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3.1. Análise sociológica das relações amorosas 1 Da vida privada

3.1.2. Da noção de amor

3.1.2.3. Para uma história do amor

Conscientes das limitações que um trabalho desta natureza implica, antes de nos prendermos às muitas histórias de amor que dominam a intriga dos folhetos de cordel que colecionámos, não poderemos continuar as nossas reflexões sem tratarmos da História do amor, imprescindível para podermos perceber cabalmente a mentalidade do homem setecentista. Sabemos que a tarefa a que nos propomos não é fácil. Os seus escolhos são muitos e variados, sobretudo quando nos dedi- camos a uma época que, na sua globalidade, ainda não foi cabalmente investigada, pelo menos no que a este tema diz respeito. Um dos mais sérios problemas diz respeito à fragilidade das fon- tes que, na maior parte das vezes, chegaram até nós mutiladas e pouco consistentes. Por outro 636 Idem, p. 29. 637 Ibidem. 638 Ibidem. 639 Idem, p. 35. 640 Ibidem. 641 Ibidem. 642 Idem, p. 36.

lado, é a arte, nomeadamente a literatura que aqui nos interessa, que mais informações veiculou. Apesar de termos consciência de que não podemos tomar os texto literários como irrefutáveis fontes históricas – pelos seus óbvios constrangimentos –, acreditamos que a sua importância não pode ser questionada quando se tenta traçar o perfil das relações amorosas, sobretudo se tivermos em conta que documentos como os folhetos de cordel são dos poucos que até nós chegaram e que abordam claramente o tema do amor.

Para além do que acima ficou dito, importa ter consciência de que o conceito de amor depende de fatores de natureza externa que a cultura trata de definir, o que nos permite concluir que «o próprio amor é uma ideia socialmente construída»643. Se aquilo que uma pessoa tem por

atraente varia de acordo com a cultura, também a aprovação social de um certo relacionamento será determinada por condicionamentos sociais e isso ditará o tipo de relações que podem ser aceites e o grau de felicidade que as mesmas conferem aos seus intervenientes. Por exemplo, o casamento por interesse era tido, no Portugal de Setecentos, como o mais conveniente, sobretudo pelos mais velhos, apesar de ser cada vez mais questionado pelos jovens. No mesmo sentido concorre a diferença de idades dos nubentes. Se o homem mais velho que a mulher poderia garantir um ambiente familiar financeiramente saudável, a recusa por parte das jovens casadoiras em unir-se a um homem que, muitas vezes, teria idade para ser seu pai, revela a tendência que a sociedade portuguesa do século XVIII começa a manifestar, repudiando as grandes diferenças etá- rias entre marido e mulher. Porém, o verdadeiro amor é avesso a qualquer limitação social, seja o grupo a que se pertence, seja a raça ou a religião. Assim, «[a] omnipotência do amor que-tudo- justifica torna mais fácil que os amantes desobedeçam às leis da sociedade.»644. No entanto, «[a]

rebelião de um amante contra a sociedade é por vezes diagnosticada como loucura, ou pelo menos irracionalidade (...).»645. Mas será que a paixão não é uma espécie de loucura que todos querem experimentar? E que «[i]dealmente, o amor é um fenómeno natural e não social»?646

Estudos consistentes apontam para o facto de, na Pré-História, o Homo Sapiens já demons- trar evidências de uma relação bastante próxima com os seus semelhantes, seja na morte – ao cuidar dos defuntos –, seja no que diz respeito aos sentimentos do foro amoroso.

A maioria dos estudiosos das coisas do amor destaca o facto de uma reflexão sobre aquele sentimento ter ocorrido em todas as sociedades antigas, do Império Babilónico à Grécia antiga. As teorias de Platão acerca do amor revelam-se imprescindíveis quando debatemos os sentimen- tos humanos, na medida em que elas estão na base das mais variadas teses defendidas sobre o relacionamento amoroso ao longo dos tempos. Na obra O Banquete, a que já tivemos oportuni-

