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MEDICNA TRADICIONAL CHINESA

A) O Surgimento da Medicina Tradicional Chinesa

Entre os autores do Ocidente Contemporâneo que estudaram a fundo as tradições, a sociedade, a filosofia e história chinesa, destacam-se, Paul Unschuld e Marcel Granet. Unschuld aponta a visão não-linear e plural dos sistemas de saúde chineses. Preocupado com as distorções freqüentemente encontradas nas traduções da

29 Yue Fei (1103 - 1142) foi um líder militar chinês patriota e nacionalista que combateu pela Dinastia Song, contra o

exército Jurchen da Dinastia Jin (1115-1234). Este lendário general chinês, também conhecido como Wu Mu, certa vez venceu um exército de vinte mil homens com apenas quinhentos soldados. Segundo a lenda, antes que saísse para se unir ao exército em 1122, a mãe de Yue Fei tatuou quatro ideogramas em suas costas, seu significado: "servir o país com lealdade".

literatura em MTC, ele sugere uma abordagem histórica e sistemática baseada em fontes antigas disponíveis na China (Unschuld, 1985). Granet foi um dos primeiros etnólogos a estudar a China pelos métodos sociológicos, a partir do qual estudou os textos clássicos chineses, deixando um legado de tratados minuciosos sobre a civilização e o pensamento chineses:

As idéias conjuntas de Ordem, Totalidade e Eficácia dominam o pensamento dos chineses. Eles não se preocupam em distinguir reinos da natureza. Toda realidade é total em si. Todo universo é como o Universo. A matéria e o espírito não aparecem como dois mundos opostos. Não confere ao homem um lugar à parte (...) a não ser à medida que, possuindo uma posição na sociedade, são dignos de colaborar na manutenção da ordem social, fundamento e modelo da ordem universal (...) (Granet, 2004, p. 211).

Tais proposições ainda permanecem atuais na China contemporânea, porém nem todas as concepções clássicas chinesas permaneceram iguais até os dias de hoje. Segundo Luz & Souza (2009a), conflitos decorrentes do processo de ―importação‖ e aculturação de um sistema médico oriental nos países ocidentais resultou em distintas configurações institucionais, dependendo dos poderes dos atores e instituições envolvidos. Exemplos dessas instituições são: as associações e conselhos profissionais; as características das leis trabalhistas e educacionais; o sistema nacional de saúde; a história prévia da imigração de orientais; as instituições de pesquisa, construção e legitimação do conhecimento, entre outros. Em resposta a esta institucionalização da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), encontramos hoje os defensores da Medicina Clássica Chinesa (MCC).

Para compreendermos o que está em conflito nesta dimensão, é necessário apresentarmos, de forma muito sumária e simplificada, uma síntese de sua história. A MCC (GǓ DÀI ZHŌNG YĪ) foi sistematizada durante a dinastia HÀN. (206 a.C. - 220 d.C.), nesta ocasião, houve uma síntese de concepções cosmológicas na qual se destacavam a noção do Tao do livro ―Tao Te Ching‖ (DÀO DÉ JĪNG), as noções sociológicas dos chamados filósofos chineses e noções específicas do saber médico. Todas elas formaram as dimensões da doutrina médica, morfologia, dinâmica vital, diagnose e terapêutica da MCC, divulgadas através dos clássicos: O Livro do Imperador Amarelo (HUÁNG DÌ NÈI JING) e O Clássico das Dificuldades (NAN JING).

Foi neste período de formação da MCC que a concepção de Qi (QÌ) se tornou um dos fundamentos do modelo, assumindo a função de uma força conectiva entre os órgãos e vísceras integrando os seres individuais, e ainda, conectando-os ao cosmos. O Qi, chamado no Ocidente de Força Vital, operaria por correspondência qualitativa, conforme as leis dos Cinco Elementos, que explicam as diferenciações do Qi em sua constante alternância entre as polaridades Yin (YĪN) e Yang (YÁNG). Segundo este modelo, sistemas que estiverem no mesmo elemento responderão a estímulos feitos em qualquer ponto do elemento (Souza, 2008).

Denominamos a medicina estruturada neste período de MCC, em contraposição à MTC, que se consolidou após a revolução comunista na República Popular da China. A MCC permaneceu sem rupturas teóricas significativas até a formação da MTC. Durante este período de aproximadamente dezessete séculos, segundo Unschuld (1985), deu-se o desenvolvimento sistemático do modelo clássico, surgindo o mapa de pontos de acupuntura com a inclusão de novos pontos e a elaboração de suas funções30, métodos de tratamento como a acupuntura, a moxabustão e as ervas, e o desenvolvimento de diversas linhagens de pensamento, enfatizando diferentes aspectos da prática médica. Durante este longo período, a Medicina Clássica Chinesa foi exportada para outros países asiáticos, como o Japão, a Coréia e o Vietnam, onde mais linhagens se desenvolveram com outras especificidades (Luz & Souza, 2009b, p.5).

