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III – CICLOS DE VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA E OS PARADOXOS DO VIVER A PARTIR DA MORTE DE UM FILHO

NA FAMÍLIA UNIÃO

Zara aparece como figura central da família, mantendo os filhos juntos, apesar de seus relacionamentos passageiros. Raquel atesta esta união, mas, em alguns momentos da história, a violência aparece como a linguagem que permeia relações e vínculos familiares. Há no relato, várias situações em que as ameaças ocorreram entre os membros da própria família: Simão ameaça matar a mãe; Tomé brigava e ameaçava os irmãos; Raquel quis matar o companheiro quando sofria por amor; Judá, intimida os parentes que tentam lhe dar limites, impondo respeito através do medo (até a própria avó tem medo de denunciá-lo). Analisando a Linha do Tempo, percebemos que a essas situações violentas já existentes, vem somar-se a morte de Simão em circunstâncias vagas, acarretando sofrimento para a família e para Judá (que perde o pai, ainda bebê). No decorrer do percurso, a ligação de Tomé com as drogas (lícitas e ilícitas) é outro ponto que

demarca a dor, pois, seu comportamento violento de querer brigar com todos quando drogado/alcoolizado, gerou sua morte. Ambos os irmãos são descritos como violentos, nervosos, vendo a violência como um recurso acessível, e acabaram sendo mortos em circunstâncias complicadas. Tomé, inclusive já tinha uma bala alojada no crânio, fruto de briga anterior. Todos os irmãos pensaram em vingança, mas, a ameaça dos assassinos acabou intimidando-os, apesar da vontade de “fazer a própria justiça”. O sistema judiciário não alcançou a punição dos assassinos e a sensação da impunidade parece reinar absoluta.

A partir desses episódios, o sofrimento ficou a flor da pele na família; basta um pequeno estopim para detonar uma avalanche de emoções represadas. A morte dos filhos fragilizaram Zara de tal forma que, falar no assunto, passou a ser revivê-lo em toda a sua intensidade, no próprio corpo (pressão sobe). A família procura, então, preservá-la e se preservar do sofrimento não falando sobre as mortes, como se fosse possível apagar o que foi vivenciado. O assunto é calado, mas o peso é carregado no cotidiano, pois, “não falar” não significa necessariamente, que a questão tenha sido plenamente elaborada.

A preocupação com o futuro de Judá e a sua postura de total exposição a situações de risco, ativam o medo de que a história venha a se repetir. Duas histórias correm em paralelo, a dos irmãos assassinados e a de Judá, que mantém a possibilidade de ocorrência de um novo assassinato presente para todos a qualquer momento (já foi ameaçado e baleado). Se analisarmos a história de seus pais (Simão e Betânia), pode-se dizer que não é por mero acaso que a violência está tão presente no cotidiano deste adolescente. Sua trajetória merece um olhar mais aprofundado. Precocemente perdeu o pai e foi um bebê abandonado pela mãe, crescendo com a idéia de que ela não gostava dele. Sem tentar traçar relações mecanicistas, é importante pensarmos em que medida a morte do pai e o abandono materno possam ter influenciado a postura de busca constante de exposição ao perigo, gritantemente demonstrada por Judá. A tia relata que, desde muito cedo, a família não conseguia dar conta dele. Sua postura sempre foi de agredir a tudo e a todos. Num segundo momento, a morte do tio, Tomé, que provavelmente tinha uma relação próxima com Judá, também gera grande sofrimento. Chama a atenção que após a morte do tio é que Judá passa a sair do controle da família, não respeitando ninguém: pratica assaltos, trafica, acaba baleado por um desafeto. Nessa mesma época, sua mãe está na rua, consumindo drogas. Drogas, aliás, que parecem ter ocupado o papel principal na vida dessa mãe, sendo mais

valorizadas que os próprios filhos. Estamos falando de uma mãe que se colocava o tempo todo em situações de risco (via uso de drogas), o que a levou a contrair o vírus HIV e encontrar também a morte precoce. O vício e a doença só fizeram agravar ainda mais a impossibilidade dessa mãe cuidar dos filhos. A família reforçou este estereótipo negativo de Betânia para Judá, passando a idéia de que Betânia “não prestava”.

