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Expertise e compreensão musical

1.3 A EXPERTISE NA MÚSICA

1.3.1 Expertise e compreensão musical

Os estudos acerca da expertise e sua aquisição dedicam-se a vários domínios de atividades humanas e a música é um dos que vem recebendo atenção especial. Segundo Lehmann e Gruber (2006), pesquisas acerca das habilidades musicais podem ser encontradas no século XVIII, com investigações sobre as primeiras realizações musicais de Mozart como nas obras de Daines Barrington (1727-1800). Entretanto, o rigor científico dos dias atuais não pode ser encontrado nesses estudos, mas a aproximação da ciência a esses campos ainda ocorre nos séculos seguintes, quando mais estudos foram publicados, como “Who is musical” (1895), de Theodor Billroth e “The psychology of musical talent” (1919) de Carl E. Seashore.

No entanto, a maioria destes estudos visava a identificação de um potencial de desenvolvimento musical inato ou até mesmo hereditário por meio de testes de aptidão, principalmente ligados à habilidades auditivas. Tais estudos, entretanto, obtiveram sucesso limitado, em primeiro lugar porque os efeitos do talento foram confundidos com a quantidade de treinamento prévio dos indivíduos testados e em segundo lugar pelo fato de que as condições ambientais e familiares podem ter facilitado o aprendizado desses indivíduos. Essas condições são insuficientes para explicar uma possível hereditariedade do talento musical, mas as evidências encontradas apontavam para o fato de que a prática e outros fatores ambientais - não relacionados à hereditariedade - exerciam grande influência nas mudanças em muitas variáveis

relacionadas ao desempenho musical dos indivíduos estudados. Em resumo, não se sabe se a prática é uma condição suficiente para uma alta conquista, mas é certamente necessária para invocar as adaptações cognitivas, fisiológicas e psicológicas observadas em experts.

Por outro lado, o domínio da música envolve diversos aspectos culturais, o que faz com que diversas práxismusicais exijam habilidades diferentes. Elliot e Silverman (2015b, p.210) atestam que as práxis musicais prosperam e mudam “de acordo com a forma como os músicos e ouvintes dessa prática conscientemente ou não desenvolvem, praticam, implementam, ensinam e atualizam os vários tipos de pensamentos e conhecimentos musicais que se fundem nas ações dos músicos e ouvintes”.

Exemplos disso é a valorização de habilidades como a leitura musical. Enquanto em tradições musicais escritas exigem altos graus de desenvolvimento dessa habilidade para que um indivíduo possa ser aceito pelos pares como um expert, como a da música de concerto europeia, em outras, de tradição oral, possuem expoentes de níveis altos de expertise que nem mesmo possuem tal habilidade. Outro exemplo é a necessidade de conhecimentos relativos a processos de mixagem, masterização e outras formas de manipulação sonora contextos ligadas à música eletrônica, não necessários a músicos que fazem parte de naipes de sopros em orquestras sinfônicas.

As diferenças nas maneiras de realizar e se preparar para a realização de tarefas podem ser percebidas mesmo dentro de contextos semelhantes. Segundo Paes (2009), enquanto o trompetista Chet Baker, ao improvisar melodias sobre standards de jazz, não tomava conhecimento da cifragem dos acordes das músicas por não possuir conhecimento teórico sobre harmonia, o saxofonista John Coltrane improvisava e compunha fundamentado sob o conhecimento teórico a respeito do tópico. E o autor afirma que apesar dessa diferença, além de inúmeras outras relativas a escolhas estéticas, ambos se tornaram referências musicais dentro da tradição jazzística. Tais constatações e exemplos apontam para a existência de diversas expertises. Elas reforçam ainda a importância da compreensão das minúcias das tarefas realizadas pelos experts a partir de vários pontos de observação, uma vez que o resultado de suas ações não necessariamente externalizam os processos que ocorrem durante sua realização nem a maneira com que as encaram, embora possam fornecer pistas sobre elas.

Desse modo, sendo a expertise musical contextual, assim como diversos aspectos de diferentes formas de se fazer música, pode-se inferir que a prática deliberada também o é. E uma

vez que grande parte dos estudos realizados sobre esse tema focam-se no contexto do intérprete da música de concerto europeia (Duke, Simmons & Cash, 2009), outros, realizados com músicos de outros contextos, possivelmente encontram resultados divergentes, ilustrando maneiras alternativas de realizar essa prática (Lehmann & Gruber, 2006).

Além da expertise musical ser contextual, a complexidade de processos cognitivos atrelados ao domínio da música é resultado também de diversas formas de engajamento com as atividades a ela relacionadas. Segundo Lehmann e Gruber (2006), o caminho percorrido por um indivíduo em direção à expertise musical é dotado de adaptações fisiológicas, cognitivas e perceptivo-motoras que fazem com que as tarefas relativas ao domínio passem a ser executadas com mais facilidade. Os autores explicam que as adaptações fisiológicas podem ser percebidas quando se compara, por exemplo, a capacidade de controle pulmonar, que é maior em cantores e instrumentistas de sopro que em outros instrumentistas ou não músicos. As adaptações cognitivas são principalmente relativas à memória e resolução de problemas. O acesso mais rápido e amplo à informações necessárias para a realização das tarefas do domínio, assim como a maior capacidade de memorização (que ocorre geralmente para situações em que os indivíduos estão mais habituados, como quando expostos à música tonal), parecem ser decorrência do desenvolvimento da expertise e do conhecimento específico. E as adaptações perceptivo-motoras podem ser reconhecidas em exemplos como a maior capacidade demonstrada por músicos para discriminação de tons e timbres, além da maior velocidade e acurácia em tarefas mecânicas como batucar em uma mesa com os dedos (situação em que pianistas demonstraram superioridade.

