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3.1. Análise sociológica das relações amorosas 1 Da vida privada

3.1.2. Da noção de amor

3.1.2.1. Princípios filosóficos

Apesar de ser usado com insistência, o termo amor apresenta um significado e uma profun- didade difíceis de considerar com exatidão, o que tem suscitado, ao longo dos tempos, uma pro- funda reflexão filosófica acerca do sentimento amoroso.

Cremos ser importante, antes de mais, considerar aqui os diversos significados que o termo amor pode revestir, ao ser usado nas linguagens coloquial, filosófica, psicológica e social. Para isso, socorremo-nos da pormenorizada abordagem ensaiada por Enrique Rojas574, professor cate-

drático de Psiquiatria da Universidade Complutense de Madrid, que revisita, na sua obra, os princípios filosóficos que, com maior importância, ajudaram a construir a história do pensamento ocidental, desde a Antiga Grécia até aos nossos dias. Por razões sobejamente conhecidas, limi- tar-nos-emos a enunciar o essencial, pelo que convocaremos, de seguida, algumas destas teorias filosóficas respeitantes ao amor e desenvolvê-las-emos por termos encontrado ecos das mesmas na abordagem que os folhetos de cordel setecentistas fazem deste nobre sentimento.

Na linguagem coloquial, o amor é entendido, em primeiro lugar, como uma «[r]elação de amizade e de simpatia que se mantém com outra pessoa (…).»575. Comporta, igualmente uma

vasta «gama de relações interpessoais: amor dos pais pelos filhos e vice-versa; amor pelos fami- liares, amigos, companheiros de trabalho, vizinhos, etc.»576. O termo reporta-se também «a coi-

sas e objectos inanimados: amor aos móveis antigos, à arte medieval, à literatura romântica, etc. (…) faz menção de temas ideais: amor à justiça, ao bem, à verdade, à ordem, etc.»577 e ainda é

usado «[c]om referência a actividades ou formas de vida: amor à tradição, ao trabalho, à riqueza, à vida natural.»578. Há também a considerar «[o] amor ao próximo, entendido no sentido etimo- lógico e literal: às pessoas que estão perto de nós e, por consequência, ao facto de ser humano (…) O amor a Deus (…).»579. E, obviamente,

573 «Novas formas: vida privada, sociabilidades culturais e emergência do espaço público», in História da

Vida Privada em Portugal, p. 424.

574 Enrique ROJAS, Uma Teoria da Felicidade, Coimbra, Edições Tenacitas, 2005. 575 Idem, p. 74. 576 Ibidem. 577 Idem, p. 75. 578 Ibidem. 579 Ibidem.

[o] amor entre homem e mulher. Esta é uma via de conhecimento muito rica, pois nela vibra toda a temática pessoal, que vai do físico ao espiritual, passando pelo psicológico. Os seus matizes, os seus mistérios e meandros são infindáveis.580

No âmbito filosófico, são vários os princípios destacados pelo autor como representativos dos diferentes usos dados ao amor. Começando pela Grécia, afirma que, ali,

o amor é, antes de tudo, uma força unitária e harmonizadora da amizade e da concórdia. Para Sócra- tes é mesmo o motor fundamental da vida. Platão inclui no amor o nível sexual, mas num plano manifestamente inferiorizado. Aristóteles toma-o como uma modificação positiva da vida interior, unindo-se nele a tensão emotiva e o desejo; chega a defini-lo como o gozo e o desejo de engendrar a beleza.581

Para os seguidores da filosofia platónica, o amor é

o rumo principal para chegar a Deus (…). Foi Empédocles o primeiro a utilizar a ideia de amor em sentido metafísico, contrapondo-a à ideia de conflito; considerou ambos como princípios de união e de separação dos elementos do universo. Mas é com Platão que a questão alcança realmente a sua plenitude teórica (…); para ele, o amor é sempre amor por algo, criando-se como uma tensão entre o sujeito e o objecto; o amante não possui aquilo que ama, porque nesse caso não existiria amor (…) o amor é a contemplação pura da beleza absoluta – a beleza divina – não contaminada por nada impuro e transcendendo todo o particular.582

