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3 FEMINISMO E AGROECOLOGIA: UMA LEITURA A PARTIR DAS MULHERES

3.6 FEMINISMO E AGROECOLOGIA: UMA ELABORAÇÃO CONSUBSTANCIAL

No início deste século XXI no Brasil, ocorreram pelo menos dois importantes deslocamentos de construção do saber na agroecologia que foram a criação da Articulação Nacional de Agroecologia que protagonizou a incidência nas políticas de agroecologia no Brasil e elaboração e construção da agroecologia e feminismo no campo político teórico erigido a partir da prática de movimentos sociais como Via Campesina, Marcha das Margaridas e Marcha Mundial das Mulheres22.

As mulheres que constroem a arena teórica prática da agroecologia têm elaborado uma crítica a esse campo político. No Brasil, o debate das mulheres da agroecologia se firma na economia feminista e na referência do acúmulo das organizações que compõem o Grupo de Trabalho de Mulheres da ANA.

Nesse sentido, o debate iniciado pelas feministas que fazem agroecologia no país continua tendo como pontos de ligação a economia feminista e ecologia política. A elaboração de uma visão ampla sobre agroecologia passa por uma crítica metodológica e conceitual às tradições até então existentes e na elaboração de proposta com novas perspectivas teóricas.

Nesse aspecto, as conclusões de Emma Silipandri são pioneiras no Brasil, dialogam com os principais teóricos da agroecologia e, ao mesmo tempo, apresentam o ecofeminismo como uma das correntes construtoras do marco teórico da agroecologia. Em sua tese de doutorado, intitulada Mulheres e

Agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos na agricultura familiar,

Silipandri (2009) mostra sujeitos antes invisíveis – neste caso, as mulheres – e, ao mesmo tempo, apresenta o espaço da prática agroecológica como uma arena promissora para o fortalecimento do feminismo, da auto-organização e da autonomia das mulheres rurais.

Para elaborar uma crítica à edificação do saber agroecológico, faz-se necessário apresentar seus elementos androcêntricos e limitadores para aceitar

22 Além dos movimentos sociais, o Centro Feminista 8 de Março, CF8, e Sempre viva

Organização Feminista, SOF, entre outras organizações, tem construído práticas e conhecimento no processo de articulação feminismo e agroecologia.

rupturas conceituais e novas propostas que incidam sobre o corpo central da análise e prática agroecológica. Um elemento ampliador desse androcentrismo é o fato da agroecologia, ao basear-se na naturalização e conservação das práticas produtivas advindas dos meios de produção indígenas e camponeses, não conseguiu fazer ver as especificidades e relações patriarcais de poder existentes no seu interior, em especial do grupo social das mulheres e dos homens. Com essa lacuna, a construção de saber tende a se estender às demais esferas do campo teórico político, invisibilizando a reprodução da hierarquia de poder existente entre homens e mulheres nas práticas sociais no campo agroecológico. Nas palavras de Miriam Nobre (2014), a agroecologia deve ser pensada em duas lógicas diferenciadas:

[...] a "naturalização" e a "desnaturalização". Se na agroecologia estimulamos a "naturalização" das práticas agrícolas, através da aplicação dos princípios ecológicos na agricultura, no campo das relações sociais de gênero, o que se busca é a "desnaturalização" de atribuições conferidas ao feminino e ao masculino. Portanto, se na agroecologia relacionamos o natural ao sadio e certo, nas relações de gênero não se pode considerar as relações tradicionais como naturais ou positivas (NOBRE, 2014, p. 5).

Isso significa dizer que para seguir com sua elaboração teórica pautada na ideia de que a “sobrevivência das pessoas não deve estar submetida à lógica do capital”, como afirma Caporal (2004). Faz-se necessário incorporar o debate feminista, já que se compreende que o capital não se sustenta sem o patriarcado e sem a divisão sexual do trabalho, a agroecologia necessita da economia feminista e de sua elaboração crítica. Para que as pessoas possam viver sem a imposição do mercado é preciso desnaturalizar as relações hierárquicas entre homens e mulheres.

No entanto, o androcentrismo da elaboração agroecológica como ciência impede a aceitação de rupturas ou acréscimos conceituais das elaborações feministas. Diferente do que se passou em outras áreas mais permeáveis e mais flexíveis como as ciências sociais, as novas propostas e novos aportes trazidos pela economia feminista não incidiram sobre o corpo central da análise agroecológica. Um exemplo disso foi a construção do Congresso Brasileiro de Agroecologia realizado em outubro de 2017, em Brasília/DF. Na ocasião, as feministas tiveram de construir uma estratégia paralela ao núcleo central da

organização do congresso para que as mulheres fossem inseridas no centro do debate com suas contribuições.

Paradoxalmente ao que se passa no corpo central de análise, a agroecologia no Brasil é um campo em que encontramos um amplo leque de mulheres envolvidas: na prática milenar, advinda dos conhecimentos dos indígenas e camponeses; na assessoria técnica; nos movimentos e articulações da agroecologia e na academia. No entanto, entre as razões da não inclusão dos novos aportes, está o claro domínio, exclusivo e excludente, da análise da agroecologia continuar sob as rédeas masculinas. No CBA, caso citado no parágrafo anterior, o argumento utilizado para a não inclusão da análise feminista na história da agroecologia foi a inexistência de mulheres capazes de construir o histórico desse campo de conhecimento e até mesmo que os aportes feministas não são constitutivos da agroecologia.