Durante a dinastia QĪNG (1644 – 1912), em virtude da influência da cultura ocidental, os valores da cultura chinesa foram lentamente sendo transformados pelos valores ocidentais em expansão, assim começou o declínio da MCC. O final desta dinastia representou também o fim do império e um período de aceleração no processo de modernização da nação. O campo da medicina esteve em evidência durante este processo, pois, a partir de 1911, a ciência ocidental passou a ser valorizada junto com todo o processo de modernização, enquanto a MCC passou a ser considerada por dirigentes da nação como um conjunto de crenças supersticiosas (Luz & Souza, 2009b).

Após a revolução comunista de 1949, tendo recebido suporte de Mao Tsé Tung (MÁO ZÉ DŌNG) por motivos de saúde coletiva, econômicos e políticos, a Medicina Chinesa volta a ter representatividade no processo de construção da República Popular

30 Os textos de Mao Tsé Tung descreviam os canais principais e os colaterais (JĪNG MÀI), mas não faziam qualquer alusão

à noção de ponto de acupuntura. Interpreta-se isto como evidência de um processo de desenvolvimento. (Luz & Souza, 2009b).

da China, uma vez que seus dirigentes tinham como objetivo resgatar parte da cultura tradicional criando uma síntese com a ciência e os valores modernos.

Dessa proposta de síntese nasceu a MTC, que é referida por diversos termos tais como: ―tradicional‖; ―modernizada‖; ―científica‖; ―sistemática‖ e ―padronizada‖, que denotam de forma adequada seus valores estruturantes, elaborados por Barsted (2000) de forma mais minuciosa na citação a seguir:

A escola ―Traditional Chinese Medicine‖ apresenta, nas principais obras traduzidas para línguas européias, fortes traços positivistas e funcionalistas, marcados, entre outras coisas, por: (a) uma agregação histórica de diferentes conceitos e práticas de medicina chinesa; (b) uma implícita preocupação com a lógica e com os critérios de cientificidade ocidentais; (c) uma exclusão das categorias e das formas de pensamento dos clássicos filosóficos que fundamentam a medicina clássica chinesa; (d) a negação de vários conceitos básicos da medicina clássica chinesa que a escola ―Traditional Chinese Medicine‖ atribui ao misticismo e (e) uma tendência à materialização, à coisificação da acupuntura, p. ex. atribuir a ação da acupuntura ao sistema nervoso e denominar certas categorias fundamentais abstratas da medicina chinesa de ―substância vitais‖ (Barsted, 2000, p.11) 31

Nos últimos quarenta anos, a escola de pensamento denominada MTC alcançou uma posição hegemônica em relação à MCC na República Popular da China (1949), bem como em diversos países do Ocidente. Inicialmente concebida como um projeto para reconstrução da Medicina Chinesa dentro do território da China continental após a revolução de 1949, esta escola buscou construir uma síntese entre a MCC e a ciência ocidental, adequando-se aos valores e ideologia da China comunista. Sendo uma das práticas terapêuticas mais divulgadas da Medicina Chinesa, a Acupuntura se apresenta como uma opção terapêutica disponível em qualquer metrópole do mundo ocidental (Souza, 2008).

De acordo com Daniel Luz (2006), esta medicina tradicional vem se transformando continuamente, não significando que paradigmas anteriores sejam eliminados, nem mesmo superados, mas passam a orbitar as idéias mais recentes. Assim a MTC hoje se

31 O autor preferiu não traduzir o termo ―Traditional Chinese Medicine‖ do inglês, cuja tradução seria ―Medicina Tradicional

tornou uma colcha de retalhos, onde coexistem idéias e práticas oriundas de períodos históricos e de paradigmas substancialmente diferentes.

A concepção de saúde e doença acordada por uma dada coletividade não deixa de ser dinâmica, construída ao longo do tempo, provinda das interações entre o social e o mental, das evoluções históricas, do que é apresentado para as sociedades e da forma como interagem com as novas situações que lhes aparecem. No caso da MTC, o que se percebe é uma aceitação crescente de sua terapêutica, em especial da técnica da acupuntura, o que, segundo Froió (2006), foi facilitado pela estrutura social de certos países e também pela própria modificação nas imagens e nas representações acerca do corpo, da saúde e da doença.

