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1.2 Estruturação do texto argumentativo

1.2.2 Falácias argumentativas

Contrapondo-se aos argumentos válidos, as falácias argumentativas são entendidas como argumentos que não se sustentam por sua fragilidade e falta de consistência: ou o locutor exibe um raciocínio deficiente, mesmo dispondo de dados corretos, ou demonstra um raciocínio perfeito a partir de premissas falsas.

Cabe salientar que todos os exemplos a seguir, representativos dessas falácias, foram extraídos do sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda.

Carneiro (1997) aponta como falácias mais freqüentes aquelas em que:

1. O produtor do texto aceita uma premissa como verdadeira, sem evidências concretas (provas). Observemos que as provas, oferecidas por meio de exemplos, conferem sustentação aos argumentos expostos, como a seguir:

(...) Homem atrevido (diz S. Paulo), homem temerário, quem és tu, para que te ponhas a altercar com Deus? (...). Venera suas permissões, reverencia e adora seus ocultos juízos, encolhe os ombros com humildade a seus decretos soberanos, e farás o que te ensina a Fé, e o que deves à criatura. (...). Por mais que nós não saibamos entender vossas obras, por mais que não possamos alcançar vossos conselhos, sempre sois Justo, sempre sois Santo, sempre sois

infinita Bondade; e ainda nos maiores rigores de vossa justiça, nunca chegais

com a severidade do castigo aonde nossas culpas merecem. (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 446-447, grifos nossos).

De fato, procuramos agir de acordo com o que a fé ensina. Mas o que a fé ensina? O que devemos à criatura? É certo que não conseguimos entender as obras de Deus. É igualmente correto que acreditamos na bondade infinita de Deus e na Sua incorruptível justiça. Entretanto, quando olhamos ao redor e buscamos as provas dessa justiça, não encontramos. Aliás, nem poderíamos encontrar, afinal, é muito difícil entender as obras de Deus e a Sua justiça quando vemos criancinhas nascerem mutiladas ou com deficiências graves ao lado de bebês rosados e saudáveis. É muito difícil entender por que milhares de pessoas passam fome em todo o mundo, enquanto milhares de outras têm uma alimentação não só saudável mas também supérflua de acordo com os gostos de cada um. É mesmo

muito difícil entender por que milhares de pessoas não têm um teto para repousar, enquanto outras descansam em confortáveis vivendas.

Por isso, só podemos acreditar, mesmo que não saibamos exatamente o que a fé ensina e o que devemos às criaturas, quando potências mundiais desenvolvem novas tecnologias para matar seres humanos em guerras que degradam e disseminam mais e mais miséria, fome, desespero, desamparo, destruição e morte.

Aceitamos, sim, as premissas da fé como verdadeiras. Acreditamos na justiça de Deus porque precisamos acreditar em alguma coisa. Também por isso, aceitamos que somos limitados demais para entender as obras e os juízos divinos. Aceitamos e acreditamos. Mas é só. Os exemplos oferecidos conferem, de fato, sustentação, mesmo que apenas às nossas incertezas.

2. A tese que está sendo defendida é abandonada por vários motivos, dentre eles, a falta de argumentos, fato que configura uma fuga do assunto de que se trata. Vale ressaltar que a falta de argumentos provém, na maioria dos casos, da falta de leitura e, por conseguinte, de conhecimento sobre o assunto. Naturalmente, não é o caso de Vieira, uma vez que lhe sobram conhecimentos, consoante se verifica em:

(...) Olhai, Senhor, que porão mácula os Egípcios em vosso ser, e quando menos em vossa verdade e bondade. Dirão que cautelosamente, e à falsa fé,

nos trouxestes a este deserto, para aqui nos tirares a vida a todos, e nos sepultares. E com esta opinião divulgada e assentada entre eles, qual será o abatimento de vosso santo nome, que tão respeitado e exaltado deixastes no mesmo Egito, com tantas e tão prodigiosas maravilhas do vosso poder? (...).

(PÉCORA (Org.), 2001, p. 448, grifos nossos).

Não está em questão aqui a “auto-estima” de Deus para que Ele possa estar “preocupado” com o que os outros dirão a Seu respeito. Sob o confortável argumento de que o nome de Deus deixará de ser respeitado e exaltado, Vieira dissimula suas reais intenções, quais sejam a fragorosa derrota dos hereges holandeses e a vitória dos portugueses.

3. O produtor do texto generaliza em excesso suas afirmações, o que produz conclusões indevidas e precipitadas por falta de sustentação.

Nota-se, no exemplo a seguir, que Vieira se escuda em uma generalização indevida:

(...) Já dizem os Hereges insolentes com os sucessos prósperos, que vós lhes

dais ou permitis: já dizem que porque a sua, que eles chamam Religião é a

verdadeira, por isso Deus os ajuda e vencem; e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece e somos vencidos. (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 448, grifos nossos).

