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Expressões Formulaicas nos Autos Natalinos

4.1. AS FÓRMULAS LINGUÍSTICAS: MACROESTRUTURA

4.1.1 Expressões Formulaicas nos Autos Natalinos

Muitas são as EF contidas nos autos natalinos. Para efeitos analíticos, elencamos algumas por considerarmos reiteradas em todas os autos natalinos pesquisados. Eis:

(i) “O galo do Céu cantou” (FRSM/MG): encontramos em uma reza para “mal-de-parto” (PÓVOA, 1996, p. 237) a seguinte EF: “De madrugada,/Quando o galo cantou,/São Berto

Lomeu se levantou;/Seu chinelo direito/No pé ele calçou”. Encontramos ainda a referência a uma música de Moacyr Franco intitulada “Congada do Rei”, além de alusões a lendas sobre o nascimento de Jesus ou em passagens bíblicas como: “Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que duas vezes o galo cante, tu me negarás três vezes” (Mc 14:30). Há uma variante na Umbanda, linha de Xangô, que retrata essa EF:

Caboclo pega seu bodoque.

Pega sua flexa, que a jurema já chamou. O galo na campina já cantou.

Ele foi-se embora na paz de Oxalá. (PONTOS DE UMBANDA, 2011, p. 06).

No catimbó (OLIVEIRA, 1992, p. 11), verificamos: “Ouviste um galo cantar e uma voz por vós chamar”. Como também verificamos em uma brincadeira de coco: “E lêlê ô acauã/ galo canta de manhã/ carneiro quando se molha/ se deita e sacode a lã” (AYALA; AYALA, 2000, p. 35) ou em “O galo cantou/é de madrugada/vamos tirar leite/na vaca maiada” (AYALA; AYALA, 2000, p. 201).

(ii) Com “o poder do Espírito Santo,”/Pelo nome de Jesus (FRSM/MG) e “Pelo poder do Espírito Santo” (FRBJJ/GO): na tentativa de tirar/quebrar “mau-olhado” emprega-se a seguinte reza: “Criança, eu te benzo,/Com o poder de Deus Pai,/Com o poder de Deus Filho/E o Espírito Santo” (AYALA; AYALA, 1996, p. 310).

(iii) “Deus te salve” casa santa (BRMMM/RN); Deus te salve ó Mãe santíssima Milagrosa Aparecida (FRAN/MG); Deus te salve, oh virgem Santa (FRBJJ/GO): em uma cura para mazelas, encontramos a seguinte reza: “Deus te salve, lua nova,/Tu que nasces no poente,/Quando fores que vieres,/Me trazeis desta semente” (AYALA; AYALA, 1996, p. 324).

No quarteto: “Deus te salve casa santa,/onde Deus fez a morada/Onde mora o calix bento/e a hóstia consagrada” (BRMMM/RN), verificamos a mesma EF em outras FR:

Deus lhe da paz na terra Onde Deus fez a morada Onde mora o cálice bento E a escrita sagrada (FRCG/GO) Deus vos salve casa santa Onde deus fez a morada

Aonde mora o cálice bento E a hóstia consagrada (FRJP/MG) Ai, Deus vos salve a casa santa Ai, onde Deus fez a morada, ai. Ai, onde mora o cálix bento, ai

Ai, e a hóstia consagrada, ai. (FRM/ES)

Ainda encontramos em mantras de sessão de descarrego na Umbanda:

Ó Deus salve esta casa santa, Oxalá meu pai,

Oi santa, oi santa,

Tens pena de nos, tens dó, Onde Deus fez a sua morada, A volta do mundo e grande, Morada, morada,

Os seus, poder é maior. Onde mora o cálice bento, Nesta casa de guerreiro, E a hóstia consagrada. Ogum,

Onde mora o cálice bento, Vim de longe pra rezar, E a hóstia consagrada. Ogum. (MARTINS, 2011)

Assim como no catimbó:

Deus vou salve-me da fome, Deus vos salve-me da peste,

Deus vos salve-me das ondas do mar, Deus vos salve-me das serpentes venenosas Deus vos salve-me de todas as invejas,

Deus vos salve-me de todas as ciladas dos meus inimigos. Pelo hábito que vestiste,

Pelo coroado que cingiste, Pelo cálice santo e hóstia

Que consagraste (OLIVEIRA, N., 1992, p. 44).

(iv) “Abençoada seja a hora” (FRBJJ/GO): encontramos na poesia de Sousândrade: “Abençoada a hora em que odiei-te/Tão vulgar! abençoada seja a hora” e em teatro brasileiro “abençoada seja a hora em que eu te escolhi para meu esposo!”.

(v) “Pai e filho, Espírito Santo” (CRSC/MG); “Pai, o Filho, Espírito Santo” (FRBJJ/GO): observamos a repetição da EF em novenas:

(Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém).