643 A Seta do Cupido – O Percurso do Amor ao Longo do Tempo, p. 61. 644 Idem, p. 88.

645 Ibidem. 646 Idem, p. 91.

dade de aludir, Platão647 expõe aquilo que considera como o Mito do Andrógino, tendo como pressuposto essencial o facto de o homem ser o resultado da duplicação de dois seres humanos. Dos vários tipos de duplicado648, destaca o andrógino real, ou espécie total, que José Pacheco

descreve como a síntese «da primitiva divisão de um ser composto por um macho e por uma fêmea que se envolviam em cenas de relacionamento heterossexual, incluindo as relações sexuais adúlteras.»649. Mais à frente acrescenta que «os deuses separaram-nos em duas metades exacta-

mente iguais que, instintivamente, se buscavam e desejavam uma à outra.»650. Sintetizando as

palavras de Platão, o autor refere que, a partir do momento em que essas partes se encontram, a separação é impossível. Deste modo se compreende a opção de Platão em considerar que o pro- cesso amoroso é evolutivo e coloca a tónica no desejo como força impulsionadora da experiência amorosa. Apesar de centrar as suas reflexões no par homossexual651, o processo amoroso por ele definido é válido também para os casais heterossexuais.

A primeira fase do relacionamento é pública. Trata-se de uma prova em que o amante caça literalmente o ser amado (a presa). Detentor da iniciativa, o amante ocupa um lugar proeminente em relação ao objeto da sua paixão, dominando-o pelas suas investidas. Desde o início, notamos que a relação amorosa se baseia numa ligação que não é igual. Apesar de pouco consensual, era comum, no tempo de Platão, considerar-se que o amado não devia, por decoro, deixar-se possuir rapidamente, uma vez que se tornava essencial conhecer – e testar – as qualidades do amante.

A segunda fase é a privada. A maior proximidade do casal em espaços íntimos potencia declarações de amor e contactos físicos (beijos e abraços). Platão alerta, no entanto, para o perigo das armadilhas durante o processo de conquista: os amados deveriam ter o cuidado de não ceder às pressões dos amantes apenas por estes serem ricos ou poderosos. Por seu lado, os amantes também não deviam criticar e mesmo abandonar os amados pela sua beleza, ou falta dela, ou pela idade.

A última etapa é o enamoramento. Aqui, os amantes dedicavam-se exclusivamente aos ama- dos, esquecendo tudo o resto. A relação amorosa tornava-se então tão forte que o amado era tido como um escravo. As considerações de Platão não se ficaram por aqui. Complementarmente, o filósofo traça o percurso da conceção de amor ao longo da vida.

647 O Cavaleiro de OLIVEIRA aproveita os princípios platónicos para referir, em Setecentos, o seguinte:

«Sempre se viu os sexos andarem em demanda um do outro, em demanda da porção que lhes falta, trabalhando reciprocamente para se comunicarem suas belezas e modos, a fim de perfazerem um corpo de humanidade.» (Recreação Periodica, p. 120).

648 Os três duplicados, segundo Platão, são o macho, a fêmea e o andrógino real. 649 O Tempo e o Sexo, p. 71.

650

Ibidem.

651 Robert J. S

TERNBERG acrescenta que «na Grécia Antiga, muitas pessoas acreditavam que o amor ver- dadeiro era aquele que existia entre um homem adulto e um jovem adolescente. Os homens gregos desdenha- vam muitas vezes das suas mulheres. Porém, os jovens adolescentes eram considerados muito atraentes e dig- nos do amor de homens mais velhos.» (A Seta do Cupido – O Percurso do Amor ao Longo do Tempo, p. 58).

Na primeira fase, considerada a variação sexual652, o homem, porque jovem, deseja unir-se a todos os corpos que considera belos. No entanto, esta fase não dura muito e o indivíduo rapi- damente se apercebe de que tem necessidade de se juntar apenas a um só corpo: é a exclusividade amorosa. A terceira e última fase, o êxtase amoroso, leva o homem, agora mais maduro, a consi- derar que a beleza da alma é muito mais importante do que a do corpo. É a tomada de consciên- cia de que o amor que se funda na beleza não tem bases sólidas, pois aquela é efémera e é irre- versível o processo de envelhecimento653.

Face ao exposto, pode dizer-se que o amor platónico é aquele que defende um relacionamen- to até ao fim da vida monogâmica, sendo a separação entendida como um momento angustiante. A posse deste tipo de amor leva a que «quem deseja a felicidade pretende ser feliz»654, mas esta é

«uma aventura que acontece a poucos»655.