Para o pregador, os holandeses são hereges. Como ele não os diferencia, podemos concluir que se refere a todos. Assim, serão hereges até mesmo os pacatos cidadãos holandeses que vivem em suas casas, não incomodam ninguém e sequer almejam as terras do Brasil.

4. A argumentação se baseia em um estereótipo. Convém relembrar que o estereótipo "marca" um determinado grupo a partir do comportamento de uns poucos membros, fato esse que torna a argumentação uma afirmativa estéril e vazia de sentido.

Ao rotular os holandeses de hereges, Vieira não só generaliza indevidamente suas conclusões mas também “marca” o povo holandês a partir do comportamento do grupo que invadiu a Bahia, em 1624, e Recife, em 1634. Assim, os holandeses passam a ser vistos de acordo com o rótulo que lhes é atribuído.

5. A relação de causa e efeito é defeituosa. Nesse tipo de falácia, não há uma relação de implicação lógica entre causa e conseqüência. O que comumente se afirma como causa não o é, de modo que o efeito obtido provém, na verdade, de uma causa diferente da alegada.

A mesma passagem utilizada para exemplificar as duas falácias anteriores servir-nos-á também para esta. Segundo Vieira, os holandeses afirmam que vencem porque têm a fé verdadeira, e Deus se dispõe a ajudá-los por tal motivo e

que os portugueses perdem porque têm uma fé falsa e que, por isso, Deus não os ajuda.

A conseqüência existe, é fato. Os holandeses estão vencendo os portugueses; contudo, a causa alegada por Vieira, que se apropria do discurso dos holandeses para “intimidar” Deus, não tem nenhum fundamento lógico. Primeiro, não sabemos o que é uma fé “verdadeira” e o que é uma “falsa”; também não podemos saber se Deus está “ajudando” os holandeses e “retirando sua ajuda” dos portugueses, o que, absolutamente, não condiz com as próprias afirmativas do sacerdote a respeito da bondade e da justiça divinas. Seria muito mais lógico afirmar que, se os holandeses vencem, então é porque dispõem de um arsenal bélico maior e mais potente que o dos portugueses. Entretanto, essa causa não obteria o mesmo efeito emocional sobre os reais receptores do discurso que a anterior, mesmo sem fundamento, obteria. Daí a adequação do argumento ao auditório de acordo com a intencionalidade do orador.

6. Há simplificação exagerada. Ao simplificarmos exageradamente uma afirmativa, estamos, na verdade, encobrindo nossa falta de argumentos.

Lê-se em Vieira:

(...) Não me admiro tanto Senhor de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas vossas Imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo Corpo; mas nas da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe,

não sei como isto pode estar com a piedade e amor de Filho. (...). (PÉCORA

(Org.), 2001, p. 456, grifos nossos).

Segundo o raciocínio do padre, se Jesus permite que a imagem da Virgem Maria sofra agravos, então é porque Ele não tem piedade da imagem da Mãe e também não A ama o bastante. Naturalmente que um tal raciocínio não se sustenta em nenhuma hipótese, pois, mesmo que aceitemos que Jesus “tenha permitido” injúrias à imagem da Mãe, se partimos do princípio de que Seus juízos são retos e justos (Ele é filho de Deus; convenhamos que um Pai perfeito e justo em seus juízos não pode conceber um filho imperfeito e injusto), não há que se questionar Sua “atitude”, pois Ele deve saber muito bem o que faz. Quando Vieira

ajuíza sobre o amor filial de Jesus, não só torna simplistas Suas deliberações mas também desconsidera suas próprias palavras anteriores: “(...) Por mais que nós não saibamos entender vossas obras, por mais que não possamos alcançar vossos conselhos, sempre sois Justo, sempre sois Santo, sempre sois infinita Bondade (...).” (PÉCORA (Org.), 2001, p. 447).

7. O argumento se baseia em uma analogia (comparação) falsa. A analogia envolve observações cuidadosas e evidências para que seja considerada verdadeira.

Observe-se agora:

(...) Desta maneira arrazoou Moisés em favor do Povo; e ficou tão convencido Deus da força deste argumento, que no mesmo ponto revogou a sentença, e, conforme o Texto Hebreu não só se arrependeu da execução, senão ainda do pensamento: Et paenituit Dominum mali, quod cogitaverat facere Populo suo. [Ex 32:14 Arrependeu-se o Senhor do mal que pensara fazer ao seu povo. ex. text. Hebr.] E arrependeu-se o Senhor do pensamento e da imaginação que tivera de castigar o seu Povo.

Muita razão tenho eu logo, Deus meu, de esperar que haveis de sair deste Sermão arrependido; pois sois o mesmo que éreis, e não menos amigo agora, que nos tempos passados, de vosso nome: Propter nomen tuum. (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 448).

