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1.3 LUTOS, PERDAS E VIOLÊNCIAS NO CICLO DE VIDA FAMILIAR

I – A MORTALIDADE JUVENIL NO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA – RESSONÂNCIAS NA FAMÍLIA E CORRELAÇÕES ENTRE

1.3 LUTOS, PERDAS E VIOLÊNCIAS NO CICLO DE VIDA FAMILIAR

1.3.1 - Lidando com a Perda

Segundo Tubert (1999), a palavra morte aparece como algo indefinível, quase impronunciável, impossível: “o significado da morte na verdade nos escapa, é impossível representar-se a própria morte, ainda que ela possa ser reconhecida como destino, como ponto de referência para a vida.” (p. 147)

A fim de que possamos compreender a questão do luto em sua complexidade, precisamos pensar no imaginário social com relação à morte, levando em conta seus aspectos culturais em nossa sociedade contemporânea. A morte também tem história. Para Morin (1991), "cultura e sociedade encontram-se em relação geradora mútua, e, nesta relação, não esqueçamos as interações entre indivíduos, que são eles próprios portadores/transmissores de cultura; estas interações regeneram a sociedade, a qual regenera a cultura." (p. 17)

Para Bowen (1998), o homem é indivíduo e, ao mesmo tempo, parte do “amálgama social-emocional no qual vive” (p. 105). A morte é um evento biológico que encerra uma vida. Nenhum evento vital é capaz de suscitar nos indivíduos mais pensamentos dirigidos pela emoção e mais reações emocionais traumáticas naqueles à sua volta. O luto é o processo de elaboração da perda de pessoas próximas, com uma grande carga energética vinculada. É o processo necessário para que a ferida sare, cicatrize (Kovács, 1992). Porém, em alguns casos, as feridas parecem ficar eternamente abertas. A morte surge como algo incompreensível que a civilização tenta ocultar, já que não pode suprimir, é como uma herança anacrônica. Em geral, os fenômenos que circundam a morte são ocultos ao máximo em tabus reforçados, e não enquanto fenômeno normal e natural (Lepargneur, 1986).

Na sociedade medieval, a morte não era um interdito. Fazia parte do cotidiano, não sendo um horror absoluto, pois havia espaço para se falar sobre ela. É claro que o horror sempre existiu, pois, a morte é o contato com o total desconhecido, o nada, que gera medo e ansiedade. Mas, talvez devido ao fato da morte ser mais freqüente (40 anos era a perspectiva de vida), havia espaço para falar sobre ela. Da mesma forma, as crenças religiosas apaziguavam o temor do que viria depois (Ariès, 1986). Atualmente, vivemos um processo de negação da morte que deixa, evidentemente, seqüelas graves na psique. Seus sintomas manifestam-se de diferentes maneiras, indo da simples negação até o pavor extremo que causa depressões e outros tipos de disfunções.

Lepargneur (1986) diz que se não podemos eliminar a dor por completo, temos de “amansá-la”. Seu sentido pessoal depende do lugar que lhe reservamos a partir de nossa visão pessoal do mundo, nossa fé, nossa experiência, nossa coragem ou nosso medo. Ela pode ser destino ou aprendizado: “Dar sentido à dor, é devolver-lhe o troco ou agradecer o favor, como convier a cada um”. (p. 23). A dor e o sofrimento são peças constituintes do humano, sempre confrontados com a busca de sentido.