José Pacheco acredita que o mito do andrógino

não se fundamentava na realidade da sociedade grega da época, onde o amor heterossexual era enca- rado com alguma indiferença. No entanto, conceptualiza e representa a ideia da “fusão” amorosa que associa ao amor heterossexual, mesmo que, curiosamente, não o enquadre claramente no casamento. Apesar de, implicitamente, o amor “físico”, estético, estar presente na fórmula de Platão, o certo é que os vindouros haveriam de interpretar o “amor platónico” como uma forma de amor “espiritual” e “não-sexual”, entre pessoas de sexo diferente. E haveriam, igualmente, de ignorar (ou hipervalorizar) que essa concepção reproduzia a fórmula que antes tipificara as relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo, no caso o masculino. Em qualquer dos casos a fundamentação teórica de Platão sobre o amor viria a sustentar a maioria das teses posteriormente elaboradas sobre o relacionamento amoro- so.656

Os contributos da mitologia para a compreensão do fenómeno amoroso não devem ser esquecidos. Os mitos de Dafne e Apolo e de Aretusa e Alfeu, na sua essência semelhantes, foram dados a conhecer por Ovídio e ilustram o poder da beleza no desenvolvimento da paixão amoro- sa. Atraídos, pois, pelo aspeto de Dafne e Aretusa, tanto Apolo como Alfeu tentaram conquistá- las. Mas aquelas, avessas à paixão, preferiram ser transformadas, respectivamente num loureiro e numa fonte, para escaparem às investidas das divindades. Estes dois mitos simbolizam, assim, a atracão física e seus efeitos perversos.

Existem, no entanto, mitos fundados num amor feliz, eterno. Mais uma vez Ovídio dá-nos conta de três relatos que ilustram as consequências de um amor conjugal exemplar. O primeiro é o de Baúcis e Filémon. Velhos e prestes a morrer, pedem aos deuses para ficarem sempre juntos.

652 Esta expressão e as seguintes, em itálico, foram propostas por José PACHECO em O Tempo e o Sexo,

p. 73.

653 É característica do amor vulgar a tónica no corpo e não na alma, relevando unicamente o prazer sexual. 654 O Banquete, p. 93.

655 Ibidem.

Tocados pelo seu amor e fidelidade, os deuses satisfazem a vontade de ambos e transformam-nos numa árvore cujo tronco é comum a ramos diferentes. O segundo mito tem como protagonista Ceys e Alcione. Vivendo um amor feliz, acabam por ser separados pela desventura. Ceys morre num naufrágio e Alcione, não querendo viver mais sem o marido, procura o seu corpo na imen- sidade do mar. Ao encontrá-lo, ambos se transformam em pássaros e, deste modo, permanecem juntos, unidos pelo seu amor eterno. O último mito é o de Orfeu e Eurídice. Algum tempo após o casamento, Eurídice morre envenenada. A fim de a recuperar, Orfeu desce aos Infernos e quase consegue os seus intentos. Por ter olhado para trás, acaba por perder a sua esposa para sempre. Até morrer, Orfeu nunca mais teve paz nem foi capaz de amar outra pessoa.

A par destes mitos que enaltecem o amor conjugal, existem outros, do mesmo período, que personificam as mais diversas conceções de amor e que iremos dissecar mais adiante. De entre os mais interessantes, destacaremos os que se seguem, por considerarmos que contribuem para acla- rar as diferentes faces do amor daquele período e dos subsequentes reflexos e influências dos mesmos ao longo dos tempos.

O mito de Píramo e Tisbe pretende mostrar que não pode haver proibições ao amor e que, quanto mais se pretende afastar os amantes, mais a paixão se fortifica. Apaixonados, os dois assistem, impotentes, à oposição dos respetivos pais. A custo, conseguem manter acesa a chama da paixão através de encontros fortuitos. No entanto, a convergência de vários fatores condu-los à morte. A História está repleta de casos como o que acabámos de sintetizar. Condicionalismos familiares e sociais pretendem pôr termo ao amor livre que, só a muito custo, consegue vingar657.

Por vezes, o preço a pagar é elevado. Mais tarde, a famosa obra de Shakespeare, Romeu e Julieta, aborda a mesma temática do mito de Príamo.

