicos do século XIX e não podem ser entendidos fora desse contexto. Mais: de acordo com esta teoria, o indivíduo só é capaz de amar o que é amável, ou seja, tudo o que merecer ser amado. No entanto, quando não se possui, tende-se a imaginá-lo na perfeição, como vimos. É isto que move o amor. A base desta realidade, convirá não esquecer, prende-se com o facto de haver «amores que não o são»632. Há, por isso, que ter em atenção a veracidade do sentimento. Assim, se um

amor tem como base um princípio falso, não será verdadeiro tudo o que o rodeia, mormente o objeto que lhe serviu de fonte de inspiração. Assim, para Ortega y Gasset, o único aspeto positi- vo da teoria de Stendhal talvez seja o facto de se ter o amor como o «impulso para a perfei- ção»633. Os restantes pressupostos levam-nos a concluir que o pensador francês expõe não as

razões pelas quais nos apaixonamos, mas apenas as que nos levam a desapaixonar.

Dos vários tipos de amor aventados por Stendhal na sua obra De l’Amour – amour-goût, amour-vanité, amour-passion, etc. – só este último parece genuíno. Todos os outros afiguram-se longe da realidade. Diz Ortega y Gasset que «[n]ão se supõe um amor apenas por vaidade ou por goût»634. E considera uma outra forma ainda mais visível de falsificação, que nos interessa parti-

cularmente. A culpa parece ser dos escritores que abordaram o amor e

o ornaram e abrilhantaram com os seus instrumentos cosméticos, dotando-o de uma estranha realida- de abstracta, de tal forma que, antes de o sentir, o conhecemos, o estimamos e nos propomos a exer- cê-lo, como uma arte ou um ofício.635

Resumidamente, este amor mascarado faz com que se ame o amor enquanto concei- to/princípio, servindo a pessoa amada apenas como um pretexto. E a teoria da cristalização terá aqui todo o cabimento.

A fim de provar que a teoria da cristalização não justifica os amores verdadeiros, Ortega y Gasset, na obra citada anteriormente, mostra-nos, através de uma linguagem surpreendentemente clara, as condições que favorecem a génese de um verdadeiro amor. Deste modo, o pensador

630 Estudos sobre o Amor, p. 22. 631 Ibidem. 632 Idem, p. 23. 633 Idem, p. 30. 634 Idem, p. 23. 635 Idem, p. 24.

afirma que o «amor pleno, nascido de raiz, não pode verosimilmente morrer. Está para sempre inscrito na alma sensível.»636. Mesmo a distância não deve impedir a união dos amantes, apesar

de a separação física poder enfraquecer o amor, mas nunca a ponto de o matar. Este é, pois, «o sintoma supremo do verdadeiro amor: estar ao lado da pessoa amada, num contacto e proximida- de mais profundos que os espaciais»637 e «estar ontologicamente com o ser amado, fiel ao seu

destino, seja ele qual for.»638. Assim, o amor que aqui nos interessa por verdadeiro é aquele que

se funda em valores espirituais muito mais que físicos. Daí que se possa dizer que o corpo não é o mais importante numa relação, sendo muitos os exemplos que poderíamos convocar, como o de Romeu e Julieta.

Em síntese, a teoria da cristalização, que alimentou durante muito tempo todas as que se dedicaram às coisas do amor, cai totalmente por terra se tivermos em conta dois pressupostos. O primeiro é explicado por Ortega y Gasset quando afirma que «são os casos exemplares do amor em que as duas partes possuem um espírito claro e isento de erro, tanto quanto é possível ao género humano.»639. Assim, «o homem, longe de projectar perfeições que só existem no seu espí-

rito, descobre na mulher qualidades de espécie até então desconhecida para ele.»640. O segundo

pressuposto que enforma a teoria da cristalização diz respeito ao facto de Stendhal considerar que a paixão implica, obrigatoriamente, «um grande labor espiritual, um enriquecimento e uma acu- mulação.»641. Estudos recentes mostram que o enamoramento nada mais é que «um estado de miséria mental em que a vida da nossa consciência se restringe, empobrece e paralisa.»642.