Em síntese, Enrique Rojas acredita que apenas

Platão e os neoplatónicos consideram o amor como um conceito fundamental (…). Na filosofia cristã o tema adquire um alcance ilimitado, mas de alguma maneira vem entroncar na tradição helénica. A fenomenologia do amor foi magistralmente exposta por São Paulo na Epístola aos Coríntios (…). Esta filosofia coloca o amor à frente da fé e da esperança. Por isso, aquele que não ama nunca conhe-

ceu Deus, porque Deus é amor.583

De seguida, destaca Santo Agostinho, Descartes e São Tomás de Aquino. Em relação ao primeiro, refere que o pensador crê que

não se entra na verdade senão pela caridade. Esta é a raiz de todo o seu pensamento que assenta no pensamento platónico (…). Chega-se a Deus através da intimidade do ser humano (…). Com Descar- tes começa a perfilar-se o homem moderno (…). O amor não é cego, pelo contrário, transporta indi- gentes quantidades de luz porque se abre para o bem e, graças a este, ao reconhecimento dos valores na sua objectividade. (…) São Tomás de Aquino diz que o único desejo do amante, quando ama, é que o objecto do seu amor simplesmente viva (…). Ortega Y Gasset di-lo do seguinte modo: “Amar

580 Ibidem. 581 Ibidem.

582 Idem, pp. 75-76. 583 Idem, pp. 76-77.

uma coisa é estar empenhado em que exista; não admitir, naquilo que de nós dependa, a possibilidade

de um universo onde aquele objecto esteja ausente…584

A psicologia vê o amor, em primeiro lugar, como

uma motivação básica da conduta humana. (…) o amor como força de activação é uma faculdade capaz de abrir-se a outras pessoas, de comunicar com elas e de estabelecer laços afectivos, de com- preensão recíproca, de necessidade de proximidade; que sabe respeitar a personalidade e a liberdade alheia e procurar o bem do outro.585

Finalmente, o autor contempla a linguagem social para dizer que ela «tem maltratado a pala- vra ‘amor’ (…)»586.

Neste sentido, para muitos sociólogos,

o amor equivale a sexo; daí essa infeliz expressão, hoje tão corrente no acervo coloquial, ‘fazer amor’. O amor não se faz, dá-se ou recebe-se. Esta concepção degrada o ser humano e converte um sentimento nobre numa relação humana sexuada que passa necessariamente pelo contacto físico. Este modo de pensar desconhece a essência do verdadeiro amor, o que condiciona determinadas formas de entender o tema, problemáticas na maior parte das vezes.587

Face ao exposto, a polissemia da palavra é evidente e, por isso, convirá, atendendo ao que fica dito, distinguir as diferentes acepções da palavra. Diz Ortega y Gasset que

em sentido estrito (isto é, o amor apenas, não o estado total da pessoa que ama), o amor é pura activi- dade sentimental em relação a um objecto, que pode ser, indiferentemente uma pessoa ou uma coi- sa.588

Entendido «como actividade sentimental»589, o amor parece estar, «por um lado, separado de

todas as funções intelectuais – percepcionar, estar atento, pensar, recordar, imaginar – e, por outro lado, separado do desejo com o qual frequentemente se confunde.»590. Assim, Enrique

Rojas afirma que o «amor é uma complicada realidade cujo conteúdo nos obriga a uma incursão no domínio do psicológico.»591. Pertencente à esfera afetiva, o amor influencia e matiza toda a

nossa vivência psicológica, promovendo uma aproximação ao objeto da nossa paixão, ao mesmo tempo que nos impele à entrega. Deste modo, induz o ser humano à posse de algo. Logo, amor 584 Idem, pp. 76-78. 585 Idem, p. 79. 586 Idem, p. 80. 587 Idem, pp. 80-81.

588 Estudos Sobre o Amor, p. 37. 589 Ibidem.

590 Ibidem.

«é tendência, inclinação, apetência pelo objecto amado»592. Deste modo, o amor distingue-se de outros sentimentos como a alegria ou a tristeza, que são passivos (e se conjugam com o verbo estar). Amar não se limita ao estar, mas leva o agente a atuar sobre a pessoa amada. Por este motivo, Ortega y Gasset afirma que o amor é «um acto transitivo através do qual nos entregamos àquilo que amamos.»593.

Muitas definições de amor foram construídas ao longo dos tempos. Atualmente são publica- das centenas de obras, umas mais credíveis que outras, que tentam encontrar a melhor definição para este sentimento humano. Mas, dada a sua complexidade, o conceito tem-se furtado a uma descrição apropriada. No entanto, cremos que a proposta de Ortega y Gasset é a mais completa e será em torno dela que iremos tecer as nossas considerações. Baseando-se no estudo de Pfän- der594, o filósofo define amor como «um acto centrífugo da alma que se dirige ao objecto num fluxo constante e o envolve numa cálida corroboração, unindo-nos a ele e afirmando positiva- mente o seu ser.»595.