Essas adaptações e expansões de capacidades são geralmente decorrentes da exposição ao domínio e da prática deliberada (Ericsson, 2006; Ericsson et al., 1993) e relacionam-se também ao aumento da compreensão musical. Definida por Elliot e Silvermann (2015b, p.231) como

“uma forma multidimensional, relacional, coerente, generativa, aberta e educável de pensar e conhecer”, a compreensão musical é um conceito amplo, abrangente, incorporado e, principalmente, demonstrado na prática específica das tarefas do domínio.

Quando os autores afirmam que as práxis musicais prosperam de acordo com a maneira com que os indivíduos inseridos nelas desenvolvem diferentes maneiras de pensar e conhecer sua música, Elliot e Silvermann (2015) desmembram a compreensão musical em oito formas de

“pensamento e conhecimento musicais8“ (PCM) e sustentam que o nível de desenvolvimento para cada PCM varia de acordo com a utilização na práxis na qual os indivíduos estão inseridos.

A tabela 2 mostra os tipos de “Pensamento e conhecimento musical” apontados por Elliot e Silvermann (2015):

Tabela 2. Tipos de “pensamento e conhecimento musical” apontados por Elliot e Silvermann (2015)

PCM Definição

Processual Conhecimento que é percebido através da ação, tácito, incorporado. Saber prático.

Verbal Fatos, conceitos, descrições e teorias, ou seja, toda a informação que pode ser escrita sobre música.

Experimental Conhecimento que surge e se desenvolve principalmente a partir da busca de problemas musicais e da resolução de problemas em situações musicais envolventes.

Situado Conhecimento adquirido, apreciado ou compreendido nas relações entre pessoas envolvidas em uma atividade, nas ferramentas que elas usam e nas condições materiais do ambiente em que a atividade ocorre.

Intuitivo Saberes incorporados ou sentimentos para um tipo particular de prática.

Apreciativo Capacidade de prever ou perceber o potencial inerentemente positivo / criativo em materiais musicais em direção à criatividade futura.

Ético Conhecimento que diz respeito às disposições do músico para usar suas habilidades musicais para “o bem”

Supervisório Disposição e capacidade de monitorar, ajustar, equilibrar, gerenciar, supervisionar e, de outra forma, regular o pensamento e conhecimento musical tanto durante a ação (no momento) quanto no desenvolvimento a longo prazo de uma compreensão musical

Fonte: Elliot e Silvermann (2015)

Os autores supracitados apontam diversas formas de pensar e conhecer em música.

Entretanto, tecem uma crítica ao que julgam ser uma atual supervalorização do pensamento e conhecimento musical verbal. Segundo Elliot e Silverman (2015b), embora o conhecimento verbal a respeito das questões musicais e de sua produção possa ser necessário para que um indivíduo se torne um professor de música, crítico ou musicólogo, este tipo de conhecimento não

8 Musical thinking and knowing.

é um pré-requisito necessário nem suficiente para que se possa alcançar níveis superiores de expertise.

Assim, não se descarta a existência de artistas com altos níveis de expertise dentro de seus contextos que também possuem altos graus de conhecimentos verbais e que possam escrever e falar com maestria sobre música. Porém, no caso do trompetista Chet Baker, não se descarta também que muitos outros músicos de níveis de expertise tão altos não possuam as mesmas habilidades e ainda assim continuam a ocupar importantes postos dentro de suas práxis musicais. O fato é que, para os autores9, “a aquisição do conhecimento musical verbal é uma meta adequada, porém, adicional, da educação musical” (Elliot & Silvermann, 2015, p.220).

De que maneira, então, é possível uma avaliação da compreensão musical de um indivíduo? De acordo com os autores, a compreensão musical é constituída da soma da musicalidade e da capacidade de compreensão auditiva demonstradas pelos indivíduos. Isso faz com que a performance de uma determinada peça realizada por um músico seja uma representação significativa do nível de compreensão que possui produto musical e da práxis na qual esse produto está inserido. E o segundo importante indicador da compreensão musical de um indivíduo é sua capacidade de compreender a música a partir da audição, uma vez que segundo os autores, algum grau de competência auditiva dentro de uma práxis pode representar um tipo de conhecimento necessário para a compreensão de performances dentro dela (Elliot &

Silvermann, 2015, p.217).

Para que se atinja níveis mais avançados de compreensão musical (musicalidade e compreensão auditiva), os praticantes precisam aprender a segmentar e resolver diversos tipos de problemas na música que se está fazendo e nas formas como se está fazendo música através da execução, improvisação, composição, organização, condução e novas mídias (Elliot &

Silvermann, 2015)