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Evolução dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal

Capítulo III. Fundamentos Teóricos de Enfermagem

IV.1. Evolução dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal

Embora a criação dos serviços de saúde em Portugal tenha emergido no período pré-revolução, é com o 25 de abril de 1974 que se assiste à sua expansão progressiva por todo o país, até à atualidade. Neste trajeto temporal foi sofrendo alterações, quer em termos dos serviços, quer das suas funções e áreas de intervenção.

Como sublinham Branco e Ramos (2001) na história da organização dos serviços de saúde em Portugal o desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários pode ser descrito em quatro fases distintas e/ou gerações.

Os primeiros Centros de Saúde – «primeira geração» -, criados em 1971, tinham um “perfil de atuação relacionado com a prevenção e acompanhamento de alguns grupos de risco”, nomeadamente a vigilância de saúde da grávida e da criança. Os cuidados curativos extra-hospitalares eram prestados predominantemente nos postos clínicos dos Serviços Médico-Sociais das caixas de previdência. Coexistindo separadamente, estes dois tipos de serviços eram complementares em termos de necessidades de saúde (Branco e Ramos, 2001, p. 6).

A «segunda geração» teve início em 1983, após a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da nova carreira médica de clínica geral e consistiu na fusão das principais vertentes extra-hospitalares preexistentes (centros de saúde, postos dos Serviços Médico- Sociais e hospitais concelhios), dando origem aos centros de saúde integrados (ibidem).

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado em 1979, após a restruturação política e social ocorrida em 1974, pela Lei n.º56/79 de 15 de Setembro e tinha como objetivo

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assegurar o “direito à proteção da saúde” pelo Estado (Artigo 1º). Como se enuncia naquele diploma legal “o acesso ao SNS é garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social, e reger-se-á por normas regulamentares a estabelecer” (Artigo 4º). Os serviços prestadores de saúde são “os centros comunitários de saúde (…) os hospitais gerais, os hospitais especializados e outras instituições especializadas” (Artigo 42º) que são dependentes das respetivas Administrações Regionais de Saúde (ARS). O Artigo 14º do mesmo diploma indica que os utentes têm direito a “cuidados de promoção e vigilância da saúde e de prevenção da doença”, a “cuidados médicos de clínica geral e de especialidades” e a “cuidados de enfermagem” entre outros. No Artigo 18º é referido que o SNS será apoiado por estabelecimentos e atividades de ensino que visem a formação e aperfeiçoamento de profissionais da saúde reconhecendo, desta forma, que a formação e o aperfeiçoamento dos profissionais constitui um pilar fundamental do SNS. No Artigo 44º refere-se que o “pessoal do SNS desempenha uma revelante função social ao serviço do homem e da comunidade”.

Ainda no mesmo diploma faz-se referência à criação do Departamento de Ensino e Investigação com as funções de “promover e coordenar as atividades de ensino e investigação no campo da saúde (…) e promover, assegurar e desenvolver a documentação e informação científica e técnica” (Artigo 27º).

Analisando o diploma no que respeita à Educação para a Saúde (EpS) constata-se que esta foi uma das primeiras prioridades do Estado na formação do SNS (Artigo 33º, ponto 2, alínea f) reconhecendo essa como uma das principais dimensões do departamento de cuidados primários.

Após a criação do SNS, vários ajustes foram efetuados de forma a colmatar lacunas existentes na primeira versão do SNS nomeadamente no que diz respeito às carreiras médicas e de enfermagem. No entanto, a alteração mais significativa só aconteceu em 1990 com a Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90 de 24 de Agosto) que teceu as linhas mestres da política de saúde em Portugal.

Neste normativo, a proteção da saúde é perspetivada não só como um direito, mas também como uma responsabilidade, envolvendo o cidadão no próprio sistema. Como é enunciado, “a proteção da saúde constitui um direito dos indivíduos e da comunidade que se efetiva pela responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do Estado, em liberdade de procura e de prestação de cuidados, nos termos da Constituição e da lei” (Base I, nº 1). Os cuidados de saúde podem, assim, ser efetuados em institutos públicos ou privados sob a supervisão do Estado. Decorrentes desta legislação implementaram-se alterações a nível dos recursos humanos garantindo a formação dos profissionais e a segurança dos cuidados, no sentido de uma melhor prestação de cuidados de saúde à população de todo o país, tal como é veiculado no diploma legal em análise. Nele é afirmado

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que “a política de recursos humanos para a saúde visa satisfazer as necessidades da população, garantir a formação, a segurança e o estímulo dos profissionais” (Base XV, nº 2). A Educação para a Saúde (EpS) continua a merecer destaque ao ser “incentivada a educação das populações para a saúde, estimulando nos indivíduos e nos grupos sociais a modificação dos comportamentos nocivos à saúde pública ou individual” (Base II, n.º 1, alínea h). Igualmente, “é estimulada a formação e a investigação para a saúde, devendo procurar-se envolver os serviços, os profissionais e a comunidade” (Base II, n.º1, alínea i).

Com a aprovação da Lei de Bases de Saúde, surgiu a necessidade de criar um novo Serviço Nacional de Saúde que desse resposta às leis criadas.

Nesta visão histórica, o Decreto-Lei n.º11/93 de 15 de Janeiro, que aprova um novo estatuto para o SNS, cria as novas Administrações Regionais de Saúde (ARS) (Artigo 3º), que agregam as várias administrações regionais existentes, de forma a aproximar os cuidados de saúde à população. Há uma tentativa de melhorar a qualidade dos cuidados e a sua continuidade, aperfeiçoando a articulação entre cuidados de saúde primários e diferenciados (hospitalares), tal como é veiculado:

“Os hospitais e os grupos personalizados de centros de saúde agrupam-se em unidades de saúde, de dimensão a definir, caso a caso, em despacho do Ministro da Saúde, sob proposta do conselho de administração das ARS. Às unidades de saúde cabe assegurar a continuidade da prestação de cuidados, com respeito pelas atribuições das instituições que as integram.” (Artigo 14º, alíneas 1 e 2)

A «terceira geração» dos centros de saúde surge em 1999 através do Decreto-Lei n.º 157/99 de 10 de Maio. Este Decreto-Lei pretende, embora mantendo a dependência das ARS, dar mais autonomia aos centros de saúde melhorando a gestão da instituição e o acompanhamento mais próximo dos profissionais de saúde. É seu principal objetivo a “melhoria do nível de saúde da população da área geográfica por eles abrangida” (Artigo1º). Á luz desta nova legislação, os “centros de saúde têm como atribuições, em geral, a promoção da saúde, designadamente através de ações de educação para a saúde e a prestação de cuidados na doença” (Artigo 4º, alínea 1).

Surge pela primeira vez o conceito de Unidade de Saúde Familiar (USF) como unidade essencial na prestação de cuidados à população. Como é estabelecido, “cada centro de saúde dotado de personalidade jurídica e cada associação de centros de saúde dispõe de 4 a 10 unidades de saúde familiar” (Artigo 10º, alínea 1a). Determina-se especificamente que:

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Veicula-se, pois, uma nova filosofia de intervenção que preconiza “a atividade das unidades de saúde familiar (integrada) numa lógica de rede no centro de saúde e assenta numa equipa multiprofissional, constituída por médicos, enfermeiros e profissionais administrativos” (Artigo 12º, alínea 5).

Mais tarde, o Decreto-Lei n.º 60/2003 de 1 de Abril cria a rede de cuidados de saúde primários mas sem aplicação prática à realidade do país pelo que é revogado pelo Decreto- Lei n.º 88/2005 de 3 de Junho. Este repristina, também, o Decreto-Lei n.º 157/99 de 10 de Maio que estabeleceu o regime de criação, organização e funcionamento dos centros de saúde, como forma a obter mais ganhos em saúde, e deu ênfase à criação das USF cujo conceito foi elaborado em 1999 mas que até este último Decreto-Lei não tinham ainda sido concretizadas no terreno. No entanto, esta repristinação será, pois, de aplicação temporária, já que se encontra criado um grupo técnico para a reforma dos cuidados de saúde primários. Este grupo de trabalho tem como objetivos estabelecer um plano, identificar medidas operacionais e atividades a executar, que irão permitir a formulação de um novo instrumento normativo, consentâneo com a política do governo.

Neste seguimento, o Programa do XVII Governo Constitucional, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º157/2005 de 12 de Outubro cria na dependência direta do Ministério da Saúde, a Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), para conduzir o projeto global de lançamento, coordenação e acompanhamento da estratégia de reconfiguração dos centros de saúde, que constitui a base impulsionado da «quarta geração» de centros de saúde, fase atual.

A reconfiguração dos centros de saúde organiza a estrutura assistencial em unidades operativas com missões complementares, nomeadamente a Unidade de Saúde Familiar (USF), a Unidade de Cuidados à Comunidade (UCC) e a Unidade de Saúde Pública (USP).

A Unidade de Saúde Familiar visa, então, aperfeiçoar a prestação de cuidados de medicina familiar num contexto de grupo e de equipa privilegiando a liberdade de escolha do médico (unidade multiprofissional organizada por lista de utentes). A Unidade de Cuidados à Comunidade (UCC) intervém de forma sistemática e continuada por pequenas áreas geográficas. Identificam pessoas, famílias e grupos em situação de maior necessidade e vulnerabilidade, mobilizando recursos de proximidade e apoios existentes no centro de

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saúde e no sistema de saúde. Finalmente, a Unidade de Saúde Pública (USP) permite cumprir a vocação populacional e de preocupação com a saúde coletiva.

