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3.1. Análise sociológica das relações amorosas 1 Da vida privada

3.1.2. Da noção de amor

3.1.2.4. Os intervenientes no processo amoroso

O século XVIII será, igualmente, caracterizado como um período em que a mulher assume uma postura de destaque, pois, pela primeira vez, se fixa a ideia de que existe uma verdadeira natureza feminina703, asseverada por médicos e filósofos. É sobre ela que se fundará uma moral do prazer. No entanto, a noção de feminidade, no período que antecedeu o século XX, era, para as próprias mulheres, segundo Edward Shorter,

un concept entièrement négatif, quelque chose qui, pensaient-elles, les rendait inférieures aux hommes, un fardeau que Dieu leur avait imposé en chassant Ève du Paradis, et qu’elles portaient avec résignation.704

Assim, a figura da mulher acaba por corresponder a um retrato nada abonatório, adveniente de uma inferiorização que se consubstancia em três situações:

1. La femme a été victime de l’homme, par une accessibilité sexuelle sans limites. Le “devoir conju- gal”705 l’exposait autrefois à une suite sans fin de grossesses non désirées.

(…)

2. La femme a été victime de ses enfants, et d’avoir à s’occuper d’une grande maisonnée sur la taille et la composition de laquelle elle n’avait aucun droit de regard.

(…)

3. La femme était victime de la nature, c’est-à-dire des diverses maladies auxquelles l’homme n’est pas sujet et qui n’ont pas chez lui d’équivalent.706

702

Idem, p. 10.

703 Segundo Georges D

UBY e Michelle PERROT, «[a]s mulheres foram, durante muito tempo, deixadas na sombra da história. O desenvolvimento da antropologia e a ênfase dada à família, a afirmação da história das “mentalidades”, mais atenta ao quotidiano, ao privado e ao individual, contribuíram para as fazer sair dessa sombra.» («Escrever a História das Mulheres», in História das Mulheres – do Renascimento à Idade Moderna, p. 7).

704 Edward S

HORTER, Le Corps des Femmes, Paris, Éditions du Seuil, 1984, p. 9.

705 O mesmo autor considera que o dever conjugal era um «bel euphémisme pour copulation obligatoire»

(idem, p. 23).

Segundo o mesmo autor, só quando a inferioridade feminina é ultrapassada poderemos falar, com propriedade, de feminismo. A História veio comprovar que este estigma acompanhou a mulher durante séculos e que, apesar das grandes mudanças operadas em Setecentos, o sexo feminino permaneceu subalternizado, como atestam as palavras de José Gentil da Silva:

Condenou-se o género feminino ao isolamento, à reserva, corolário da sua inferioridade. (...) Tal inferioridade afirmada desde o século XV, foi no século XVI estabelecida com o apoio da experiência clássica em que se havia seleccionado convenientemente o que devia servir a tão grande projeto.

(...) Portugal, como a Espanha, fica fiel às tradições e aos costumes que honram a mulher, apesar do culto marial e da falta de homens que o deixavam cedo. (...) No século XVIII, a portuguesa conti- nua a não entender inteiramente o estatuto que lhe querem impor. No século XIX ainda choca os estrangeiros, pela sua ousadia e a sua graça. Isto parece ainda vincar mais a sua inferioridade e a miséria material e moral do país que não se verga aos costumes e aos padrões do consumo estrangei- ros.707

Como veremos, a figura feminina é central nos folhetos de cordel que constituem o corpus da nossa análise. Analisando o que sobre ela se diz nos documentos setecentistas que reunimos, cremos poder revisitar um pouco da nossa História nacional, sobretudo no que diz respeito à mulher e às suas relações, nem sempre fáceis, com o homem. Não podemos esquecer que, até então, a mulher não era tida como assunto histórico, muito menos como protagonista, ao contrá- rio do que sucedia com os indivíduos do sexo masculino. Deste modo, aquilo que os folhetos documentam é de fulcral importância, pois representa uma mudança radical das mentalidades.

Num século pleno de contrastes como o que estudamos, assistimos igualmente ao renascer do amor idílico, situação que não se pode descartar totalmente do que afirmámos no parágrafo anterior. Ser sensível é uma qualidade que começa a ser apreciada, influenciando de forma inde- lével o Romantismo que prenuncia. De facto, no século XVIII, verifica-se uma forte rutura com o passado e, como consequência, caem por terra muitos preconceitos, mormente os que dizem res- peito à condição da mulher e à sua relação com o homem que aqui nos interessa. Como veremos aquando da análise dos folhetos de cordel setecentistas, a mulher tende, ainda que timidamente, e sobretudo a partir da segunda metade do século, a libertar-se e esta atitude é deveras revolu- cionária, porém mal vista por aqueles que a consideravam uma ameaça real. De facto, a História dará razão a estes últimos.

Julgamos oportuno, neste momento, e antes de prosseguirmos com as nossas reflexões, abrir um parêntesis na presente dissertação para tecermos breves considerações acerca dos principais intervenientes no processo amoroso, o homem e a mulher, a quem já nos referimos, aferindo da desigualdade de papéis que cada um representa. É, pois, no seio familiar que o casal se encontra e é nesse contexto que as diferenças entre os sexos se tornam mais visíveis. Como veremos de

707 «A situação feminina em Portugal na segunda metade do século

XVIII», in O Marquês de Pombal e o seu Tempo, p. 165.

seguida, é sobre a mulher que recaem as atenções nos exemplares da literatura de cordel que reunimos, o que nos permite uma apropriação das palavras de José Mattoso dedicadas à figura feminina que ajudou a construir a história da família e, a uma escala mais abrangente, da própria humanidade:

O estudo sobre a família, a que quase sempre conduz, de uma maneira ou de outra, a investigação sobre a Mulher mostra, desde logo, a quase impossibilidade que há de o fazer isoladamente. Não por- que ela não constitua um objecto histórico válido em si mesmo, mas porque faz parte do próprio feminino conceber-se e comportar-se, mais do que o masculino, como ser em relação, como ser com uma consciência corporal mais atuante, com motivações afetivas mais imediatas, mais determinada pela vivência do que pela compreensão racional da vida.708

Nesta perspetiva, a mulher detém um papel fundamental na sua relação com o homem que convirá não desprezar. Sem pretendermos enveredar pelas questões diretamente associadas ao feminismo, o que, cremos, nos afastaria do cerne do nosso estudo, não poderemos deixar de vol- tar a citar José Mattoso, que defende a necessidade de compreender a História de uma forma diferente da que até nós tem chegado e que, à sua maneira, como veremos, os folhetos de cordel ajudam a veicular:

(...) a História não se compreende apenas pelo papel que nela exercem os indivíduos, nem só pelas estruturas e distribuição dos homens em classes sociais, nem só pelo funcionamento da economia e da produção, nem só pelos movimentos demográficos, mas também pela dialéctica feminino- masculino. Ora, assim como a investigação económica e social levou a reescrever toda a História que até ao século XIX tinha sido transmitida de geração em geração, assim a perspectiva do privado, do permanente, do corpo, do sentimento, que a perspectiva de signo feminino obriga a explorar, levará, certamente, a reescrever de novo toda a História.709

A figura feminina desde sempre permaneceu na penumbra, uma vez que ela é muito menos visível em público do que o homem. Trabalhando quase em exclusivo em família, sem dimensão social, a mulher garante a ordem das coisas, é sinónimo de tranquilidade. Verdadeira vítima de uma segregação social bastante forte, caracterizada por um antifeminismo acentuado, a mulher é proibida de conviver com os indivíduos do sexo masculino. E não pensemos que este exílio for- çado era exclusivo do século XVIII. Os modelos clássicos e judaicos já previam esta segregação e foram herdados pela visão cristã instaurada em Portugal no período de que aqui nos ocupamos. Julgamos conveniente, por isso, abrir um parêntesis para tentar encontrar justificações plausíveis para esta tendência de afastamento dos sexos.

708 José M

ATTOSO, «A mulher e a família», in A Mulher na Sociedade Portuguesa – Visão Histórica e Perspectivas Actuais, Actas do Colóquio, Vol. 1, Coimbra, Instituto de História Económica e Social da Facul- dade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986, pp. 37-38.

Tida como perigosa, por ser, desde a sua origem na Terra, má, e vista como um ser inferior tanto ao nível físico como intelectual, a mulher tinha de ser mantida à parte, longe de todos, mui- tas vezes dos próprios familiares. Assim definida, a mulher provoca no sexo oposto um senti- mento de medo que Jean Delumeau justifica, ao referir que

[d]ans l’inconscient de l’homme la femme suscite l’inquiétude, non seulement parce qu’elle est le juge de sa sexualité, mais encore parce qu’il l’imagine volontiers insatiable, comparable à un feu qu’il faut sans cesse alimenter.710

Face a esta situação, competia ao homem unicamente desprezar a mulher. Este sentia que estava a agir corretamente, apoiando-se na narração bíblica da queda do homem e consequente expulsão do Paraíso e no mito de Pandora que nela teve origem. Deste modo, a mulher torna-se a responsável por todo o mal do Mundo.