Bastante interessante parece-nos também a noção de amor defendida por Robert J. Sternberg decorrente das suas investigações596. Concebe, assim, um triângulo, que nada tem a ver com o

famoso triângulo amoroso, conhecido de todos, como, aliás, previne o psicólogo. Fundamental- mente, na sua perspetiva, «[o] amor pode ser entendido como um triângulo (...), em que cada vér- tice representa um destes três componentes: intimidade (vértice superior do triângulo), paixão (vértice da esquerda), e decisão / compromisso (vértice da direita).»597. Destacando estes três

atributos que julga serem os mais ativos no amor, o psicólogo descreve detalhadamente cada um deles. Impossibilitados de abordar todos os pormenores, limitar-nos-emos a, apropriando-nos das palavras de Sternberg, sintetizar aquilo que cada um representa. Deste modo,

a intimidade refere-se aos sentimentos de uma relação que promovem a proximidade, a ligação e a conexidade.

(...) A intimidade resulta de interligações fortes, frequentes e diversas entre as pessoas.

(...) Para sermos íntimos de alguém, temos de deitar abaixo as paredes que nos separam dos outros.

(...) A intimidade é, pois, um alicerce do amor, mas um alicerce que se desenvolve lentamente, sem continuidade, e é difícil de avançar.598

Por seu turno, a paixão

592 Ibidem. 593 Idem, p. 37.

594 Alexander PFÄNDER, «Zur Phänomenologie der Gesunnungen», in Jahrbuch für Philosophie und

Phänomenologische Forschung, Halle, 1913.

595 Estudos Sobre o Amor, p. 19.

596 Cf. A Seta do Cupido – O Percurso do Amor ao Longo do Tempo. 597 Idem, p. 4.

é, em grande parte, a expressão dos desejos e necessidades – tais como de auto-estima, envolvimento, afiliação, domínio, submissão e realização sexual.

(...) A paixão no amor pode tender a entrelaçar-se com sentimentos de intimidade e muitas vezes alimentam-se mutuamente. (...) A paixão pode ter atraído os indivíduos para a relação, em primeiro

lugar, mas a intimidade ajuda a manter a proximidade na relação.599

Finalmente,

[a] componente decisão / compromisso do amor comporta dois aspetos – um a curto prazo e outro a longo prazo. O aspeto a curto prazo é a decisão de amar um determinado outro, enquanto que a longo prazo é o compromisso de manter esse amor.

(...) A componente decisão / compromisso do amor está relacionada tanto com a intimidade como com a paixão. Para a maioria das pessoas resulta da combinação do envolvimento íntimo e da excitação apaixonada; porém o envolvimento íntimo ou a excitação apaixonada podem resultar do comprimisso, tal como em certos casamentos arranjados ou em relações íntimas em que não há esco- lha de parceiros.600

Em síntese,

[p]ossuímos um certo grau de controlo consicente sobre os nossos sentimentos de intimidade (se esti- vermos conscientes deles), um grau elevado de controlo sobre a componente decisão / compromisso que investimos na relação (uma vez mais se assumirmos a tomada de consciência), mas pouco con- trolo sobre a quantidade de excitação apaixonada que sentimos em resultado de estarmos ou mesmo olharmos para outra pessoa.601

Deste modo se compreendem as atitudes dos apaixonados dos folhetos de cordel que reuni- mos. A sua loucura resulta precisamente da incapacidade que demonstram para agir racional- mente perante a pessoa amada. Novos ou velhos, homens ou mulheres, todos experimentam um turbilhão de sentimentos e nem sempre são capazes de os gerir convenientemente, como vere- mos, dada a força que encerram.

É sabido que o homem ocidental estruturou o seu pensamento a partir da influência das cul- turas greco-romana e cristã. Desta junção resultam três tipos fundamentais de amor: Eros, philia e caritas602.

599 Idem, p. 9. 600 Idem, pp. 11-12. 601 Idem, p. 13.

602 Convém notar que os filósofos gregos distinguiam cinco tipos diferentes de amor: Eros, o deus do

amor, demonstrava uma componente física (protagonizada por Afrodite) e outra celeste (o chamado «amor pla- tónico»). Paralelamente a este, concebiam a philia (a amizade), o storgé (o amor familiar), o ágape (o amor ao próximo, abnegado e incondicional) e xenía (amor ao desconhecido). Optámos, no entanto, pela subdivisão mais aceite pela maioria dos pensadores contemporâneos. Modernamente, o já citado psicólogo Robert J. Sternberg considera que, apesar de notar que o amor engloba três componentes essenciais (a que acima nos

