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Tannen (1993), a respeito da conversação12 entre os indivíduos, enfatiza que esta “não reside nas palavras que são ditas, mas na forma em que elas são escutadas”. (TANNEN, 1993, p. 16). Assim, por meio da tradição oral, as palavras ditas, reconhecidamente construídas para uma ritualização e acordada entre festeiros e brincantes, intentam um diálogo entre os atores do auto e, de igual modo, evidencia sua credulidade religiosa. O que se escuta é sabidamente conhecido, ao que chama de vínculo afetivo, mas, nesse caso, o que de fato importa é a performance ritualística. As palavras ditas são ouvidas em seu contexto devocional e, em tom de brincadeira, mostra a cultura popular desses sujeitos.

As manifestações discursivas, chamada de fala informativa, são partes de um “marco mais amplo dentro do qual os homens abordam a vida como uma contenda” (TANNEN, 1993, p. 77, grifo da autora). Essa fala é visível no substrato cultural dos autos natalinos. Seus brincantes, em todo o ritual, travam uma batalha verbal narrando suas peregrinações e na materialidade discursiva – o canto – envolve sua religiosidade e sua cultura popular.

As FR não são constituídas do precatório tão simplesmente; é a vivacidade de sua historicidade; de sua tradicionalidade. Esses nômades eventuais em seu caráter deambulatório e precatório buscam nesses autos cultuar a passagem bíblica do nascimento do Messias com a vinda dos Reis Magos à manjedoura. O embate oral performático produz um ritual de peregrinação, mostrando a realidade religiosa cristã e, paralelamente, sua dessacralização.

Os fenômenos culturais e ideológicos sociais, resultado da semântica da vida individual, partem da premissa de que a “existência precede a consciência” (BERTAUX, 2010, p. 17) e é essa consciência quem carrega consigo as atividades mnêmicas. O tempo histórico é um tempo vivo; tempo de mudanças sociais (BERTAUX, 2010, p. 101), que evidencia as tradições orais.

O valor da história do passado apoia-se, segundo Thompson (1992, p. 195), em três pontos: (i) proporciona informação significativa; únicas sobre o passado; (ii) transmite a

12 O texto original é: Gran parte del significado en una conversación no reside en las palabras que se dicen, sino en el modo como éstas son escuchadas. Cada uno de nosotros es quien decide si siente que le están hablando para establecer una diferencia de estatus o para establecer un vínculo. Esta decisión depende más de las ideas y los hábitos del que escucha que de las intenciones del que habla.

consciência individual/coletiva; partes integrantes desse passado e (iii) atribuem intuições reflexivas da retrospecção que permite avaliar o significado da história a longo prazo. Esses pontos, em linhas gerais, apontam-nos para a aplicabilidade das funções ético-pedagógicas e sociais. O fluxo da memória e a vida cotidiana mantêm uma relação angular entre si. Em face disso, Montenegro (2003, p. 20) expõe:

O campo da memória se construiria, dessa maneira, a partir dos acontecimentos e dos fatos que também se transformam em elementos fundantes da história. Mas, enquanto a memória resgata as reações ou o que está submerso no desejo e na vontade individual e coletiva, a história opera com o que se torna público, ou vem à tona da sociedade, recebendo todo um recorte cultural, temático, metodológico a partir do trabalho do historiador.

Esse fazer se reflete a partir de sua oralidade. Sobre isso, Borges (2003, p. 8) esclarece: “as sociedades de tradição oral não apresentam um classificador absoluto que distingam os diferentes gêneros narrativos”. Daí a polifonia de formas encontradas nos autos natalinos estudados. No tocante a essa constatação, Borges (2003) nos faz entender que a transmissão oral evoca memórias futuras através de rememorações, ou (re)interpretações que garantem a sua transmissão. Esclarece ainda que é possível uma evocação inexata, que funciona como reconstrução e que vai sendo incorporada a outras versões.