De acordo com Morin (1976) a dor provocada pela morte só existe se a individualidade do morto tiver sido presente e reconhecida: quanto mais o morto for chegado, íntimo, familiar, amado, respeitado, único, mais a dor é violenta. Há poucas perturbações na morte de um ser anônimo, que não era insubstituível. O autor ainda enfatiza: “Escutemos as nossas bisbilhotices: a morte de uma vedete do Cinema, de um jogador de futebol, de um chefe de Estado ou do vizinho do lado é mais fortemente sentida do que a de dez mil hindus afogados numa inundação.” (p. 31). Extrapolando para nosso tema de pesquisa, adolescentes pobres não são vistos pela sociedade enquanto seres imprescindíveis; não são vistos como o futuro que dará continuidade a nosso país; não têm uma função social importante, muito antes pelo contrário. Talvez por isso, sua morte não toque tanto os cidadãos. Morin (1976), diz ainda que, quando o morto não está individualizado, apenas existe indiferença e simples mau cheiro. O horror cessa perante a carcaça do inimigo, do traidor, que é deixado para “apodrecer como um cão” (p. 32), porque não é reconhecido como homem.

Para Bromberg (1994), o processo de elaboração de um luto segue um roteiro de fases: entorpecimento (período onde a pessoa ainda não realizou o fato); anseio e procura; desorganização; início da percepção; reorganização. Essa divisão tradicional

ajudou a entender o luto, mas atualmente se busca observar mais os ‘padrões’ de comportamento, com enfoque nos indivíduos, do que referências cronológicas. Trabalha-se mais com uma construção de significados para determinada morte, para as suas vidas antes e depois daquela perda. Não podemos esperar seqüências e estágios fixos, pois há uma enorme diversidade na forma como cada família irá lidar com a situação de perda.

As crenças religiosas ou os sistemas filosóficos de pensamento tendem a ser uma interface importante entre a morte e seu comportamento adaptativo da família. A fé pode tanto aliviar como exacerbar a tristeza, a raiva, a culpa e a depressão que acompanham ou se seguem à morte de um ente querido. É preciso conhecer o sistema de valores da família e suas práticas religiosas, bem como sua filosofia de vida (Coleman, 1998).

1.3.2 - A Morte de um filho no Ciclo Vital da Família

Toda família possui um ciclo que obedece a um roteiro pré-estabelecido: casamento, nascimento dos filhos, crescimento, meia-idade, velhice e morte. Quando esta lógica é desafiada pela morte de um filho, o impacto gerado na família é maior, pois são situações que revertem as expectativas geracionais, ocasionando um sofrimento devastador e traumático. Uma perda prematura é mais difícil de ser suportada, pois, parece injusto que alguém morra “antes do tempo”. Torna-se importante um olhar a partir de uma Linha de Tempo, pois, essa morte pode vir a desencadear novos eventos, como também já ser resultante de eventos anteriores (ressonâncias) (Walsh & McGoldrick,1998).

Sabemos que em todas as culturas, os rituais de luto facilitam a integração da morte e as transformações daqueles que permanecem. Cada cultura, a seu modo, oferece assistência à comunidade de sobreviventes. A perda pode ser vista como um processo transacional que envolve o morto e os sobreviventes em um ciclo de vida comum, que reconhece tanto a finalidade da morte, quanto a continuidade da vida. É preciso achar o equilíbrio. Segundo Morin (1976),

“(...)o luto exprime socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo tempo, é o processo social de adaptação que tende a fazer cicatrizar a ferida dos indivíduos que sobrevivem”. (p. 75)

Para Walsh & McGoldrick (1998), a morte impõe os desafios adaptativos mais dolorosos para a família como sistema e para cada um de seus membros individualmente, com ressonâncias em todos os relacionamentos. Os múltiplos sentidos de qualquer morte são transformados durante todo o ciclo de vida. A morte de um filho envolve a perda dos “sonhos e das esperanças dos pais” (p. 63), modifica a estrutura familiar e requer a reorganização do sistema como um todo: “quando seus pais morrem, você perde seu passado; quando seus filhos morrem, você perde seu futuro” (Walsh & McGoldrick, 1998, p.63). Dificuldades parentais negligenciadas quando da morte de um filho podem se apresentar pelo comportamento sintomático de um irmão. Embora uma família não possa mudar seu passado, as mudanças no presente e no futuro ocorrem em relação a ele: “(...) reconstruir sua história e colocar suas perdas em uma perspectiva mais funcional é uma parte essencial para ajudá-las a mudar suas relações com o passado e o futuro.” (Walsh & McGoldrick,1998, p. 33).