O mito de Pigmaleão ilustra a procura incessante do par ideal. Acreditando que nenhuma mulher é perfeita, Pigmaleão cria uma escultura da mulher mais bela e irrepreensível que pode imaginar. De tal forma a criação parecia real que o seu autor se apaixona perdidamente por ela. No entanto, a mulher esculpida não era capaz de corresponder às manifestações de carinho de Pigmaleão, que cada vez mais se sente infeliz pelo facto de estar preso a um ser inanimado. Por vezes, a procura da perfeição conduz-nos à desgraça e leva-nos a concluir, regra geral demasiado tarde, que o ser perfeito não existe. Tal acontece com a beleza, como veremos. No entanto, a his- tória de Pigmaleão termina bem, pois Vénus dá vida à estátua, apesar de considerar desviante a sua fixação num modelo perfeito de beleza. Metaforicamente, o mito ilustra a vontade de talhar o objeto do amor à imagem do nosso próprio desejo. A busca de um ideal concebido apenas na nossa cabeça empolgou, desde sempre, a fantasia humana.

657 Os obstáculos ao amor fortalecem-no, muitas vezes. A literatura aproveitou este facto e estabeleceu

formas diversas para as provações: impedimentos financeiros e políticos, pressões familiares e sociais são ape- nas as mais visíveis. Neste sentido, Ovídio compara os apaixonados a soldados que, na batalha pela felicidade, recebem o amor como prémio pelo seu esforço.

O mito de Psique pretende frisar a importância que é dada aos obstáculos que impedem os amantes de serem felizes. Esta temática será amplamente abordada nos folhetos de cordel que pretendemos estudar e a síntese do mito é em tudo semelhante ao enredo que os autores de cordel desenvolveram: após muitas e penosas provações, a alma dos apaixonados encontra o merecido descanso no amor658.

A importância deste mito tem a ver com o facto de englobar

elementos das histórias de amor do passado como do presente: desejo, mistério, beleza, confusão, procura, ciúme, fé, deslealdade, perdão, ajuda dos outros, resistência dos outros, pais zangados, e arrependimento, entre outras coisas.659

Os mitos que resumimos aqui possuem algo em comum: por um lado, provam que o amor era um facto digno de registo nas sociedades antigas; por outro, associam a experiência amorosa a diversos riscos e perigos, que podiam conduzir à morte.

Na Bíblia, sobretudo nos Livros que constituem o Pentateuco, a conquista amorosa era des- provida de formalismos: a mulher era escolhida pelo homem e passava a ser a sua esposa. Por vezes, eram escolhidas prisioneiras e levadas para casa. Apesar de esta situação ser recorrente, os textos sagrados preveem a sedução masculina. Diz o Êxodo que

[s]e alguém seduzir qualquer virgem que não estava desposada e se deitar com ela, pagará o seu dote e a tomará por mulher. Se o pai dela definitivamente recusar dar-lha, pagará ele em dinheiro confor- me o dote das virgens.660

Quanto à violação e ao rapto, havia tolerância, desde que os intervenientes se casassem.

658

Muitos são os relatos que tentam uma aproximação mais ou menos fiel ao mito elaborado por Apuleio. Optámos por incluir nesta nota de rodapé um resumo elaborado por José PACHECO por nos parecer o mais con- ciso e fiel ao original. Apesar de dificuldades que sentimos advenientes do pouco espaço de que dispomos na presente dissertação, não quisemos deixar de relembrar um dos mais importantes e conhecidos mitos de amor, uma vez que será possível encontrar reflexos interessantes em alguns dos folhetos que estudaremos de seguida:

Psique era a mais bela de três irmãs. Era tão adorada e admirada que esvaziou de visitantes os templos de Vénus. A deusa, sentindo-se ultrapassada, ciumenta e enraivecida, pediu a seu filho Cupido para a levar a apaixonar-se pelo mais vil e desprezível dos homens.

Mas nem Psique se apaixonava, nem nenhum homem a queria desposar. O pai pediu ajuda a Apolo para a casar. Apolo destinou-lhe um marido que não lhe permitia que ela o visse. Isso acicatou-lhe a curiosidade, despertada pelas irmãs, cheias de inveja, ciúme e raiva. Psique amava-o mas aceitou a trama para o contemplar ou matar, se se tratasse de uma serpente alada. Acabou por verificar, envergonhada, que era um belo e perfeito jovem. Mas este despertou e desapareceu, achando-a desleal, afirmando-lhe que “não há amor, onde não há confiança!”

