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1.2 Experiência com o “outro”: o que dizem outras pesquisas

1.2.3 A experiência com o “novo”

No meio acadêmico, há uma cobrança constante por publicações, o que leva os pesquisadores, muitas vezes, a envidarem esforços somente para a produção da escrita, sem preocupação com a produção de conhecimento de fato. Embora, na realização de uma pesquisa de mestrado, se disponha, aproximadamente, de dois anos para a efetivação das leituras, análises e de escrita, esse período de tempo, não raro, é insuficiente para a realização de um trabalho de pesquisa que indicie uma filiação teórica do sujeito em seu escrito. Apesar disso, espera-se que o pesquisador se aproxime de sua área a partir, principalmente, das leituras que realizou, encontre modos de lidar com o outro e marque um lugar de enunciação, enfrentando os percalços próprios da formação universitária.

Deve-se considerar que nem sempre a ausência de algo “novo” pode ser um empecilho para a publicação de uma pesquisa. No caso de publicação no âmbito acadêmico, segundo o que foi observado nos estudos realizados por Fabiano-Campos, Vieira, Bernardes, Miranda, mesmo havendo uma relação intrínseca do pesquisador com os autores lidos, não se poderá dizer que houve uma apropriação de conceitos mobilizados se não for possível localizar, na materialidade textual, arranjos que promovam especificidades no modo de construir um posicionamento próprio sobre o conceito a partir das vozes mobilizadas, legitimando os discursos entre os pares. Isso corresponde a dizer que, quando se lê um texto acadêmico resultante de uma pesquisa, acredita-se ter em mãos algo diferente do que já foi dito, devendo aparecer a voz daquele que pesquisou sobre o tema e, certamente, tem algo a ser dito.

O diálogo que se estabelece nesta seção aborda a experiência com o outro. Para Compagnon (1996, p.37), a citação é um corpo estranho no texto, que não pertence àquele que escreve. Esse “corpo” pode apresentar-se como estranho pelo fato de que, inicialmente, não se tem a definição metodológica do que o sujeito se propôs pesquisar. Essa questão norteia a seleção do corpus e a organização dos excertos.

Em pesquisas de cunho qualitativo, os dados não são evidentes, visto que a construção do dado se faz mediante as necessidades do pesquisador, que surgem, por sua vez, com base nos questionamento e no problema de pesquisa a ser investigado. Dizendo de outra forma, os dados não se revelam aos olhos do pesquisador, ou melhor, na verdade, é preciso

selecioná-los com foco naquilo que melhor ajuda a entender e a interpretar o fenômeno estudado.

Para observar os arranjos linguísticos que engendram um modo de articulação dos discursos alheios no trabalho de construção de uma pesquisa, escolhemos analisar a escrita de dissertações de mestrado da área de Linguística. Para isso, foi necessário considerarmos o modo como as marcas do outro se manifestavam no texto, relacioná-las com o conjunto de eventos linguísticos de articulação do discurso no discurso. Se, por um lado, essas marcas tinham a ver com a organização do discurso, por outro remetiam ao discurso em sua relação com a exterioridade, com a situação de produção da escrita do pesquisador em formação, percebida no processo de enunciação em que o sujeito marcava o dizer na materialidade do texto.

Fazendo um contraponto da pesquisa que desenvolvemos no mestrado com a do doutorado, hão de se considerar as discussões relevantes como pontos de chegada. Enquanto, na pesquisa de mestrado, o foco em questão estava relacionado às dificuldades do pesquisador em formação ao mobilizar conceitos de gênero do discurso do Círculo de Bakhtin e colocá-los em funcionamento na escrita, na que desenvolvemos no doutorado passa a ser o foco de discussão os processos de produção escrita que levam a “bons resultados”, provenientes da relação do pesquisador, da área de Letras, com a teoria. Partimos da análise de certos arranjos linguísticos que engendram formas de articulação da teoria na construção da pesquisa, especificamente em dissertações de mestrado que indiciem esses processos como produção de conhecimento no meio acadêmico. Assim como na dissertação de mestrado, para a pesquisa de doutoramento tomamos como objeto de estudo trabalhos que tratam sobre conceitos de gênero do discurso, para observar como arranjos linguísticos engendram as diferentes vozes ao articular a teoria no trabalho de escrita das dissertações analisadas.

Para mostrar como se deram as análises empreendidas, apresentamos alguns resultados da experiência com pesquisa no mestrado, discutindo especificidades da escrita universitária como pontos de relevância para a construção da pesquisa no doutorado. Buscamos construir um corpus que abrisse espaço de discussão para o que há de “bom” nas produções acadêmicas, sem, contudo, polarizar, apenas mostrar o que consideramos bons processos de produção escrita acadêmica.

Assim, não atribuímos qualquer potencialidade transformadora a uma experiência em si, em detrimento de outra, mas sim ao processo que o sujeito experiencia com a linguagem acadêmica por intermédio da escrita. A ideia é que aquele que produz uma pesquisa possa ser atravessado pelos significantes da área que se propõe estudar e consiga colocar em seu texto

algo de si, manobra que o tornará capaz de produzir, por sua vez, significantes novos com os textos que assina.

Guardadas as devidas proporções, esta tese constitui-se em continuação de nossa pesquisa de mestrado, intitulada Efeitos de sentido das não coincidências do dizer na escrita

acadêmica (MIRANDA 2013). Nesse trabalho, o interesse recaiu nas marcas linguísticas que

indiciam a relação do pesquisador com o legado cultural ao mobilizar um conceito de área e dá-lo a ver na escrita de dissertação de mestrado. Chamavam a atenção o fato de, nesses materiais, tais estratégias configurar-se como um movimento de escrita parafrástica que indiciava, em certa medida, a lida do pesquisador com a teoria na escrita da dissertação, conforme discutimos no trecho a seguir:

Comparando o excerto do pesquisador da D3 com o da obra do autor supostamente lido pelo pesquisador, verificamos alterações de ordem sintática e tipográfica entre um texto e outro. Quanto às alterações sinonímicas, encontramos, basicamente, as seguintes palavras/expressões alteradas: “realiza-se”, para “efetua-se”; “membros”, para “integrantes”; “na totalidade do enunciado”, para “Estes três elementos”. Refletindo sobre o conceito de enunciado conforme propôs Bakhtin, é possível que tais alterações sinonímicas não alterem o sentido do enunciado na construção proposta pelo pesquisador da D3. No contexto em que aparecem as palavras/expressões, de certa forma o conceito de enunciado é contemplado, mesmo que de forma recortada e invertida (MIRANDA, 2013, p. 106).

Estava em questão o modo como os pesquisadores modalizavam o dizer, para observarmos como ele construía o discurso a partir de um movimento entre o que estava sendo dito e o que fora produzido antes. O uso de modalizadores, nesse jogo textual entre o discurso do pesquisador e o do autor lido por ele, sugeria que a relação que o pesquisador em formação estabelecia com o legado cultural era, possivelmente, uma relação imaginária. Nesse momento de exposição da teoria, o pesquisador parecia aproximar-se do discurso universitário, mas ainda não o bastante para se inserir nesse discurso, visto que reproduz o discurso do “outro”. Pode-se dizer, em causas como essas, que o sujeito pesquisador é interpelado por um sujeito-falante (sujeito de seu discurso) que representa, na linguagem escrita, as formações ideológicas correspondentes; ou seja, o sujeito crê que é o senhor do discurso (PECHÊUX, 1999).