Segundo Ausloos (1998), crise e gestão do tempo são noções estreitamente vinculadas. Em famílias mais rígidas, é como se o tempo ficasse parado, tornando-se importante mobilizar o tempo de modo a permitir-lhes realizar projetos que tenham futuro. Em famílias com relações caóticas, ao contrário, é preciso frear o tempo dos acontecimentos, introduzir o conceito de durabilidade, devolvendo-lhes um passado, uma história, a fim de permitir-lhes um futuro com a noção de permanência. Em ambos os padrões, o passado não é utilizado e não se pode planejar o futuro. Há um presente sem futuro.

Outro aspecto do Tempo, é que se torna necessário espaço e tempo certo para que a vivência do luto seja elaborada. Não estamos falando aqui de um tempo cronológico, mas sim, de um tempo subjetivo; do tempo necessário para conseguir conviver com a dor, levando adiante planos e projetos. Segundo Bowen (1998), o equilíbrio da unidade familiar é perturbado seja pela chegada, seja pela perda de um membro. O tempo necessário para que a família estabeleça um novo equilíbrio emocional depende de sua integração emocional e da intensidade da perturbação.

Uma das tarefas adaptativas propostas por Walsh & McGoldrick (1998), é o reconhecimento compartilhado da experiência comum da perda. Nela, todos os membros da família devem confrontar a realidade da morte que os atinge e comunicar abertamente os fatos e circunstâncias da morte. Compartilhar essa experiência, seja de

que modo for, é fundamental para a boa adaptação da família. A perda do controle ao vivenciarmos sentimentos tão avassaladores, pode bloquear a comunicação da experiência, tornando os relacionamentos rígidos e levando ao isolamento. Há risco de paralisar na ressonância do luto, pois, na vivência solitária do luto, a dor é muito pior. As questões não resolvidas acabam ficando ocultas e, provavelmente, encontrando outras vias de expressão, talvez nem sempre as mais saudáveis. Cada um tem respostas diferentes: alguém pode expressar só a raiva, outro, só tristeza. Como exemplo, podemos citar uma passagem ao ato, um sintoma corporal ou um distúrbio afetivo. Bowen (1998), chama isto de tremores secundários subterrâneos, que podem ocorrer em qualquer parte do sistema familiar extenso nos meses ou anos após um evento emocional importante para a família. Pode incluir sintomas em nível físico (diabetes, por exemplo), emocionais (depressão, fobias) e sociais (alcoolismo, fracasso escolar, fracasso nos negócios). São eventos que se propagam e amplificam como ondas concêntricas dentro da família e que extrapolam as reações normais de luto.

Consoante Rodrigues (1983), nas classes populares, em que a morte é comum por violência ou precariedade de vida, as pessoas tendem a se habituar e a gerar “anticorpos” em relação ao tema. Esse fato acarreta em danos para o processo de elaboração do luto, pois, essas situações trazem risco de que as pessoas desenvolvam um luto complicado, tendo em vista que são sobreviventes da violência generalizada. Como têm de se defender, acabam “não se importando mais”. Há uma banalização do fato, havendo pouco questionamento acerca da experiência vivida. Esta talvez consista na ressonância mais difícil para estas famílias, pois, como o luto não é elaborado, a dor continua presente e causando danos aos sobreviventes, que demonstram dificuldade em achar um sentido em suas vidas. Neste contexto, não há um suporte para ajudar as famílias em seu processo de adaptação à perda. É importante que possamos pensar nos impactos e efeitos a curto e a longo prazo, sobre pais, irmãos e família extensa.

Cada família é um universo diferente em si mesmo, apesar de enfrentarem situações similares. Os sistemas familiares precisam encontrar formas de se adaptarem ao que mudou, traçando novos planos futuros. Toda crise é um momento em que as mudanças estão sendo produzidas. (Ausloos, 1998). Outra tarefa proposta por Walsh & McGoldrick (1998), é a reorganização do sistema familiar e o reinvestimento em outras

relações e projetos. O processo de recuperação envolve o realinhamento das relações e a distribuição dos papéis para compensar a perda e prosseguir com a vida familiar.