O primeiro – Eros ou amor-paixão603 – é o mais conhecido. A palavra Eros, de origem gre- ga, significa «desejo» ou «amor», sobretudo se tivermos em atenção o cariz sexual que normal- mente se associa ao termo604. Deus grego do amor, Eros encontrou o seu equivalente romano em

Cupido605, aquele que inspirou a maior parte das obras literárias que versam o amor. Munido de

setas que vai disparando sobre as pessoas que ataca, Cupido afigura-se como um jovem de olhos vendados que, graças ao seu comportamento, faz eclodir paixões repentinas no coração dos que, inadvertidamente, são atingidos pelas flechas do deus menino. De acordo com o relato mitológi- co, as pessoas acabam por se apaixonar imediatamente por quem os deuses escolhem e não por sua livre vontade. Está, deste modo, justificado o amor à primeira vista que exibe três caracterís- ticas fundamentais: a paixão é quase imediata; resulta na constituição arbitrária do par de namo- rados; e causa, na maior parte das vezes, sofrimento (convém não esquecer que o coração atingi- do por uma seta fica ferido e que, na sua etimologia, a palavra paixão significa sofrimento). No entanto, este amor à primeira vista encerra um perigo contra o qual nem sempre os apaixonados estão precavidos: a relação amorosa, por não poder contar com um período de tempo de convi- vência entre os apaixonados, acaba por perigar, uma vez que se funda unicamente na aparência física do parceiro (e já diz a sabedoria popular que quem vê caras, não vê corações). Assim, cego pela paixão, o amante pode não percecionar corretamente a imagem que o outro projeta em si. Para além disso, este amor-paixão poderá conduzir a resultados bem mais perniciosos: o estado de euforia provocado pelo sentimento amoroso leva o amante a experimentar emoções verdadei- ramente contraditórias que parecem agravar-se quando o ente querido decide romper com a rela- ção. Neste caso, o desgosto amoroso poderá implicar a perda da razão de viver, situação explica- da pelas teorias de Platão que Aude Lancelin e Marie Lemonnier sintetizam. Para as investigado- ras,

[a] imensidão do desgosto amoroso é profundamente enigmática. Isto não pode explicar-se a não ser pelo recurso à teoria de Platão segundo a qual aquilo que foi vivido durante um dia, uma semana ou dez anos tinha como ponto de fuga um sentimento de eternidade. Em consequência, não apenas se cai lá do alto, tudo está perdido.606

referimos – intimidade, paixão e decisão / compromisso), acredita que, da combinação destes elementos, resul- tam sete tipos de amor: afeto (apenas intimidade); enfeitiçamento (apenas paixão); amor vazio (apenas decisão / compromisso); amor romântico (intimidade e paixão); amor companheiro (intimidade e compromisso); amor louco (paixão e compromisso); amor total (intimidade, paixão e compromisso). (Cf. a obra A Seta do Cupido – O Percurso do Amor ao Longo do Tempo).

603 É comum considerar-se que este tipo de amor traduz um desejo sexual experimentado pelo ser humano

na tentativa de se fundir com algo que ainda não possui. Os filósofos modernos afirmam, por isso, que todas as formas do verdadeiro amor pressupõem sempre a presença de um forte cariz erótico, pois envolvem o desejo pelo outro.

604 A ligação entre sexo e amor é tão estreita que o termo erótico passa a designar o despertar do desejo

sexual.

605 Note-se que o vocábulo Cupido, na terminologia cristã, foi sempre identificado com o amor sexual. 606 Aude LANCELIN e Marie LEMONNIER, Os Filósofos e o Amor, Lisboa, Tinta-da-China, MMX, p. 35.

De facto, esta conceção relativa ao desgosto causado pelo amor está de acordo com a visão de Sócrates sobre o aspeto trágico da existência humana, a que não é, certamente, alheio o facto de o homem, tendo a perfeita consciência de que é um ser mortal, insistir em desejar a eternida- de. É por isso que decidimos destacar, aquando do estudo detalhado dos folhetos de cordel sele- cionados, personagens – homens e mulheres, velhos ou jovens – cujo desejo irá torturá-los até conseguirem o bem amado (o que nem sempre ocorre). Por outro lado, teremos oportunidade de observar aqueles que, conquistando o objeto do seu desejo, tudo fazem para o conseguirem man- ter até ao fim dos seus dias.