Glória a ti Deus Pai, tu que chamaste a Rafqa à santa vida monástica e foste para ela Pai e Mãe. Veneramos a ti, Deus Filho, tu fizeste dela discípula de teu sofrimento e redenção. E a ti, Deus Espírito Santo, agradecemos porque deste a ela paciência e perseverança. Por sua intercessão Senhor, atende minha súplica e concede-me a graça que te peço (…). Eu Te glorificarei para sempre a Ti Pai, Filho e Espírito Santo por todos os dias de minha vida. Amém. (Rezar um Pai Nosso, Ave Maria e um Glória). (NOVENA, 2003).

Em uma reza para evitar “quebranto” verificamos:

Quebranto e mau-olhado, Maldito e excomungado, Dois te bota, três te tira, Que são as três pessoas Da Santíssima Trindade:

Pai, Filho e o Espírito Santo (PÓVOA, 1996, p. 310).

Outra variante:

Leva o que trouxeste!...

Deus me benza com sua santíssima Cruz!.. Deus me defenda dos maus olhos e maus olhados e de todo o mal que me quiserem fazer...

Tu és o ferro e eu sou o aço;

tu és o demônio e eu sou o embaraço...

Padre, Filho, Espírito-Santo. (AGOSTINHO, 2009).

(vi) Menos frequente, a EF “vigília da noite” (CRSLL/PR) é encontrada em passagens bíblicas: “Mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, andando por cima do mar” (MATEUS, 14:25); “Porque mil anos são aos teus olhos como o dia de ontem que passou, e como a vigília da noite” (SALMOS, 90:4) e “Mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, andando por cima do mar” (MATEUS, 24:43) ou

Chegou, pois, Gideão, e os cem homens que com ele iam, ao extremo do arraial, ao princípio da vigília da meia noite, havendo sido de pouco trocadas as guardas; então tocaram as buzinas, e quebraram os cântaros, que tinham nas mãos (BÍBLIA ON LINE, JUÍZES, 7:19, s.d.).

(vii) A EF “Ai! A estrela guiada por Deus” (CRSLL/PR) é, de norte a sul do país, encontrada em adágios populares como “dirigido por mim, guiado por Deus”.

(viii) O cordel é, sem dúvida, quem melhor expressa fórmulas linguísticas que se movem cronotopicamente. Isso porque, despojada da linguagem erudita e canônica, assenta-se na oralidade e, como tal, vê-se impregnado dos falares dos sujeitos. A expressão “Onde tem uma

Santa ceia” (CCSLL/PR) também é presente em um quarteto cordelístico. Eis: “A Santa Ceia” também/É um fato importante,/Na vida de Jesus/O Messias triunfante.” (PAIVA, s.d.).

(ix) Embora tenha aparecido uma única vez nas FR, a EF Ai! “A sua mãe é uma rosa” (CRSLL/PR) também aparece na arte de versejar, como se vê na quadrinha: “A sua mãe é uma rosa,/Seu pai é um jardim.../E ficaram a noite inteira,/Fazendo você pra mim28”.

(x) A expressão havemo adorar a “santa cruz” (FRMT/RJ); “Faço o sinal da Santa Cruz” (FRBJJ/GO) evidencia-se em um dos cantos da umbanda, linha de Oxalá:

Abre a porta e acende a luz, que aí vem Jesus cansado, Carregando a Santa Cruz. Ele vem de rua em rua, Ele vem de porta em porta. Ele vem salvar as almas

sem culpa nenhuma. (PONTOS DE UMBANDA, 2011, p. 02).

Outra variante é encontrada em uma mesa de catimbó:

Fecha-te órgão, pelo Vajucá,

Pra todos os males que no Mundo há! Fecha-te corpo, guarda-te irmão

Na santa cova de Salomão. (RIBEIRO, 1992, p. 39)

(xi) “A porta do céu” se abre a qualquer (FRMT/RJ) é outro exemplo de EF encontrada na umbanda, linha do Ponto das Almas:

Cajueiro Santo, aonde nasceu Jesus. (bis) Iô minhas almas, minha Divina luz. (bis) Abre a porta do céu São Pedro,

deixa as almas trabalhar. (bis) Iô minhas almas,

venham nos ajudar. (bis) (PONTOS DE UMBANDA, 2011, p. 12).

(xii) “Boa noite”, expressão utilizada costumeiramente entre as FR para introduzir sua jornada, como se vê em “Oh, boa noite meus senhores” (FRFM/MG) e “Boa noite meus senhore, senhoras e senhurita” (BRMMM/RN), por exemplos, também é comum em rodas de coco: “Boa noite meu povo todo/Boa noite meu pessoa/Boa noite pra quem chegou/Boa noite pra quem chegá” (AYALA; AYALA, 2000, p. 109).

