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O QUE É CORPO?

C) Fato Social Total e Noção de Pessoa

A relação do indivíduo com o mundo, abordada pela definição de Fato Social Total, é também uma questão central no pensamento de Marcel Mauss. A realidade é a relação entre sistemas sociais e o fato social total, quando se percebe esta relação em sua totalidade. O fato social total não é total pela simples reintegração dos aspectos descontínuos dos sistemas sociais (família, economia, política, religião, etc.), mas sim na apreensão de todos eles em relação entre si. Para isso é necessário o estudo de uma experiência individual que permita observar o comportamento dos seres totais, não divididos em faculdades, mas considerando um sistema de interpretação que englobe os aspectos físicos, fisiológicos, psíquicos e sociológicos de todas as suas condutas.

Dentro disso, Mauss (1950c) define a vida social como um mundo relações simbólicas, e completa dirigindo-se aos psicólogos com a seguinte sentença:

(...) enquanto os senhores seguem esses casos de simbolismo, muito raramente e com freqüência em séries de fatos anormais, nós seguimos inúmeros deles de uma maneira constante e dentro de séries imensas de fatos normais (Mauss, 1950c, p.6).

Em Mauss, toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos no qual se destacam as linguagens, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência e a religião. Esses sistemas exprimem as relações entre a realidade física e a social, e dos sistemas simbólicos uns com os outros. Cada sociedade situa-se em determinado tempo e espaço, sujeito a incidências de outras sociedades e de sua própria história, resulta disso que cada uma pode ter seu próprio sistema simbólico (Lévi-Strauss, 1950).

É parte da natureza da sociedade exprimir-se simbolicamente em seus costumes e instituições. As condutas individuais normais não são simbólicas por elas mesmas, mas um sistema simbólico que se constrói a partir desses elementos. Por isso, as condutas anormais são encaradas como dessocializadas, de modo que o patológico nunca se dá no âmbito do individual, mas no distanciamento daquilo que é aceito pelo coletivo.

As patologias seriam a expressão tanto de um estado de exclusão individual numa dada sociedade, porquanto é a manifestação individual de algo não aceito pela

coletividade, como também a expressão do estado de um grupo, uma vez que este grupo marca o que é periférico e o que é central naquele contexto. Deste modo, a relação de condutas normais e anormais seria complementar (Lévi-Strauss, 1950).

O pesquisador, ao se deparar com formas sociais diferentes da nossa, encontra sinais que consideraríamos anormais, como no caso de incorporações de entidades religiosas. Contudo, naquele determinado contexto, é aquilo que é esperado e aceito pela coletividade, portanto, estes indivíduos não são tratados como anormais, até porque esta conduta acontece em tempo e espaço determinados.

Portanto, mesmo que essas condutas sejam do mesmo tipo das condutas consideradas patológicas em nossa sociedade, elas são contingente de uma condição particular do contexto social e podem ser consideradas como incidência sociológica. Assim, um estado fisiológico apontaria para um terreno favorável ou sensibilizador a certas condutas simbólicas que continuariam a realçar a interpretação sociológica.

Por isso interessa o estudo do Fato Social Total, pois nele se pode observar a intersecção das dimensões sociológicas, históricas e fisio-psicológicas. Nessa intersecção se constroem as diferentes formas de expressão, desde fenômenos fisiológicos, como reflexos, até categorias simbólicas de representação inconsciente. Tais expressões, apesar de acontecerem no indivíduo, têm caráter social, uma vez que é na forma de fato social que estes elementos de naturezas tão diversas podem adquirir uma significação global e tornar-se uma totalidade (Lévi-Strauss, 1950).

O fato social precisa ser observado no contexto, ou seja, numa sociedade localizada no tempo e no espaço; ainda que seja sempre preciso voltar ao indivíduo no final, já que o fato social acontece no indivíduo. Uma vez que a prova do social só pode ser mental, não podemos estar seguros de termos atingido o sentido e a função de uma instituição, se não pudermos reviver sua incidência sobre uma consciência individual.

Em outro ensaio, Mauss (1950c) inicia uma discussão que seria muita cara para a antropologia desde então. Apresentando o processo da investigação da ‗Noção de Pessoa‘ como uma das categorias do espírito humano (inspirada pela categoria aristotélica), o autor discorre sobre as determinadas formas que a noção do ‗eu‘ tomou em diversas sociedades, e mostra como o corpo foi se aproximando da Noção de Pessoa dos primórdios das civilizações até os dias de hoje, quando, enfim, a idéia do ‗eu‘ torna-se clara nas nossas civilizações.

Esse processo é elucidado no capítulo II, ―O ‗Personagem‘ e o Lugar da ‗Pessoa‘‖, o qual inicia com o exemplo dos índios Zuñi, que encontram, por meio dos nomes/ personagens, posições dentro das confrarias, que designam seus direitos e funções na sociedade. Seguindo estrutura semelhante, Mauss (1950c) apresenta os índios do noroeste americano, e depois os Kiwai da Austrália, com uma noção de pessoa diretamente ligada ao coletivo. Já no capítulo III, ―A ‗Persona‘ Latina‖, o autor constrói desde as antigas civilizações como a chinesa e a indiana, passando pela romana, a noção do indivíduo e da consciência do ‗eu‘. O significado de pessoa agora é visto como mais do que um nome reconhecido a um personagem, é um fato fundamental do direito. Persona, neste contexto, significa mais do que um personagem artificial, mas significa também a natureza verdadeira do indivíduo.

A ‗Pessoa‘ torna-se personalidade humana e com isso acrescentam-se os sentidos morais, jurídicos, de ser consciente, autônomo e livre. Adiante, no capítulo VI o autor trata da pessoa cristã, da unidade da pessoa, e no capítulo VII trata da ‗Pessoa‘ como ser psicológico. Por fim, o capítulo VIII indaga: ―De uma simples mascarada à máscara, de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo, deste a um ser de valor metafísico e moral a um ser sagrado, deste a uma forma fundamental do pensamento e da ação - venceu-se o percurso. Quem sabe a que chegarão ainda os progressos do entendimento a esse respeito?‖ (Mauss, 1950d).

Marcel Mauss apresenta a noção de Pessoa como algo que vai se complexificando, como se houvesse uma hierarquia. Ordena as sociedades das mais simples para as mais complexas, numa orientação evolutiva. Alguns autores hoje, como Márcio Goldman (1995), fazem algumas ressalvas a respeito da forma com que foi conduzida a construção deste ensaio e sua conclusão, não concordam como uma orientação evolutiva, mas concorrem para uma diversidade de possibilidades de arranjo para outras noções de pessoa. Entretanto, deve-se considerar suas origens, pois a ‗noção de pessoa‘, bem como a ‗idéia de morte‘ e as ‗técnicas corporais‘, conceitos sistematizados por Marcel Mauss, são importantes categorias e alicerce da antropologia contemporânea, inclusive das etnologias brasileiras.

A Noção de Pessoa e o Fato Social Total sugerem que a pessoa habita entre o mundo do pensamento e o mundo material, entre o individual e o coletivo, assim o corpo de uma pessoa necessariamente tem a percepção e a prática como domínios de um sujeito culturalmente constituído.

Aproveito, então, os conceitos expostos acima para pensar o corpo como produto da construção sociocultural de pessoa no contexto do tratamento com acupuntura, modalidade terapêutica oriunda da MTC, tema e foco desta pesquisa.

III.

O CORPO NA