É o amor, na verdade, o tema de poemas, romances e obras dramáticas, sejam elas clássicas ou românticas, trágicas ou cómicas607. Tendo como matriz filosófica os estudos de Platão, cuja

obra, O Banquete608, influenciará indelevelmente toda a visão ocidental do amor, Eros aproxima-

se do chamado amor romântico, a que não será estranho o sofrimento e mesmo a morte provoca- dos pela ausência do sujeito amado. De entre as obras mais perfeitas da tradição literária, que são numerosas, convirá citar Romeu e Julieta, a Nova Heloísa, Werther, ou ainda Tristão e Isolda. Este amor produz uma atração irresistível, pois constitui uma promessa de felicidade extraordiná- ria. Neste sentido, são as obras literárias que enformam na mente dos seus destinatários o concei- to de história de amor ideal, que poderá orientar o seu comportamento ou, pelo contrário, gerar neles um sentimento de frustração por não conseguirem imitar os heróis que admiram.

O segundo tipo de amor – philia (em latim, dilectio) – aproxima-se do conceito desenvolvi- do por Aristóteles e consubstancia-se na vontade de partilhar a companhia do ente querido atra- vés da virtude, excluindo qualquer conotação sensual. É Espinosa quem descreve este desejo, ao considerar que não vive da necessidade da presença do outro, nem mesmo da obrigatoriedade de a ele se unir. A felicidade advém, assim, do facto de o outro existir apenas.

O terceiro e último tipo de amor, caritas ou ágape, está intimamente ligado ao humanismo cristão, uma vez que ultrapassa os desejos ou necessidades de cada indivíduo e fá-lo atentar nas privações dos outros. Contrariamente ao amor-paixão, que não propicia ao amante qualquer intervenção na escolha do ser amado, por ser guiado por uma força inconsciente ou instintiva à qual dificilmente se pode resistir, o ágape pressupõe uma escolha consciente e voluntária. Apesar

607 A propósito das histórias de amor que estão na génese de importantes obras-primas da literatura univer-

sal de todos os tempos, Robert J. STERNBERG destaca a sua importância nestes termos:

Se nos debruçarmos sobre as histórias para compreender o amor, então temos de olhar não só para as histórias de amor contemporâneas, mas também para as histórias de amor ao longo dos séculos – no tempo e no espaço. A importância das clássicas histórias de amor é demonstrada pela sua capacidade de resistência. As pessoas contam e recontam as histórias de amor desde há séculos. Estas histórias de amor não só proporcionam um divertimento interes- sante, mas também enformam as nossas próprias histórias sobre o amor, fornecendo, como fazem, protótipos daquilo que o amor é suposto ser. (A Seta do Cupido – O Percurso do Amor ao Longo do Tempo, p. 71).

E acrescenta que «[e]mbora as conceções de amor variem um pouco conforme o tempo e o espaço, certos temas universais parecem transcender tanto o tempo como o espaço.» (Ibidem).

destas diferenças, e do seu nítido afastamento ao longo dos tempos, os autores modernos consi- deram que eros e ágape podem ser compatíveis e crescer um a partir do outro. Neste sentido, as conceções de Aristóteles acerca do amor levam-nos a concluir que não existem divisões relevan- tes entre as formas que o amor pode revestir, sendo certo que todos estes tipos de amor deveriam ser dominados pelo ser humano.

No que diz respeito unicamente ao século XVIII, convirá tecer algumas considerações acerca da forma como a filosofia da época encara o amor. Destacaremos, pela sua pertinência, Jean- Jacques Rousseau. Será este filósofo o grande responsável pela tentativa de devolver aos homens o verdadeiro significado do amor, num século marcado pelo racionalismo científico e pelo comércio desenfreado, avessos a qualquer manifestação do espírito.

Empenhado em revalidar o eros platónico, Rousseau cumpre este desiderato de uma forma original, considerando o amor como uma paixão perigosa e pouco inocente, consubstanciada num artificialismo que, no século anterior, os moralistas fizeram questão de sublinhar. Deste modo, o amor funciona como uma doença contagiosa. A perspetiva de que só nos apaixonamos porque outros o fizeram antes de nós é verdadeiramente surpreendente. Colocado o sentimento amoroso nestes termos, ele deixa de ser o resultado de uma vivência pessoal e passa a consti- tuir-se como uma espécie de convenção social. Desejamos alguém apenas porque outros mani- festaram pulbicamente o seu desejo por essa pessoa. Quanto mais cobiçado é um indivíduo, mais pretendentes o disputarão. As personagens intervenientes nas peças que dissecaremos constituem um exemplo claro daquela estranha forma de atração.

O filósofo vai mais longe nas suas reflexões sobre o amor e considera que este sentimento é, com frequência, usado com astúcia, sobretudo pelas mulheres, para subjugarem os homens à sua