Existem vários fatores que influenciam a adaptação familiar à morte. Um deles é a forma da morte. No caso de nossa pesquisa, é preciso estar atento para o fator morte repentina e violenta, a qual é geradora de muito stress para a família. Não há tempo para antecipar e se preparar para a perda, como ocorre em um caso de doença:

“Para a família de uma vítima de homicídio, o luto pode ser interminável se os membros acreditam que a justiça não foi feita. Uma comunidade inteira pode ser traumatizada pelos crimes violentos que atingem desproporcionalmente as famílias das áreas urbanas pobres.” (Walsh & McGoldrick, 1998, p. 40)

A morte de um adolescente pode ser particularmente traumática nesta fase do ciclo da vida, pois, a tarefa evolutiva primária da separação do adolescente entra em conflito com a experiência da perda. Quando a morte está associada a comportamentos arriscados, a família pode ter sentimento de raiva em relação ao filho morto, frustração em relação ao seu comportamento impulsivo e tristeza pela perda sem sentido.

A morte de jovens por situação de violência remete muitas vezes a uma total exposição do mesmo a situações de perigo. Tal qual um suicida, parecem não acreditar que as coisas possam mudar ou melhorar. Há, como nos fala Gutstein (1998), a idéia de que a vida não vale a pena ser vivida no presente e que algo foi perdido ou alterado, tornando certo o fato de que a vida nunca mais valerá a pena ser vivida. Ao se investigar a história multigeracional, aparecem muitos comportamentos autodestrutivos, abusos, violência, divórcios, abandonos, conflitos duradouros e rompimentos emocionais que caracterizava as relações familiares ao longo das gerações.

A morte sempre deixa um legado, quer seja de fortalecimento ou de trauma, afetando os relacionamentos dos sobreviventes. Para fortalecer essas famílias, é preciso ajudá-las a examinar os legados negativos, definindo ativamente seu futuro, desenvolvendo formas mais abertas de responder à morte. É preciso reforçar a estrutura sócio-familiar e pensar em um espaço que possa acolher suas vivências. Apenas as redes sociais que as envolvem podem trazer uma sensação de segurança e um ponto de apoio para aqueles que foram vítimas de alguma situação extrema de violência, pois, torna-os fortalecidos.

Um ponto importante para Ausloos (1998), é que o processo não retrocede nunca, não se pode tentar ser como antes, só depois; não há como parar a flecha do tempo. Por isso, a família precisa descobrir formas de se adaptar ao que mudou. Não se pode retroceder, este é um mistério que nos ajuda a evoluir.

Devemos acreditar na possibilidade da mudança. O que serve em um determinado momento pode não servir no outro. Isto faz parte do movimento da vida. Qualquer sistema vivo é colocado diante de problemas aos quais está apto para resolver. Crises são momentos em que mudanças estão sendo produzidas. Em lugar de combater a crise não seria melhor buscar o que há de construtivo em determinadas vivências que se tornam inevitáveis? Este pensamento é importante no enfrentamento de uma situação de morte. O tempo é o enigma que transparece como pano de fundo em todas as manifestações e pensamentos humanos. Ele é existencial, social, cósmico e orgânico. Ora é linear, circular, finito ou infinito: "A tematização do tempo parte da própria condição humana: momento de consciência entre dois mistérios - o do nascimento e o da morte, um momento de tempo existencial entre dois extremos de não-tempo." (Aguiar, 2000, p.77).

Demo (2001), também fala no significado da flecha do tempo, termo cunhado por Prigogine (1984), no qual todos os processos são irreversíveis, estabelecendo a realidade do eterno vir-a-ser, sem, no entanto, sabermos exatamente para onde vamos.