Na pesquisa que realizamos no doutorado, ampliamos o debate para questões relativas aos processos de produção escrita na universidade, porém deixando de lado o “ranço” do julgamento sobre o que vem sendo o foco das investigações – as dificuldades do sujeito pesquisador em lidar com o conhecimento já produzido na escrita de textos acadêmicos e, em certa medida, trabalhar com os textos para investigar como esses

movimentos se constituem na escrita. Para mostrar esses processos de produção escrita acadêmica, filiamo-nos às teorias de Authier-Revuz sobre a heterogeneidade enunciativa, às formas de alusão, à paráfrase de Fuchs e ao simulacro de Baudrillard, a fim de observarmos como esses processos engendram as vozes na escrita das dissertações de mestrado. Inserida nessa trajetória, esta pesquisa representa mais uma oportunidade para reafirmarmos o compromisso de estudar a escrita acadêmica.

Defendemos aqui os princípios de que há várias formas de escrever, de que cada sujeito escreve a sua maneira e de que, pelo modo como ele engendra as vozes na materialidade do texto, produz efeitos na escrita. Partindo dessas premissas, é possível dizermos que as formas de uso do discurso de outro autor podem desenvolver efeitos de sentido que indiciem processos de produção escrita acadêmica, entre eles o de apropriação de uma teoria, autor ou conceito, e que esse efeito contribui para a aceitabilidade e a inserção do trabalho numa comunidade científica. Portanto, que a forma de articular as vozes deixa marcas da presença de outro discurso em uma produção escrita.

Nesse sentido, pensamos que nosso trabalho pode contribuir com os estudos da área ao apresentar, por meio da análise da escrita de dissertações de mestrado, o modo como se constituem os processos de produção de escrita acadêmica por meio de arranjos linguísticos, vistos pela materialidade da língua.

A PRODUÇÃO ESCRITA NA UNIVERSIDADE

No capítulo anterior, dialogamos com pesquisas que tomam a escrita como objeto de reflexão. Seus autores, ligados pelo mesmo ideal, se debruçam sobre questões relativas à produção de conhecimento na universidade por intermédio da escrita.

A universidade, como instituição social, influencia, de maneira determinada, a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que, no interior dessa instituição, encontram-se opiniões, atitudes e projetos conflitantes, que exprimem divisões e contradições da sociedade. Nessa perspectiva, neste capítulo, voltamos o olhar para a escrita acadêmica, abordando questões relativas à produção da pesquisa e à hegemonia universitária, a partir dos estudos contextualizados por Santos e Chauí acerca da produção de conhecimento na universidade.

A universidade, instituição hegemônica, tende a se metamorfosear em uma instituição operacional, na qual se desenvolvem diversas modalidades de ensino superior que não existiam antes ou eram secundárias e convive com tal situação. Essa discussão pode contribuir para a compreensão do sentido das reformas educacionais que se vêm debatendo sobre as instituições de ensino em nosso país há mais de uma década.

A universidade é uma criação histórica, estreitamente relacionada com os processos de modernização, os quais incluem a ascensão dos Estados modernos e das nações. Se não foi a responsável exclusiva pela pesquisa e pela formação em nível superior nos séculos XIX e XX, foi hegemônica no exercício desses papéis. È uma instituição que tem toda uma sistematização: traz em sua hierarquia o corpo docente e o discente bem como as estruturas físicas capazes de transmitir de maneira eficaz o conhecimento nela produzido.

Para Santos (1999), em todo caso, há uma crise de hegemonia e de legitimidade na universidade, que significou a crise dos pressupostos que sustentavam o modelo de universidade consolidado no século XXI, os quais afirmavam ser esta o “lugar privilegiado da produção da alta cultura e conhecimento científico avançado” (p. 139). Segundo Chauí (2001, p. 62), a universidade não produz o conhecimento, porque a própria forma como está estruturada leva o pesquisador em formação a “dar a conhecer para que não se possa pensar. Adquirir e reproduzir para não criar. Consumir, em lugar de realizar o trabalho de reflexão”. Como diz a autora, a universidade controla e manipula intelectualmente um tipo de conhecimento, que é repassado como verdade absoluta. No entanto, “A universidade é o lugar

onde por concessão do Estado e da sociedade uma determinada época pode cultivar a mais lúcida consciência de si própria (2001, p. 188)”.