Fundamentalmente, a “obra de memória se constitui em tradição” (ZUMTHOR, 1993, p. 142) e repousa na oralidade dos sujeitos. Por isso, entendemos a formulaicidade como acervo mnemônico na historicidade social. O texto não é único. Ele continuamente se repete nas vozes de seus sujeitos. Nesse caso, “toda frase, talvez toda palavra, é aí virtualmente, e muitas vezes efetivamente, citação” (ZUMTHOR, 1993, p. 143). Com isso, a TD definitivamente asseguraria a continuidade das manifestações mnêmicas dos sujeitos. Sobre isso, Zumthor (1993, p. 109) certifica que “uma forma qualquer de oralidade precede a escrita ou então é por ela intencionalmente preparada, dentro do objetivo performático”, no qual entendemos ser o resultado da movência do texto e a continuidade do gênero.

Ayala e Ayala (2000) realçam o exercício de migração do texto nas manifestações artísticas. Segundo os autores, a cultura desconhece fronteiras rígidas. Para eles, “um mesmo verso/melodia foram encontrados com intervalo de mais de sessenta anos.” (AYALA; AYALA, 2000, p. 10). O texto possui energia própria e aparece como “criação contínua” (ZUMTHOR, 1993, p. 145) e são as reminiscências individuais e coletivas que marcam identidades em um mundo de mudanças, uma vez que

O uso da voz humana, viva, pessoal, peculiar, faz o passado surgir no presente de maneira extraordinariamente imediata. As palavras podem ser emitidas de maneira idiossincrática, mas, por isso mesmo, são mais expressivas. Elas insuflam vida na história (THOMPSON, 1992, p. 40-41).

De modo geral, muitos são os campos que levam à discussão sobre a oralidade. Nossa proposição é o reconhecimento dessa oralidade como função político-social e ético- pedagógica, que segundo Eliot (1991), transmite informação e dá instrução moral aos seus sujeitos (ELIOT, 1991, p. 10). Significa dizer que o auto se sobressai não somente por sua função religiosa, mas tende a reconhecer sua cultura e tradição pelos dizeres dos falantes de cada lugar em que uma folia é produzida. O estabelecimento destas funções garante e legitima a transmissão de valores e socialização entre os sujeitos, além do reconhecimento da necessidade da conservação de seus costumes e crenças.

A sociedade em que a tradição oral vê-se presente – mesmo aquela em que o saber se vê constituído e confronta-se – tem sua base ancorada na memória social. A peculiaridade dessa tradição repousa na pressuposição de imemorialidade e ancestralidade, conforme Borges (2003, p. 7). Nesse caso, partimos da assertiva de que se essa tradição produz, transmite e reitera o texto oralmente, mesmo a que haja sua escrituralidade, há especificidades que o diferencia, é o caso da performance produzida. A partir desse ponto, o autor esclarece:

O requisito específico para que um texto seja considerado como produto da literatura oral é, obviamente, que ele tenha forma e fruição estética. [...]. a condição de ser produzido e/ou transmitido oralmente é necessária, mas não suficiente para garantir que um texto seja classificado como arte verbal. Para preencher tal condição, é imprescindível que o texto apresente uma elaboração artística e seja, consequentemente, avaliado com tal pela comunidade nativa (BORGES, 2003, p. 14).

Essa declaração justifica, em síntese, a presença da performance nesse constructo teórico. Para entendermos melhor a presença da oralidade nessas sociedades, Calvet (2011, p. 12) insta que a preocupação repousa na manutenção da memória, uma vez que ela se torna presente em um lugar e tempo em que estão ausentes efetivamente. Tal manutenção se vê legitimada pela conservação e transmissão dessas atividades mnêmicas nas culturas populares. No que concerne à oralidade, Ong (1982) aponta dois tipos: a primária e a

secundária. A primeira carece do conhecimento da escrita e da sua impressão, e a segunda é a

atual cultura tecnológica que mantém o uso das mídias para sua existência e funcionamento Segundo o autor (1982, p. 20), atualmente, a oralidade primária quase não existe, uma vez que culturalmente todos conhecem a escrita ou dela faz uso. Ong (1982, p. 24) atesta não ser

tarefa simples o reconhecimento da oralidade primária, ou tradição oral, em seu sentido. Isso porque, na tradição escrita, as palavras pontuam marcas visíveis e decodificáveis para sua compreensão. Nesse caso, não há esse caráter físico. Sua existência repousa na narração daqueles que a relatam em sua materialidade discursiva.

