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1.3 A EXPERTISE NA MÚSICA

1.3.2 Tocar “de ouvido”

9 E tal forma de pensamento também é apresentada nesse trabalho, ou seja, a diferenciação entre os níveis de expertise dos participantes dessa pesquisa não será realizada pelo que dizem sobre música, mas sim pelos resultados musicais atingidos por eles.

Diversos autores têm apontado para a ideia de que no domínio da música de concerto ocidental (e provavelmente em outros), os indicadores dos níveis mais altos de expertise dos instrumentistas (os que alcançaram carreiras como solistas) estão relacionados à capacidade que possuem de realizar interpretações pessoais das peças que tocam e também à capacidade de transmitir emoções aos ouvintes (Weisberg, 1999, Hallam, 2010). Essa transmissão de emoções, segundo Weisberg (1999), presumivelmente indica que o instrumentista aprende algo mais do que uma série bem ensaiada de movimentos imutáveis, uma vez que nem todos os performers conseguem atingi-la nos mesmos níveis em que os mais bem-sucedidos.

Master classes são geralmente aulas com professores de grande aclamação internacional, como os solistas, cuja aceitação de estudantes depende da demonstração de altos níveis de potencial em audições e da recomendação de professores de nível inferior respeitados.

Entrevistas realizadas por Bloom (1985, como citado em Weisberg 1999) com pianistas que participaram desse tipo de “aula” demonstraram que os mestres não se interessavam em aperfeiçoar a técnica pianística dos alunos, mas sim com o desenvolvimento de um estilo pessoal de tocar e comunicar emoções na música, fazendo da música uma atividade criativa.

De acordo com Hallam (2010), com relação à performance musical, professores e alunos possuem percepções similares, o que faz com que uma performance “competente” esteja mais voltada a uma proficiência técnica, uma performance “boa” volte-se a uma segurança técnica com atenção à emoção, fluência e estilo e uma performance “excepcional” seja voltada à comunicação com o público, expressão de emoção, inspiração, estilo e fluência, uma vez que técnica e precisão são tomadas como certas.

Uma das soluções apresentadas para que mais intérpretes atinjam tais níveis de performance e compreensão musical é apresentada por Priest (1989), e traz à tona a discussão a respeito da excessiva concentração na leitura musical. O autor levanta a hipótese de que isso afasta aprendizes (crianças) e atrasa o progresso da maioria dos que aprendem. Segundo esse autor, é comum a vigência da ideia de que a leitura de partituras é uma condição indispensável de tocar, principalmente no início do aprendizado. Como consequência, o aprendizado de instrumentos em escolas geralmente tende a ser direcionado a essa tarefa, fazendo, por exemplo, com que crianças, que se já não liam, comecem a fazê-lo imediatamente. Assim, o autor garante

que quase toda a atividade instrumental posterior, em classes, ensaios, concertos e exames consistem em ler enquanto elas tocam.

Além disso, alinhado com as afirmações de Elliot e Silvermann (2015), Priest (1989) declara que nomear notas e reconhecer sinais são habilidades acessórias para um músico, não essenciais para a performance nem para a compreensão musical quando se tem por objetivo pensar em sons e a capacidade de apreciar e transmitir expressão artística através da música.

A possível solução apontada para que seja alcançado o equilíbrio das habilidades musicais de um indivíduo tem relação com uma abordagem musical “de ouvido” desde o início da formação. Assim, Priest (1989, p.174) explica que “tocar de ouvido” pode ser definido como

“todo tocar que ocorre sem a utilização de notação”. Entretanto, o autor aponta que essa definição não contempla a gama de atividades musicais possíveis de serem desenvolvidas sem o intermédio da partitura, o que o faz desmembrá-la em dez diferentes atividades. A lista a seguir busca então detalhar os processos descritos para atividades musicais em que uma partitura exata não é utilizada diretamente (algumas atividades podem envolver mais de um processo simultaneamente):

Memorização de signos visuais: processo em que a memória que o músico guarda da notação a partir da qual a música foi aprendida. É usada como ajuda visual para a reprodução de uma peça ou trecho musical. Exemplo disso é quando um músico toca uma peça pela memória visual que tem da partitura;

Imaginação de signos: processo em que o músico constrói esses signos pela primeira vez como um auxílio para encontrar notas. Um exemplo é quando o músico improvisa algo imaginando as notas em uma pauta;

Imitação de um modelo (visto e ouvido): processo em que tanto as ações físicas como os sons produzidos por um outro músico (modelo) são observados e reproduzidos. Exemplo disso é a repetição de uma performance aprendida por meio de um vídeo;

Imitação de um modelo (apenas ouvido): processo em que um músico busca imitar um padrão ou melodia com base no que é ouvido (ao vivo ou gravado). Exemplo disso é a reprodução de uma música aprendida por meio de um disco, isto é “tirou de ouvido”;