Na universidade, a escrita segue um ritual em que múltiplas vozes atravessam constitutivamente os discursos, manifestando-se, na materialidade da língua, marcadas de forma precisa. Vozes que dialogam com os discursos daquele que escreve, exprimindo seu ponto de vista ou dizendo o que o outro já disse. Essas vozes são atribuíveis a seres diferentes, mas a voz do pesquisador (enunciador) é aquela que se mostra na enunciação, que exprime seu ponto de vista, aquela que marca uma posição, uma atitude, conforme o sujeito se propôs discutir, mesmo quando marca de forma precisa o dizer do outro e o próprio dizer, na tessitura da escrita.

Para Bourdieu (1983), aqueles que dominam, no campo científico, utilizam estratégias para manterem a posição que ocupam valendo-se de estratégias de conservação, a fim de ratificarem a ordem científica instituída, com a qual compactuam. O novato utiliza estratégias de sucessão que acarretam princípios de legitimação da dominação, as quais podem ser identificadas na pesquisa como promissoras e importantes. Em colaboração com o orientador (já consolidado no campo) ele poderá ter acesso a uma posição privilegiada no campo científico4.

É importante ressaltar que, quando cientistas com paradigmas diferentes olham o mesmo fenômeno, observam coisas distintas. Pode-se, então, dizer que o paradigma determina o que o cientista classificará como mais relevante antes da experiência com o mundo externo. Sendo assim, ele já tem pressuposto para onde deve direcionar seu olhar sobre a ciência.

O conhecimento, como elemento fundamental na construção do destino da humanidade, tem sido, cada vez mais, evidenciado e propagado no contexto da sociedade atual, na qual o saber é engendrado pelo processo de constituição do discurso acadêmico. Disso decorre o fato de que o discurso acadêmico deve seguir sob as regras da cultura

4 Em uma perspectiva distinta, para Thomas Kuhn (2011) o conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, seu crescimento é descontínuo e opera por saltos qualitativos, que, por sua vez, não se podem justificar em função de critérios internos de validação do conhecimento científico. Ainda segundo o autor, o desenvolvimento da ciência acontece envolvendo dois momentos: a ciência normal e a ciência revolucionária. Nos períodos de ciência normal, a comunidade atua consensualmente dentro de um paradigma que é compartilhado pelos cientistas. A ciência atinge, assim, seu estágio paradigmático, ou de maturidade, no qual os cientistas dedicam suas pesquisas a precisar, articular e aplicar o paradigma na explicação de novos fatos ou na resolução de novos problemas. A pesquisa realizada nesse estágio é a Ciência Normal. Como resultado das pesquisas nesse período, há um progresso intraparadigmático, que produz o aprofundamento e a ampliação do paradigma. Contudo, no decorrer da pesquisa de ciência normal, os cientistas deparam com problemas que resistem à abordagem dada pelo paradigma, que são as anomalias. Com isso, a comunidade científica questiona sobre as bases de seu campo de estudo, ocasionando uma crise, que, divide a pesquisa científica em dois grupos: o dos cientistas que tratam a anomalia como um problema de ciência normal e o dos que buscam dar uma nova abordagem ao problema; estes praticam o que Kuhn denomina de ciência

científica ao lidar com os outros discursos. As mudanças no modo de produzir conhecimento alteraram profundamente o estatuto da universidade, particularmente a brasileira, que se transformou em uma instituição escriturísta (BARZOTTO, 2011). Dizendo de outro modo, ela está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e avaliada por índices de produtividade.

Além disso, não se pode desconsiderar o fato de que, no próprio contexto de produção de pesquisa nas universidades, conta-se também com muitos outros impedimentos, particularmente os que dizem respeito à produção/divulgação dos conhecimentos científicos.