Judá já viu a morte de perto. A esta hora, seu destino de morte poderia ter sido concretizado. Já foi baleado, mas sobreviveu. Este fato parece não o ter assustado. Ao contrário, continua constantemente buscando situações de perigo, provocando brigas, ameaçando e sendo ameaçado. Concomitante a isto, a impressão que se tem é de que a família esteja desistindo dele. A avó tem medo, Raquel diz que não irá mais atrás, sendo que eram as duas pessoas que mais se ocupavam dele. Ao mesmo tempo, as ameaças de Judá paralisam a todos. Apenas Raquel diz que nunca ter se intimidado com o que ele diz. A atitude mais radical que Zara consegue ter é mudar de cidade, numa tentativa de afastar Judá de onde mora, mas não dá resultado, pois ele volta.

A descrição que Raquel faz dos motivos que levaram Judá a envolver-se com o mundo da criminalidade demonstram que o adolescente está em busca de uma identidade própria, de alguma forma de reconhecimento. A maioridade de Judá vem demarcar o momento em que a família desistirá definitivamente dele. O fato de Judá ameaçar e a todos que tentam ajudá-lo, demonstra o quanto não conseguiu lidar com sua situação de vida, nem dialogar e refletir acerca de sua condição. Busca realmente a morte. Aparece como vítima e autor de violência: já tentaram matá-lo e ele tentou matar também. Parece que a justiça estabeleceu finalmente o limite que Judá tanto buscava. Ao invés de medida socioeducativa, Judá agora está detido no Núcleo de Custódia. Isto pode tanto lhe estabelecer um limite, quanto selar um destino. Ninguém na família acreditava que seu caso pudesse ter uma solução diferente e Judá está cumprindo a risca a profecia. O mundo da marginalidade tornou-se a meta. A partir de uma família na qual a violência já era parte intrínseca, fica a pergunta no ar: que referências foram passadas para Judá?

3.6 – FAMÍLIA FÉ

3.6.1 – APRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA : História e Contextualização

A Família Fé tem um adolescente sobrevivente. A pesquisadora teve oportunidade de conhecê-los quando Rebeca (mãe, 41 anos, 5ª série) e Jó (filho, 19 anos) participavam dos grupos multifamiliares no CDS, pois Jó estava cumprindo medida de Liberdade Assistida. Em 2001, Jó sofreu um atentado a tiros na própria casa. Ao invés de acertarem nele, as balas atingiram sua mãe que, desde então, ficou com um problema irreversível nas cordas vocais. Quando convidados a participar da pesquisa, ambos disponibilizaram-se prontamente e a entrevista foi realizada no próprio CDS.

Jó, foi liberado pelo juiz do cumprimento da medida, mas, como recebe a bolsa de reinserção juvenil, continua fazendo parte das atividades. Ambos são participativos e comprometidos com os encontros, trazendo sempre contribuições importantes. Atualmente, Jó atua como obreiro de uma Igreja Evangélica, à qual converteu-se em 2003. Rebeca é uma mulher simpática e comunicativa, apesar do problema nas cordas vocais. Consegue falar, mas não emite som e é como se estivesse constantemente afônica. Não trabalha, mas recebe aposentadoria por invalidez; Jó, além da bolsa, eventualmente recebe algum recurso da Igreja. Da primeira união de Rebeca nasceram Saulo (22 anos, já cumpriu medida socioeducativa e esteve no Núcleo de Custódia), Jó e Lia (17 anos). O casamento acabou há dez anos, após quinze anos de convivência. O motivo da separação foi um relacionamento extraconjugal do marido. Ambos estão com novos companheiros, sendo que Rebeca está casada há três anos. Atualmente, vivem na casa, Rebeca, o marido Enoc (39 anos, 2º grau, porteiro), a avó Lila (79 anos, analfabeta) e os três filhos. Os filhos têm contato eventual com o pai e consideram o padrasto como um pai. Jó é descrito pela mãe como um rapaz trabalhador, amigo, carinhoso, calmo. Ele considera os atos infracionais que cometeu no passado como impensados e diz que não foi por falta de incentivo e de conselho, porque dentro de casa tinha muito, mas não soube aproveitar. Parou de estudar na 6ª série.

O filho Saulo estudou até a 8ª série e fez um curso de restaurador mas, no momento, está desempregado. Quando adolescente, também teve problemas com a justiça. A família