(xiii) Do ato de pronunciar aos convivas “Viva os donos da casa! Viva toda a Companhia (FRSM/MG), em “Viva o senhor Bom Jesus!/e o dono da casa!Viva!Viva todos que aqui estamos!”(FRBJ/ES) ou “Viva a dona da casa!Viva!/Com toda a sua família!Viva” (CRSC/MG), também se vê em uma roda de coco: “Viva o dono da casa/com todo o seu pessoa/ As menina me pergunta/ quer ir ou quer que eu vá (AYALA; AYALA, 2000, p. 151).

(xiv) Podemos verificar ainda essa linha tênue que há entre um simples chamamento de alguém à porta com uma EF, visto em “Ô de casa”, ô de fora/Ô de casa, nobre gente (FRBJJ/GO) ou no coco “Ô dono da casa/pra que me chamou/sem comer eu não saio/sem beber eu não vou” (AYALA; AYALA, 2000, p. 148).

(xv) Por fim, “Bendito louvado seja” o Rosário de Maria (OLIVEIRA, 1992, p. 39) e Ajudai- me, agora nesta minha aflição e “na hora de minha morte, amém!” (OLIVEIRA, 1992, p. 17) são outras EF que circulam entre os autos.

Resumidamente, podemos observar que as EF, presentes nas FR brasileiras, também se encontram em vários BoiR potiguares. Em linhas gerais, em sua grande maioria, a cultura popular encontra-se aportada na religiosidade dos sujeitos. A partir dessa constatação, evidenciamos algumas construções formulaicas dos BoiR do Rio Grande do Norte que atestam o nomadismo e a movência do texto, constituintes das manifestações culturais locais. Assim, optamos por dividir estas expressões em 04 ocorrências comuns ao canto, quais sejam:

LIGADA AO BRINCANTE LIGADA AO MENINO- DEUS/RELIGIÃO LIGADA À CASA DO FESTEIRO/ ESPAÇO DE ADORAÇÃO OUTRAS CONSTRUÇÕES FORMULAICAS Samos filhos de Deus Pai/ Meu Jesus, pai

verdadeiro

Morreu pra salvar a vida/Que morreu pra nos

salvar.

Deus infinito Sinhô do céu e da terra.

Cravou a lança no peito. Deus eterno para sempre A santa cruz do Sinhó. Cristo nasceu em Belém Louvemos a Deus divino Que nasceu pra nosso bem.

Fique com Deus e amanheça. Nas hora de Deus amém. Pade filho Esprito Santo. Deus te leve a salvamento.

Valei-me, Nossa Senhora,/A Virgem da Conceição./Valei meu Padrinho Ciço,/Meu Padrim Frei Damião Jesus santíssimo,/Pai soberano/Dai-me a tua bênção/Hoje aqui pra todo

o ano.

Os anjo do céu se alegra

Deus te salve, casa santa,/ Onde Deus fez a

morada,/ Onde está o cális bento/ E a hosta

consagrada Abris a porta do céu

A noite grande vigia Marcharum in

continênça Bate asa e canta o galo

Deus te salve, cruz bendita Quem repara não me

atrasa Meia-noite deu sina

Que a hora está chegada

Figura 18 – Expressões Formulaicas Potiguares Fonte: Dias (2012)

Evidentemente, muitas outras EF poderiam ser apresentadas, mas evitando uma extenuante expressão dessa ideia entendemos que estas são moventes entre os textos da cultura popular. De modo geral, as TD têm como premissa básica a compreensão de que o sujeito espelha-se em outro texto para a sua produção. Não raro, desse molde há a produção de outros, como podemos observar, por exemplo, na abertura do canto à casa do festeiro. É TD o fato de o sujeito interpelar outrem com “Ô de casa”; “Senhor(a) dono(a) da casa”; “Deus vos pague a boa mesa”; “Ai que hora abençoada”, etc., sendo a língua/linguagem, em linhas gerais, “um fato universal, definitório da humanidade” (ZUMTHOR, 1993, p. 277) e como tal globalmente é portadora das vozes que, a nosso ver, tem como um dos parâmetros das TD a sua EF. Esta, incessantemente embrenha-se no meio social, no falar dos sujeitos, assegurando sua tradicionalidade e inscrevendo-se na memória coletiva em um espiral que ultrapassa o tempo, transmitindo e conservando-se continuamente.

Por fim, nos BoiR potiguares as mesmas fórmulas linguísticas são evidenciadas. Significa acentuarmos que, embora pertençam ao mesmo gênero oral – quer por inovação ou por divergência (KOCH, 1997) –, a configuração destes autos é normalmente a mesma: o uso expressivo de frases interjetivas para despertar a atenção dos presentes; frases que repousam na oralidade desses sujeitos, e retomadas dos seus credos religiosos, em que o processo ritualístico narrativo, através do canto, desperta a continuidade dessa cultura popular entre os sujeitos.