A comunidade médica ocidental pauta-se hegemonicamente no que Madel Luz (1997) chama de racionalidade biomédica. De acordo com Camargo Jr (2003), a biomedicina tem suas origens no surgimento da ciência moderna, seus antecedentes imediatos são representados pela cosmologia dominante na Idade Média, ligada à visão religiosa da Igreja Católica que, por sua vez, remonta à ótica aristotélica que, grosso modo, tinha como tema central a dialética mudança/continuidade expressa nas modificações sofridas por corpos em movimento, dentro de uma ótica fundamentalmente qualitativa, cuja fonte do movimento seria um ―motor primeiro‖, noção associada à concepção de divindade única.

A partir do Renascimento, a Teoria Teocêntrica vai sendo desalojada e progressivamente vai sendo instaurado o embrião da racionalidade mecânica clássica32 e do positivismo, que têm como marcos René Descartes e August Comte, respectivamente. Nesse mesmo momento histórico nasce a clínica (Focault, 2008) que, embasada nesta episteme, edifica o imaginário médico na racionalidade mecânica clássica. A doutrina biomédica traz implícita a idéia de que as doenças são objetos com existência autônoma, e a perspectiva de uma ―normalidade‖ é caracterizada por sua oposição à ―patologia‖ e a própria noção de saúde é definida como ausência de doença (Luz, 1997).

32 A ótica mecanicista pode ser delineada em três proposições básicas: 1) Seu caráter generalizante, ou seja, dirige-se a

produção de discursos de validade universal; 2) Seu caráter mecanicista, ou seja, naturalização das máquinas produzidas pelo homem, ao mesmo tempo em que passa a ver o universo como uma gigantesca máquina subordinada a princípios de causalidade linear traduzíveis em mecanismos; 3) Seu caráter analítico; que pressupõe o isolamento das partes e o funcionamento do todo dado necessariamente pela soma das partes, busca-se ―leis gerais‖. Esta medicina se origina a partir da anatomoclínica, é uma medicina do corpo, das lesões e das doenças (Camargo Jr, 2003). Ainda de acordo com o mesmo autor, a perspectiva de encontrar-se a essência da doença a partir do exame empírico de lesões delineia todo um novo campo, epistemológico, com isso apresenta-se nova concepção de doença, que não mais é vista como um fenômeno vital, mas como a expressão de lesões celulares, assim a doença passa a ser a categoria central do saber e da prática médica (Camargo Jr, 2003).

Os conceitos trazidos pela MTC à cultura médica ocidental convivem lado a lado às práticas biomédicas, o que torna o campo da saúde pública no Brasil um campo de hibridismo cultural, a interação entre esses sistemas médicos provoca adaptações de ambos os lados, fazendo com que, idealmente, essas técnicas busquem a complementaridade e não a subjugação.

Segundo Yamamura (2006), a acupuntura realizada no Ocidente foi trazida da China pelos sinólogos (estudiosos da cultura chinesa em geral), sendo igual em termos de uso dos pontos de acupuntura, porém eles não adequaram a situação geográfica da China (hemisfério Norte, Oriente) para as necessidades do Ocidente (hemisférios Norte ou Sul, Ocidente). Assim, muitas vezes a metodologia aplicada em uma localização topográfica (como a China) pode não ter o mesmo efeito em outro (como no Brasil).

O Brasil é marcado pela influência de outros países e culturas, o que justifica a pouca resistência social encontrada33, além disso, houve incentivos do governo brasileiro

à introdução dessa técnica médica, além da colaboração da imprensa. Tais aspectos do processo de expansão da MTC no Brasil são fundamentais para explicar sua integração na sociedade brasileira.

A MTC de que vamos tratar é esta que pode ser encontrada nos serviços públicos de saúde. Peguemos de todo o universo das racionalidades médicas aquilo que nos interessa neste trabalho, a morfologia, ou a descrição do corpo humano. Na MTC, em verdade, a morfologia do corpo não está dissociada das outras seis dimensões propostas por Luz (1991)34. De acordo com Froió (2006), verifica-se uma nova forma de tratar o corpo, visando a prevenção do agravo refletindo a concepção oriental de responsabilidade individual em relação ao desequilíbrio do corpo e à manutenção da saúde.

Para melhor compreensão, vale ilustrar primeiramente em quais bases esta prática está pautada.

33 Froió (2006) lembra que no caso brasileiro o maior obstáculo à difusão da medicina chinesa foi o fato de ter de convencer

a sociedade médica brasileira de sua eficácia, assim, após a comprovação, ao invés da costumeira negação deste saber médico, instalou-se uma disputa pelo monopólio de seu uso.

34 Dimensões descritas anteriormente na página 20: 1) Cosmológica, 2) Morfológica, 3) Dinâmica 4) Doutrinária, 5)