Segundo Michèle Crampe-Casnabet,

[é] pelo sexo, em primeira análise, que é, naturalmente, legitimada a inferioridade feminina. Pois pode-se defender, como o faz Rousseau, que tudo o que não pertence ao sexo é comum à espécie, mas que, no entanto, é na mulher que o sexo prevalece (…).711

E a mesma autora cita o filósofo para fazer prova de que

[n]ão há qualquer paridade entre os dois sexos quanto à consequência do sexo. O macho só é macho em certos instantes, a fêmea é fêmea toda a sua vida ou, pelo menos, durante toda a sua juventude;

tudo a remete constantemente para o seu sexo…712

No que diz respeito às faculdades intelectuais da mulher, as diferenças entre esta e o homem são notórias, sobretudo aos olhos masculinos de Setecentos. Beleza e sabedoria eram dois atribu- tos que não poderiam coexistir num mesmo ser. E a justificação para este postulado é-nos dada, mais uma vez, por Michèle Crampe-Casnabet que, ao resumir o pensamento filosófico da época que aqui nos interessa, assevera:

Se é verdade que o privilégio da mulher é a beleza, e se a razão não é dada uma vez por todas mas deve ser cultivada, então a mulher não pode possuir, ao mesmo tempo, a beleza (que dura tão pouco) e a razão (tão lenta a constituir-se).713

710 Jean D

ELUMEAU, La Peur en Occident (XVIe-XVIIIe siècles). Une cité assiégée, Paris, Fayard, 1978, p. 308.

711 Michèle CRAMPE-CASBANET, «A mulher no pensamento filosófico do século XVIII», in História das

Mulheres – do Renascimento à Idade Moderna, p. 382.

712 Jean-Jacques R

OUSSEAU, Émile ou de l’Éducation, NRF, Bibliothèque de la Pléiade du Roy, Paris, Imprimerie Royale, 1749, Livro V, p. 697, apud História das Mulheres – do Renascimento à Idade Moder- na, pp. 382-383.

Mais adiante, acrescenta que «[a] mulher é o ser da paixão e da imaginação, não do concei- to.»714. E a filosofia só não a destitui de toda a razão porque a mulher necessita dela para cuidar

do lar. Mas a conceção de mulher à luz de Setecentos não se fica por aqui. A filosofia pretende provar que o sexo feminino é totalmente oposto ao masculino, pois

a mulher só tem relação com o concreto. À mulher pertence fazer essa leitura (intuitiva) no coração dos homens (no plural), e aos homens cabe filosofar sobre o coração humano (em geral). A incapaci- dade de raciocinar como o homem traduz-se – entre outros aspetos – na impossibilidade de as mulhe- res compreenderem razões de crer em matéria religiosa: e é por esta razão que a filha deve ter a reli- gião da mãe e a mulher a do seu marido.715

Em síntese, será lícito afirmar que

[a] mulher é essencialmente esposa e mãe (…). Dificilmente se concebe que uma mulher não seja casada, que não tenha filhos. Este papel de procriadora é inseparável do estatuto de servidão domésti- ca: ocupar-se do marido, dos filhos, da casa confere e impõe tantos deveres que seria cruel sobrecar-

regar a mulher com outras preocupações.716

Sublinhe-se que o facto de a mulher não ter filhos poderia constituir um motivo válido para o divórcio. A medicina setecentista comprova que a esterilidade é unicamente culpa da esposa e nunca do seu marido. Os médicos convenceram-se de que

a mulher, tal como um campo húmido e frio, estraga facilmente a semente prolífica do homem, e interpretam este defeito como o sinal de uma justiça celeste: parece que “Deus quis, particularmente, submeter as mulheres a esse mal, para lhes abater o orgulho, e para lhes fazer ver que são muito mais

imperfeitas do que o homem.”717

No entanto, ainda no mesmo século, alguns médicos e filósofos começam a encarar o sexo feminino noutra perspetiva, alertados para o facto de um ser tão imperfeito e débil, como até ali fora considerado, ser capaz de procriar e dar à luz novos seres. Deste modo, a mulher passa a ter uma identidade própria, diferente do homem, é certo, mas nem por isso inferior. É este o senti- mento generalizado um pouco por toda a Europa de Setecentos, que obriga a prestar mais aten- ção à mulher e ao seu corpo, como atestam as reflexões acerca da Bibliothèque Bleue francesa:

Ce corps semble ne jamais vouloir se contenir dans ses limites, il est en proie à des symptômes ef- frayants, participe de façon paroxystique à la vie du cosmos en laissant écouler le sang à chaque lune,

714 Idem, p. 386. 715 Ibidem. 716 Idem, p. 388. 717 Évelyne B

ERRIOT-SALVADORE, «O discurso da medicina e da ciência», in História das Mulheres – do Renascimento à Idade Moderna, p. 415.

et met parfois au monde des êtres monstrueux. La matrice féminine est un antre où se créent la vie et la mort, dans des combinations jamais prévues d’avance, qui vont du meilleur au pire. (...) Les méde- cins ne haïssent pas la femme, ils s’épouvantent de l’ampleur des manifestations de son corps, et ce n’est pas tout à fait la même chose.718

Privada de opinião sobre qualquer assunto, a mulher – fosse ela esposa, mãe, dona de casa ou religiosa – estaria sempre sujeita à figura masculina, assumindo uma função quase exclusi- vamente decorativa719.

Os homens ostentam apelidos, transmitem-nos aos seus descendentes. As mulheres pos- suem apenas o nome próprio. Esquecida e relegada para segundo plano, a figura feminina é, de facto, pouco falada, porque pouco vista. Mesmo as obras literárias – muitas delas escritas no feminino – referem-se às mulheres, regra geral, de forma abreviada e muito genérica. Escapam aos escritos as informações que deveriam ser precisas e circunstanciadas720.

No século XVIII, assistimos a um tratamento mais importante dado às mulheres e às suas relações com os homens, contrariando a anterior tendência para considerar apenas as que se des- tacavam por serem pias ou escandalosas, sobretudo a partir da segunda metade de Setecentos. No entanto, esta alteração afigurou-se pouco significativa, uma vez que a mulher continuou pre- sa ao analfabetismo e ao homem que detinha a sua posse: marido, pai, irmão ou tutor. Vítima da indiferença masculina, a mulher torna-se útil unicamente por poder ajudar nas tarefas do campo e conceber filhos varões que garantiam a perpetuação do nome do progenitor. O casamento é, deste modo, entendido pela mulher como

un véritable fardeau, même si, dans sa jeunesse, elle a été vigoureuse et pleine de vie. De là souvent chez elle une amertume rentrée envers son mari, qui la domine physiquement et exploite les pouvoirs dont elle est dotée. Dès la première année, elle attend un enfant […] Les naissances se succèdent […] Sous la pression de ses premières années de mariage, la femme glisse peu à peu vers une attitude de soumission résignée à son sort. Certaines deviennent indifférentes, froides, inaccessibles à tout sen- timent, et intéressées uniquement par le gain. D’autres cherchent refuge et protection dans la volonté du Seigneur et sous Sa conduite.721

Facilmente se depreende, por isso, que sentimentos como o amor e até mesmo o afeto não existiam entre marido e mulher. Só a atenção que começara a ser dada ao sexo feminino nos permite referir que o aspeto que, talvez, mais se destaca nesta lenta transformação tem a ver com uma certa dessacralização do matrimónio, pelo menos sob o ponto de vista feminino.

718 Arlette F

ARGE (Org.), Le Miroir des Femmes, Paris, Éditions Montalba, 1982, pp. 18-19.

719 O adjetivo é proposto por Elisabeth RAVOUX-RALLO, na obra A Mulher no Tempo de Casanova, Lis-

boa, Editorial Inquérito, s/d, p. 34.

720 Mesmo a linguagem traz algumas dificuldades quando se trata de ensaiar uma História das Mulheres,

pois, nos casos referentes aos dois sexos, usa-se o masculino plural, disfarçando a influência do feminino.

721 Maria B

IDLINGMAIER, Die Bäuerin in zwei Germeinden Württembergs, Thèse d’État, Tübingen, 1918, pp, 167-168, apud Le Corps des Femmes, p. 28.