Psique julgou que era Cupido e na esperança de reencontrá-lo foi oferecer-se como serva a Vénus que, zangada, lhe foi dando uma série de trabalhos árduos e difíceis, como único meio para reencontrar o homem que amava, que a nossa heroína vai superando, através de ajudas divinas, até que surgiu Cupido, cheio de saudades de Psique.

Cupido pede a Júpiter para casar com Psique e torná-la imortal, para viver no Olimpo e deixar de perturbar o desejo dos homens. Com o beneplácito de Júpiter, Psique fica-se pelo Olimpo e os homens regressam aos templos de Vénus. Finalmente, depois de muita provação a Alma e o Amor tinham-se encontrado. (O Tempo e o Sexo, pp. 76-77).

659A Seta do Cupido – O Percurso do Amor ao Longo do Tempo, p.

IX.

Contrariamente a esta situação, apercebemo-nos de que uma parte das Escrituras é consa- grada ao amor e à paixão. Citemos, por exemplo, o Cântico dos Cânticos. Trata-se de uma com- posição poética, de temática amorosa, que sublinha a perenidade da paixão e coloca o amor aci- ma de todas as outras coisas. É esta a conceção que observamos no capítulo 8, quando o poeta afirma que «o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura, o ciúme; as suas brasas de fogo, são veementes labaredas. As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios, afo- gá-lo.»661. Notemos que é precisamente naquele Livro que a mulher começa por assumir um

papel importante no contexto amoroso: ela exprime os seus sentimentos livremente. Entrega-se com intensidade ao amor e experimenta sensações extremas. Se lermos atentamente o Livro, poderemos observar duas referências à localização da sede do amor: no coração (1:7), como normalmente é referido por todos os que se dedicam a escrever sobre aquele sentimento, e na alma (3:1-3). A ideia de exclusividade na relação amorosa revela-se no olhar atento dos leitores. De facto, a conceção do amor único radica dos textos bíblicos e assume-se como o tema central da obra, que contraria a divisibilidade do amor e a dedicação do amante a várias almas.

Entre os romanos, o amor estava subjugado a determinadas regras e interdições que o condi- cionavam. Muitas chegaram até ao século XVIII, como veremos adiante, quando abordarmos o tema do casamento em detalhe. Neste contexto, ganha extrema importância o matrimónio, tido como um dever de qualquer cidadão. Por isso, terá de ser preservado a fim de que dele resultem cidadãos capazes de garantir a ordem social e a progénie de suas famílias.

Apesar de a questão do casamento ser bastante importante para o mundo romano, a realidade mostrou que muitas uniões resistiram a custo. Os direitos da mulher casada eram uma miragem: não raras vezes sofria às mãos do marido e a situação só não piorava devido ao dote662 generoso

que recebera quando se casou e que importava preservar. Reduzida à condição de objeto, a mulher tinha por missão garantir o bom funcionamento do lar e conceder ao marido filhos que perpetuassem o nome de família. Para além disso, a mulher teria de conviver com as constantes e impunes traições do esposo com as suas escravas.

No que diz respeito aos homens solteiros, era prática comum o concubinato, sem que esta opção provocasse qualquer aversão social. O único entrave consistia na impossibilidade de legi- timar os filhos daí resultantes.

Seja como for, a prática do casamento era prevalecente entre os romanos, apesar de ausente qualquer indício de amor. À semelhança do que sucederá ao longo de muitos séculos, o dote da

661 Cântico dos Cânticos, 8:6-7 in Bíblia Sagrada, p. 678. 662 A propósito do dote, afirma François L

EBRUN:

O dote é obrigatoriamente trazido ao marido pela mulher que o recebe dos pais em avanço de herança; os bens dos esposos são colocados sob o regime da comunhão total e são geridos pelo marido. Todavia, o dote que serve para os gastos da mulher, é inalienável e deve ser restituído em caso da morte do marido e sobretudo os bens próprios que a esposa pode possuir paralelamente ao dote e ditos por esse facto parafernais são geridos por ela livremente. (A Vida

Conjugal no Antigo Regime, Lisboa, Edições Rolim, 1987, p. 77). A este assunto voltaremos adiante.

noiva e a possibilidade de formar futuros cidadãos eram considerados motivos mais que suficien-