“A oralidade está destinada a produzir escrituralidade” (ONG, 1982, p. 24) e é dessa maneira que, em síntese, Ong (1982) realça a significância da tradição oral. É ela quem precede a existência das culturas escritas e, como tal, convive de maneira harmoniosa em meio a culturas primárias. No caso dos autos, os registros dos cantos só ocorrem por dois vieses: ou o texto permanece em sua oralidade, em suas localidades, como foi percebido nos autos potiguares pesquisados, através das entrevistas semi-estruturadas, com esses mestres das vozes e seus representantes, ou são feitos registros dessa cultura por intermídias. Nesse caso, a única função da reprodução intermidiática é seu registro mnemônico.

Le Goff (1990, p. 24) afirma que “o passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história.” Nessa perspectiva, ao vermos a oralidade como resquícios das atividades mnemônicas coletivas e individuais a (re)construção atesta sua continuidade quer pelas vozes reminiscentes, quer por sua escrita, fazendo significar a história de uma comunidade.

É especialmente fecunda a ênfase dada por Ong (1982) à oralidade. De acordo com o autor, o “som guarda uma relação especial com o tempo dos demais campos que se registram as percepções humanas” (ONG, 1982, p. 38). Nesse caso, as vozes que circulam cronotopicamente tendem a repetirem e transformarem-se, dada a sua movência textual (ZUMTHOR, 2010). Cumpre lembrar então que em uma cultura oral, em linhas gerais, a sua permanência se dá através da interação entre os sujeitos; por sua comunicação (ONG, 1982, p. 40). Nesse caso, a repetição de fórmulas mnemônicas fixas evidencia o nomadismo do texto através dos discursos de seus sujeitos. As palavras, fundadas na oralidade, recuperam uma herança, reduzindo seu esmaecimento e, além de estar “destinada a produzir a escrituralidade” (ONG, 1982, p. 21), faz do seu registro a historicidade e tradicionalidade de uma comunidade. Não é por acaso que Benjamin (1985, p. 17) antecipa que toda a experiência humana funda-se em uma “dimensão prática da narrativa tradicional.” Segundo o autor, quem conta ou transmite uma história leva aos outros “um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito” (BENJAMIN, 1985, p. 17), dada sua funcionalidade de moral, advertência, conselho, etc.

Nessa perspectiva, Le Goff (1990) naquilo que ele esclarece como a existência de uma consciência coletiva sócio-histórica e configurada em uma “instituição de uma memória

coletiva, a par da memória individual” (1990, p. 205-206, grifo do autor) imprime nessa memória uma reversibilidade cronológica, entendida como receptáculo das tradições sociais. Dito de outro modo, Cunha (2003, 2003. P. 188) esclarece:

A memória coletiva, um livro de exemplos e veiculador da tradição de um povo, permanece, ao longo de gerações, moldando os hábitos e apresentando novos valores no espaço e no tempo. O saber oral de uma determinada cultura, no contacto entre povos, passa por um processo de adaptação e adequação ao ambiente imposto, onde o mito permanece como forma de revalorização do tradicional.

O que se põe em relevo é o fato de que nessa cronogênese a memória tem o papel de (re)vitalizar as reminiscências, dando continuidade às tradições. Ela é o refúgio de conservação das tradições, que nos remete à atualização das “impressões ou informações passadas, ou que representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 423). As atividades mnemônicas colaboram para a linguagem dos sujeitos e, nesse caso, utilizarmos do continuum oral e escrito no armazenamento mnemônico dá a credibilidade necessária para a tradicionalidade e o garante da sua função social. Destarte, o estudo da memória ora se encontra em retraimento, ora em transbordamento, abordando os problemas do tempo/história dos sujeitos (LE GOFF, 1990, p. 427, grifos do autor).