O sexo feminino foi sempre considerado um desvio em relação à norma masculina, quase um descuido da Natureza. Referindo-se a Françoise Collin722, Michèlle Perrot afirma que Aristó-

teles, o «pensador da dualidade dos géneros»723, é, contrariamente a Platão,

quem determina de maneira mais radical a superioridade masculina. As mulheres movem-se nos limi- tes da cidade e da selvajaria, do ser humano e da fera, constituindo uma ameaça potencial à vida harmoniosa da colectividade. Como mantê-las afastadas? As mulheres não são só diferentes: modelo inacabado, homem falhado, são incompletas, defeituosas. A frieza da mulher opõe-se ao calor do homem. Ela é nocturna, ele é solar. Ela é passiva e ele é activo. O homem é criador, pelo sopro, o

pneuma, e pelo sémen. Na gestação, a mulher não passa de um continente do qual apenas se espera que seja um bom receptáculo.724

A própria sensualidade feminina constituía um perigo para os homens mais descuidados. Deste modo se compreende que, na sociedade antiga, o comportamento masculino fosse, fre- quentemente, desprovido de sentimentos, destacando-se o seu caráter dominador, egoísta e mesmo brutal. Pelo contrário, a mulher apresentava-se leal e submissa face aos apetites do seu companheiro. Por não ser capaz de se governar a si mesma e aos seus, teria, obrigatoriamente, de ser dominada por alguém que o pudesse fazer: o homem que, segundo o Cavaleiro de Oliveira, «é mais nobre que a mulher, é-lhe superior, dirige-a – verdade é esta que não se pode negar, sem destruir os princípios em que se funda.»725. As leis portuguesas de então reconheciam mesmo

essa incapacidade e isentavam a mulher de qualquer direito, obrigando-a a submeter-se à autori- dade de outrem, normalmente do pai, marido, irmão ou tutor. O Cavaleiro de Oliveira não deixa, igualmente, de comentar a situação. Deste modo, «[a] mulher, não há dúvida, deve sujeitar-se ao poder do homem; obedecer ao marido; respeitá-lo; em caso contrário, seria revoltar-se contra a sapiência divina que lhe impõe estes deveres.»726. Assim se compreende o discurso acerca desta

matéria relatado por João Palma-Ferreira que, ao citar Gaspar Pires Rebelo727, um novelista do

século XVII, refere:

Sempre ouvi dizer que a mulher e a mesa há-de ser subjugada, uma porque lhe não ressalte os pés e outra para que não dê muito ao pé, porque como não têm quem as sujeite, usam às vezes mal da sua liberdade.728

722 Françoise C

OLLIN et al., Les Femmes de Platon à Derrida. Anthologie Critique, Paris, Plon, 2000.

723 Michèlle P

ERROT, Uma História das Mulheres, Porto, Edições Asa, 2007, p. 21.

724 Ibidem. 725

Recreação Periodica, p. 122.

726 Ibidem.

727 Novelista português que, em 1684, escreveu as Novelas Exemplares. 728 João P

ALMA-FERREIRA, Novelistas e Contistas Portugueses dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 123.

Não era fácil, pois, o papel feminino. Há mesmo notícias de homens condenados por falta de governo da sua casa, mas nunca por baterem na mulher, o que era considerado uma atitude perfeitamente normal e socialmente aceite. A filosofia aristotélica foi seguida por S. Tomás de Aquino, na Idade Média. Anteriormente, já o apóstolo S. Paulo pretendera que «[a] mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão.»729. E acrescenta: «(...) não permito que a mulher

ensine, nem exerça autoridade de homem.»730. No entanto, parece que os ensinamentos dos

homens da Igreja não se fizeram ouvir, sobretudo no que diz respeito à mulher de Setecentos, a fazer fé nos estudiosos daquela época que, a este defeito, acrescentam muitos outros. Assim, ela «é tagarela, maldizente e lasciva, é interesseira e propensa ao capricho e mau gosto, frequente- mente preguiçosa, gulosa, andeja, muito faladeira»731. Os folhetos que irão prender a nossa

atenção na segunda parte da dissertação espelham, como seria de supor, todos os defeitos femi- ninos. Assim, no seu conjunto, aqueles textos apresentam uma mulher que «[é] preguiçosa, des- mazelada, tagarela, bisbilhoteira, má língua, fútil e vaidosa, manhosa e gastadora, amiga de se divertir, cheia de ambição por um status superior ao que é o seu.»732. Na relação, regra geral