Por se tratar do contexto onde desenvolvemos esta investigação, abordamos, agora, de forma mais pormenorizada a evolução das Unidades de Saúde Familiar. O Despacho Normativo n.º 9/2006 de 16 de Fevereiro determina a aprovação do “Regulamento para Lançamento e Implementação das Unidades de Saúde Familiar” contendo todas as normas que permitem a um conjunto de profissionais de saúde elaborar uma candidatura à criação de uma USF submetendo a mesma à MCSP. Surgem, assim, em 2006 as primeiras candidaturas tendo as primeiras USF iniciado nesse mesmo ano, mas é só em 2007 que se estabelece o regime jurídico da organização e do funcionamento das USF, através do Decreto-Lei n.º 298/2007 de 22 de Agosto. Este diploma legal estabelece o regime de incentivos a atribuir a todos os elementos que as constituem e a remuneração a atribuir aos elementos que integrem as USF de modelo B (Capitulo I, Artigo 1º). Neste documento, a USF é definida como “a unidade elementar de prestação de cuidados de saúde, individuais e familiares, que assenta em equipas multiprofissionais, constituídas por médicos, por enfermeiros e por pessoal administrativo (Capitulo I, Artigo 3º, alínea 1)”. Enuncia-se ainda que a atividade das USF se desenvolve “com autonomia organizativa, funcional e técnica integrada numa lógica de rede com outras unidades funcionais do centro de saúde ou da unidade local de saúde (Capitulo I, Artigo 3º, alínea 4)”.

Nesse mesmo ano, a Portaria n.º 1368/2007 de 18 de Outubro estabelece a carteira básica de serviços para todas as USF, ou seja, explicita em termos de cuidados de medicina geral e familiar e de enfermagem (núcleo base de serviços clínicos) o compromisso assistencial das USF (Anexo I, I). Define também a especialidade médica mas não define a especialidade de enfermagem, estando implícito que podem integrar as USF enfermeiros generalistas e especialistas.

Neste trajeto histórico-legislativo, surge o Despacho 24101/2007 de 22 de Outubro que aprova a “lista de critérios e a metodologia que permitem classificar as USF em três modelos de desenvolvimento, A, B e C”. A diferenciação resulta do grau de autonomia organizacional; da diferenciação do modelo retributivo e de incentivos dos profissionais; e do modelo de financiamento e respetivo estatuto jurídico. As USF do tipo B cumprem os requisitos das do tipo A mas com maior amadurecimento organizacional e um nível de contratualização de desempenho mais exigente devendo ser acreditadas num período máximo de três anos.

As USF trouxeram significativos ganhos em saúde para a população por si abrangidas mas os centros de saúde necessitavam de uma melhor gestão e de uma comunicação mais próxima com as ARS surgindo em 2008 os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) através do Decreto-Lei n.º 28/2008 de 22 de Fevereiro. Os ACeS têm por

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missão “garantir a prestação de cuidados de saúde primários à população de determinada área geográfica” (Artigo 3º, alínea 1). Para cumprir a sua missão, os ACeS “desenvolvem atividades de promoção da saúde e prevenção da doença, prestação de cuidados na doença e ligação a outros serviços para continuidade dos cuidados” (Artigo 3º, alínea 2). Cabe, ainda, aos ACeS desenvolver “atividades de vigilância epidemiológica, investigação em saúde, controlo e avaliação dos resultados e participar na formação de diversos grupos profissionais nas suas diferentes fases, pré-graduada, pós-graduada e contínua” (Artigo 3º, alínea 3). Fazem parte dos ACeS diversas unidades funcionais de prestação de cuidados de saúde, nomeadamente: unidade de saúde familiar (USF); unidade de cuidados de saúde personalizados (UCSP); unidade de cuidados na comunidade (UCC); unidade de saúde pública (USP); e unidade de recursos assistenciais partilhados (URAP) (Artigo 7º, alínea1). Este Decreto-Lei prevê a existência de contratos-programa entre o ACeS e a respetiva ARS. Entretanto, mais recentemente, o processo de criação de novas USF sofreu modificações tendo sido revogado o Despacho Normativo n.º9/2006 de 16 de Fevereiro sendo substituído pelo Despacho Normativo n.º5/2011 de 15 de Março que prevê que a criação de novas USF devam ser incentivadas pelos ACeS, descentralizando o processo de criação de uma USF. Estas novas USF são acompanhadas e apoiadas por uma Equipa de Apoio Regional (ERA), organismo dependente da respetiva Administração Regional de Saúde e dos respetivos ACeS.

Esta última década foi marcada por um conjunto de reformas, com especial incidência na rede de urgências hospitalares, nos cuidados de saúde primários e nos cuidados continuados integrados. Os 363 Centros de Saúde foram organizados em 74 Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) e em 2012 estavam em atividade 342 Unidades de Saúde Familiar. Este processo de reestruturação foi acompanhado por uma evolução positiva do número de profissionais de saúde. O rácio de médico por 1000 habitantes aumentou de 3,3 para 4,0 entre 2001 e 2010 e o rácio de enfermeiros por 1000 habitantes aumentou de 3,8 para 6,0 de 2001 e 2011 (PNS 2012-2016 – Versão Resumo, 34).