Imitação de som imaginado: processo em que o músico busca reproduzir músicas ou padrões lembrados, como quando o músico canta uma melodia e, em seguida, tenta executá-la em um instrumento;

Invenção pastiche: processo em que são executadas frases idiomáticas que correspondem a algo conhecido pelo músico - como em “ampliações de uma melodia” ou cadenzas;

Variação improvisada: processo em que se altera a música original (lida ou lembrada) por elaboração, porém com a manutenção da estrutura, como, por exemplo, tocar “um blues”;

Invenção dentro de uma estrutura: processo em que se toca a partir de um esboço (cifras de acordes ou “baixo cifrado”) no ritmo e estilo prevalecentes. Exemplo disso são as elaboradas interpretações criadas a partir de lead sheets;

Invenção sem estrutura (também referida como extemporização): processo em que o músico é livre para escolher todos os aspectos da música, como num improviso livre;

Invenção experimental: processo de descobrimento de sons e nuances novos para o músico e, possivelmente, para a música. Exemplo disso pode ser a execução de trechos com diferentes dinâmicas, articulações ou mesmo com alterações de notas.

Com relação à atividade cerebral, Priest (1989) destaca que a diminuição de certas percepções quando outras se tornam mais conscientes não é novidade para psicólogos. Por exemplo, quanto mais o hemisfério esquerdo (linguístico) do cérebro é exigido, menos o hemisfério direito (musical) é desenvolvido. Assim, fatores essenciais como a audição de frases, tons e entonação, assim como a atenção ao controle muscular, a consciência do público e do efeito de tocar podem ser facilmente marginalizados, esquecidos ou dificultados quando a leitura é supervalorizada ou o único meio pelo qual se toca (Priest, 1989, p.176).

Além disso, a discussão a respeito da representação mental também pode ser fomentada pelas atividades listadas acima. De acordo com Ericsson e Pool (2016), um dos objetivos principais da prática deliberada é a criação de representações mentais precisas e eficientes. No âmbito do desenvolvimento musical, a escuta musical é uma fonte frequentemente citada de aprendizagem da expressividade e do desenvolvimento das representações (Woody, 2000), embora existam questões não resolvidas sobre como o conhecimento expressivo adquirido através da escuta pode ser transferido para o processo ativo de comunicação da emoção em uma performance (Hallam, 2010). Assim, as atividades listadas acima podem fornecer pistas a respeito de modos como ocorre a transferência citada acima, uma vez que são diretamente relacionadas à utilização de estruturas perceptivas e imaginativas com o material sonoro propriamente dito.

Por fim, Priest (1989) relata que muitos dos professores lamentam que seus alunos não sejam mais espontâneos e entusiastas em sua produção musical, que as reações auditivas não sejam mais precisas e mais rápidas. De acordo com Hallam (2010), é esperado que o consenso em torno da caracterização de uma performance musical em nível de expert reflita diretamente na maneira com que as aulas de música são ministradas, principalmente com relação à importância do desenvolvimento da expressividade. Por outro lado, de acordo com Woody (2000), 48% dos estudantes relataram que não se preocuparam seriamente com a expressividade até estarem no ensino médio ou mesmo na faculdade. E, de acordo com Hallam (2010), esses aspectos são ainda bastante negligenciados.

1.3.3 Improvisação

Segundo Lehmann et al. (2007), quando indivíduos escrevem, editam ou reformulam um e-mail, eles estão compondo e, ao conversar com um colega ou dançar em uma festa, estão improvisando. Os autores questionam: se essas atividades são pertencentes à rotina das pessoas, por que indivíduos, muitas vezes treinados no domínio da música, apresentam grandes dificuldades quando precisam lidar com a improvisação?

Kenny e Gellrich (2002) declaram que assim como alguns dos parâmetros acima citados, o termo improvisação também é dependente de contexto e que, de acordo com sua função sociocultural, o conceito pode assumir diversos significados. E essas múltiplas facetas da improvisação devem ser consideradas para além do resultado sonoro, mas também em termos de processo de criação. Ao traçar um paralelo entre uma improvisação jazzística do saxofonista Charlie Parker e uma proposição como Aus den Sieben Tagen do compositor alemão Karlheinz Stockhausen, Falleiros (2012) realiza a interpretação de um texto poético e sua “tradução”

musical.

Por outro lado, de acordo com Sloboda (2008), ao contrário do que sua natureza espontânea possa sugerir, a improvisação musical depende fortemente de regras não explícitas que possibilitam coerência estilística. Isso significa que, tanto ouvintes quanto os músicos que atuam em contextos em que a improvisação é desenvolvida experimentam a confirmação ou não de determinadas expectativas musicais. Ao tipo de conhecimento necessário para que o músico possa desenvolver um diálogo com essas expectativas dá-se o nome de “base de conhecimento”.