Nessa passagem, o orador expõe a situação de Moisés com a qual ele próprio também se identifica. Convenhamos que uma tal comparação não se sustenta, uma vez que as personalidades envolvidas têm papéis históricos muito diferentes. Além disso, as situações também são outras e outros são os povos envolvidos, os objetivos das aventuras descritas, os tempos, os costumes, as mentalidades, as necessidades, enfim, tudo é muito diferente para que se possa fazer uma analogia considerada válida, mesmo que Deus, para Vieira, seja o mesmo que era no Antigo Testamento.

8. Ocorrem deduções falsas. De um modo geral, tais deduções violam as premissas iniciais de uma argumentação.

(...) Tactus dolore cordis intrinsecus [Gn 6:6 Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração.], (...). Já que as execuções de vossa justiça custam arrependimento à vossa bondade; vede o que fazeis antes que o façais, não vos aconteça outra. (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 455).

Vieira parte de duas premissas nessa passagem, uma explícita e outra implícita. A primeira reza que Deus se arrepende dos Seus próprios atos; essa premissa implica outra não tão evidente: só pode se arrepender quem reconhece que cometeu um erro; entretanto, como pode Deus errar se as próprias Escrituras afirmam que Ele é perfeito e Seus juízos são retos e justos? Admitir o arrependimento de Deus é o mesmo que admitir Sua imperfeição, o que é inconcebível. Apesar disso, Vieira insiste em “lembrar” a Deus que Ele se arrepende de Suas deliberações; como essa premissa não pode ser considerada verdadeira, caso contrário implicará o reconhecimento das imperfeições divinas, as deduções feitas a partir dela também não podem ser consideradas verdadeiras.

9. Há estatísticas tendenciosas. Como o próprio nome indica, não se sustentam por falta de dados, o que, naturalmente, encobre uma certa parcialidade por parte de quem as utiliza e retira a credibilidade do argumento usado, como em:

(...) Os velhos, as mulheres, os meninos, que não têm forças, nem armas com que se defender, morrem como ovelhas inocentes às mãos da crueldade herética, e os que podem escapar à morte, desterrando-se a terras estranhas, perdem a casa e a pátria: (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 444).

Embora Vieira não faça uso de estatísticas no sermão, a expressão “morrer como ovelhas” indica que velhos, mulheres e crianças morrem com grande facilidade e em grande quantidade. Como a descrição dos fatos se dá a partir de sua própria ótica, é muito difícil ajuizar a respeito da confiabilidade dos dados arrolados.

10. Ocorrem argumentos do tipo "círculo vicioso". Trata-se de uma redundância inútil e sem fundamento, um "caminhar em círculos", em que não há

ponto de partida nem de chegada. A esse respeito, comparemos as seguintes passagens do sermão:

Passagem 1:

(...) Ouvimos (começa o Profeta) a nossos pais, lemos nas nossas histórias, e ainda os mais velhos viram, em parte, com seus olhos, as obras maravilhosas, as proezas, as vitórias, as conquistas, que por meio dos Portugueses obrou em tempos passados vossa Onipotência, Senhor: (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 443-444, grifos nossos).

Passagem 2:

(...) Tão presumido venho da vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós somos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido. (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 446).

O confronto entre ambas as passagens revela-nos o seguinte círculo vicioso: somente um ser perfeito pode ser onipotente. Deus é perfeito. Se Deus é perfeito, então não pode errar para arrepender-se depois. Contudo, Deus se arrepende. Então, Deus erra. Se Deus erra, então não é perfeito. Mas Deus é perfeito. Então, não pode arrepender-se porque não erra, afinal, é um ser perfeito. Mas Deus se arrepende. Então Deus erra. Se Deus erra, então não é perfeito... E assim infindavelmente. Não há saída. Nem começo nem fim.

11. Há argumento autoritário (não de autoridade). Ocorre quando a autoridade é usada como pretexto para dissimular a falta de argumentos. Um bom exemplo é-nos fornecido por Vieira no final do sermão:

(...) Perdoai-nos, Senhor, pelos merecimentos da Virgem Santíssima. Perdoai- nos por seus rogos, ou perdoai-nos por seus impérios: que, se como criatura vos pede por nós o perdão, como Mãe vos pode mandar, e vos manda que nos perdoeis. (...). (PÉCORA (Org.), 2001, p. 462).

Agora Jesus é tratado como um ser humano dependente que deve obediência à Mãe, uma vez que Ela manda que Ele perdoe aos portugueses.

Como o sacerdote carece de novos argumentos, termina o sermão, mas não sem antes deixar claro para Jesus que a Mãe tem autoridade sobre Ele.

É importante notar que esse argumento, apresentado no final do texto, é justamente um que não se sustenta por falta de uma implicação lógica que o valide.

Como se observa pelos exemplos arrolados, Vieira utilizou-se dos diferentes tipos de recursos falaciosos para argumentar em favor de seus propósitos de persuasão.