Um segundo eixo da crítica feita ao corpo central de análise da agroecologia é a própria definição do que ela é. Uma visão de arcabouço técnico e troca da matriz produtiva que inaugura um novo sistema de produção de visão unilateral para um mercado ou para esfera produtiva, com uma nova proposta de mercado incluso, é ainda uma visão limitada e excludente, pois não incorpora o trabalho não monetário das mulheres e de outras experiências de batalhas dos movimentos sociais, como a luta pelo fim do patriarcado imbricado nas disputas dos territórios.

Se a atividade básica para a sustentação da vida humana e para reprodução de todas as espécies, inclusive a da humanidade, como o trabalho doméstico e do cuidado, está de fora do corpo central de análise, como a agroecologia pode se colocar como um sistema que busca assegurar a vida digna das pessoas? A verdade é que, parafraseado Carrasco (2009), a cegueira analítica decorrente desse enfoque androcêntrico e excludente não deixa que a figura masculina, para a autora, o homo economicus, seja vista como completamente dependente das mulheres em tudo que se refere às atividades do cuidado, sem as quais os homens sequer existiriam.

Ao não considerar a dimensão do cuidado, o corpo central de análise da agroecologia impede a construção de respostas às problemáticas suscitadas pelas experiências da economia feminista e pelo cotidiano das mulheres que fazem a agroecologia no Brasil.

Do ponto de vista da ecologia política apresentada por Silva Federici (2014), a agroecologia também deve aportar a ideias dos comuns23 em seu

arcabouço teórico, de forma a fugir da ideia de um estilo de preservação dos bens comuns alicerçado pelos organismos internacionais. No último período, a ONU, o Banco Mundial e demais instituições internacionais aprenderam a recuperar o comum como uma tendência funcional ao mercado e a serviço do capital.

Para não viver em um mundo sem acesso aos mares, às árvores, aos animais e nem aos semelhantes, a não ser por meio do nexo econômico, a agroecologia não deve perceber os comuns como no modelo revolucionário estatizador, muito menos como tentativa neoliberal de subordinar toda a vida à lógica do mercado. A agroecologia deve desafiar-se a construir sua proposta “de viver e produzir fora dos moldes capitalistas e de experiências reais do socialismo estatizador” (FEDERICI, 2014, p. 146).

Nesse sentido, Federici (2014) afirma que os comuns percorreram história da luta de classes e que a luta pelo comum segue cotidiana, o tempo todo no mundo. As mulheres e homens que constroem agroecologia na Chapada do Apodi/RN mantêm uma luta constante para preservar suas águas, as terras e a biodiversidade de seu território, por exemplo. As mulheres de Tibau/RN lutam para preservar suas zonas de pesca e mangues cobiçados pela pesca industrial e para não serem desapropriadas de suas terras por empresas eólicas, as chamadas energias limpas, propagadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ODS, da ONU. De um modo mais geral, a agroecologia tem elaborado e atuado de forma tímida nas lutas cotidianas das mulheres e homens do campo e das águas. Muitas vezes essas mulheres e homens estão dispersos e sem unificação na defesa dos comuns.

23 A ideia de comuns defendida por Silvia Federici pode ser resumida em um dos trechos de seus

inscritos: “A ideia de o comum e os comuns, nesse contexto, proporcionou uma alternativa lógica e histórica ao binômio Estado e propriedade privada, Estado e mercado, permitindo-nos rechaçar a ficção de que são âmbitos mutuamente excludentes e de que somente existiria escolha entre eles, em relação às nossas possibilidades políticas. Também cumpriu uma função ideológica, como conceito unificador prefigurativo da sociedade cooperativa que a esquerda radical luta para construir. No entanto, existem ambiguidades e diferenças significativas nas interpretações dadas a esse conceito, que precisa ser esclarecido se quisermos que o princípio do comum se traduza em um projeto político coerente (FEDERICI, 2014, p. 146).

O papel da agroecologia seria fundamental para que essas lutas fossem compreendidas em um todo e, assim, capazes de proporcionar uma base para um novo modelo de produção e de bem viver.

Ainda no sentido da exploração da natureza e dos comuns, Federici (2014) defende que é possível perceber o quão erroneamente as mulheres estão designadas como comum território de apropriação coletiva dos homens, como uma fonte de riqueza e serviços colocados à disposição da figura masculina. Logo, assim como os capitalistas se apropriam da natureza, os homens se apropriam do trabalho monetário e não monetário das mulheres. Essa compreensão é fundamental para a construção da agroecologia, pois, se há exploração dos homens sobre as mulheres em experiências agroecológicas, essas experiências são inconsistentes em seus princípios que alegam a busca do bem viver das pessoas e preservação dos ecossistemas. Não há comum possível baseado na reprodução do sofrimento dos outros. Como a agroecologia é possível sob a apropriação do trabalho das mulheres?

Por último e, em conexão com as demais críticas, entende-se que insistir na ideia de centrar as análises agroecológicas na unidade familiar sem perceber que no seu interior existem conflitos de interesses permeados pela divisão sexual do trabalho e por conflito de geração incorre no erro de simplificar e estereotipar a vida das mulheres rurais como, essencialmente, esposas e mães, nunca como sujeitos políticos da agroecologia. Essa simplificação fortalece a figura masculina como protagonista legítimo da unidade familiar e, por conseguinte, do fazer agroecológico desencadeando, assim, um conjunto de consequências que dificultam a superação da lacuna teórica metodológica ainda existente no campo de conhecimento da agroecologia.

Após o debate dos aportes conceituais, faz-se necessário o fazer ver as práticas das mulheres e do feminismo para a agroecologia nas dimensões de experiências concretas, construções teóricas e de movimento social.

3.7 PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS, CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO E