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3 FEMINISMO E AGROECOLOGIA: UMA LEITURA A PARTIR DAS MULHERES

3.7 PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS, CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO E

A seguir, explicita-se a crítica analítica à agroecologia em três dimensões: as práticas agroecológicas construídas pelas mulheres rurais são pouco reconhecidas; os aportes construídos pelas mulheres no campo do feminismo não são integrados na construção do saber agroecológico; e a organização social das mulheres precisa estar em constante disputa para incidir sobre o movimento da agroecologia.

Primeiramente, no que tange às práticas agroecológicas das mulheres rurais, é necessário tornar visível e valorizar sua contribuição econômica e social à agroecologia. Das contribuições práticas atribuídas às mulheres, pode-se citar a domesticação de espécies e a seleção de variedades e preservação da biodiversidade nos quintais. E isso traz o questionamento à assessoria técnica e saberes acadêmicos do RN, por exemplo, sobre o porquê de nas experiências de bancos de sementes, redes de troca e pesquisas sociais, as mulheres rurais quase nunca participarem.

Com atenção às experiências do Semiárido, podem-se citar três exemplos de aprendizados construídos pelas mulheres rurais que englobam o paradigma de convivência: o acesso à água, seja na captação de chuvas, seja no reuso; a produção de alimentos e a soberania alimentar nos aspectos da produção e na criação de animais e, por último, no tocante da saúde como ausência de doença. Com seus conhecimentos, as mulheres rurais têm realizado tarefas fundamentais para o autoconsumo familiar e para a permanência das famílias no campo. O cultivo, seleção e preservação das sementes e das plantas nos quintais conservam espécies frutíferas resistentes ao clima, como cajaraneira, imbuzeiro, goiabeira, cajueiro e muitas outras. A criação de pequenos animais, como galinhas, bodes e ovelhas amplia a capacidade de alimentação familiar e permite uma alimentação enriquecida de proteínas. Dantas (2010) cita como exemplo a experiência de mulheres da Paraíba no polo da Borborema e sua prática de cultivar plantas frutíferas e a criação de animas “ao redor de casa”, as mulheres de Pernambuco, no Sertão do Pajeú, com questão da energia doméstica através do fogão agroecológico, as agroflorestas que revitalizam a caatinga, e os cultivos nos quintais. Com essas experiências, além de construir sua produção coletiva para fortalecer a auto-organização das mulheres e o princípio agroecológico, trabalha-se na perspectiva de preservação da flora, de

seus quintais e fortalece seu aprendizado secular no enriquecimento da alimentação da família e da biodiversidade.

Dantas (2010) afirma que as mulheres do Semiárido também acumulam saberes na manutenção de plantas nativas para preservação da saúde. Os conhecimentos transmitidos e socializados pelo saber popular constroem o que se chama de medicina alternativa: casca de romã é antibiótico para curar inflamação das diversas ordens; vargem de juá, casca da aroeira, do cajueiro e da quixabeira curam doenças uterinas; muçambê é regulador intestinal. Sejam nas experiências das mulheres do Sertão do Pajeú/PE ou na experiência coletiva da organização e produção das mulheres no Oeste do Rio Grande do Norte, é comum nas atividades de agroecologia as mulheres trocarem saberes medicinais advindos da vegetação nativa do Semiárido ou da plantação dos seus quintais.

Há também o exemplo do projeto “Água Viva” no RN, e como as experiências do Ceará, que demonstram a construção do saber das mulheres no reuso de águas cinzas. Assim, seja na garantia de alimentos saudáveis para a família através de seus quintais, seja na preservação da saúde através das plantas nativas e medicinais, ou até mesmo da captação de água de chuva e construção de uma política de reuso de água, as mulheres têm demonstrado que é possível conviver com o Semiárido, construir a soberania alimentar e a autonomia das mulheres, preservando a cultura alimentar, o jeito de plantar e a forma de viver em sociedade, sem coronelismo, sem patriarcado e sem imposição do mercado na alimentação.

A construção do saber nessas três esferas: alimentação, água e saúde são exemplos de conhecimento que as mulheres rurais aportam a partir de suas experiências para o campo de conhecimento agroecológico.

O segundo aporte crítico refere-se à elaboração e contribuição teórica para o marco conceitual e metodológico da agroecologia apoiado em Altieri (2009), Sevilla (1999) e Caporal (2004). A mais importante elaboração é sobre a superação da dicotomia entre produção e reprodução e o rompimento entre as fronteiras tradicionais de naturalização para todas as esferas da agroecologia. As fronteiras tradicionais de naturalização restringem o conhecimento agroecológico à mudança de matriz produtiva e tecnológica e não amplia o campo teórico da agroecologia para incorporar o trabalho doméstico e de

cuidados como parte fundamental dos processos de produção, reprodução da vida e, consequentemente, parte constitutiva da agroecologia. Incorporar o trabalho produtivo e reprodutivo como uma unidade constitutiva da agroecologia é completar a lacuna existente no termo de sustentabilidade considerada pelo campo teórico com a função de conciliar as atividades agrícolas e a manutenção das características ecológicas do ambiente, proporcionando meios de vidas dignas para as pessoas envolvidas.

Aqui se acrescenta considerar a produção e reprodução como uma unidade analítica e de prática social. Só assim a agroecologia amplia-se para considerar o marco da sustentabilidade da vida elaborada pela economia feminista. A sustentabilidade requer uma relação de harmonia entre humanidade e natureza e mulheres e homens, é o que diz Carrasco (2008). Sem a igualdade entre mulheres e homens, é impraticável falar de sustentabilidade.

Neste sentido, como defende Moreira (2017), centrar o objetivo da agroecologia na vida humana e na sustentabilidade da vida significa fazer visível, atribuir valor social e reconhecimento ao trabalho de cuidados; recuperar as experiência das mulheres, sem as quais não seriam possíveis nem a vida e nem a pratica agroecológica e afirmar que não basta substituir a matriz tecnológica, os venenos e adubos químicos por insumos agroecológicos ou orgânicos para produzir alimentos livres de venenos com fibras saudáveis, mas que é preciso transformar o modelo, as relações entre mulheres e homens ressignificando as conexões entre campo e cidade para a construção de um bem viver.

A terceira contribuição crítica aqui elencada é no campo da organização social e construção do movimento de agroecologia no Brasil. As mulheres que fazem agroecologia também têm acumulado conhecimento na construção de um campo político sobre feminismo e agroecologia firmando a necessidade de espaços autônomos em que as mulheres possam compartilhar suas experiências, reelaborá-las, e encontrar formas de fortalecer sua autonomia.

O GT de gênero da ANA, fundado em 2004, traz consigo uma experiência de debates e reflexões sobre a construção da agroecologia com aportes feministas. Em sua gênese, apoiado e assessorado pela Sempre Viva Organização Feminista (SOF), se constitui hoje como espaço aglutinador de auto-organização das mulheres que constroem agroecologia no Brasil. Além de atuar para dentro das ONG’s, construiu interlocuções externas, fortaleceu a

presença de agricultoras em espaços políticos como a Marcha das Margaridas e a Marcha Mundial das Mulheres.

A partir de 2004, Nobre (2014) afirma que o GT de gênero da ANA avançou nas inter-relações entre feminismo e agroecologia e se construiu com uma dupla estratégia: o funcionamento de um GT Gênero como um espaço de debater e construir a atuação das mulheres na ANA, focado em temáticas definidas pela própria organização como práticas de construção do conhecimento, formas de financiamento, segurança alimentar, manejo da biodiversidade; e, ao mesmo tempo, consolidando-se como sujeito político capaz de construir incidência nas políticas públicas de agroecologia para as mulheres e de manter articulações políticas com campos do movimento feminista, como a rede economia e feminismo, MMM, GT de mulheres do MST, Marcha das Margaridas, MMC, entre outros movimentos feministas.

A dupla estratégia de atuação com o grupo de mulheres para interferir nos rumos e temas da ANA e de interagir com outras articulações mais extensas que a própria ANA, decorre do proposito de valorizar as iniciativas realizadas pelas mulheres e, para isto, ampliar a noção do que são práticas agroecológicas estendendo seu raio de atuação e articulação política. Esta dupla estratégia permite as mulheres possam “realizar outras coisas. No dizer de uma agricultora participante do GT Gênero, permitir às mulheres sair dos quintais” (NOBRE, 2014, p.9), o que permite que as mulheres construam uma visão do que seja agroecologia, em contraposição a uma visão produtivista do conceito.

O caminho coletivo traçado pelo GT de mulheres da ANA com o sujeito feminista ao qual se articula, recusa uma visão cientificista e tecnicista, ainda muito presente no mundo acadêmico e na prática cotidiana de parte das organizações que resumem a agroecologia à transição do modelo de produção. Para as mulheres articuladas no movimento de agroecologia no Brasil, o feminismo e a agroecologia fazem parte da construção de um mesmo projeto de transformação da sociedade que garanta a soberania dos povos sobre seus territórios e promova a produção e o consumo para o bem viver.

A separação em três dimensões de contribuição do feminismo para a agroecologia é para mero entendimento e não segue uma hierarquia entre elas. A construção do conhecimento e o aporte teórico são forjados na construção dos

movimentos, assim como o saber prático das mulheres rurais é potencializado pela imbricação existente entre as demais contribuições.

Nesse sentido, pode-se chegar ao entendimento de que a construção da agroecologia feita pelas mulheres nasce da experiência das mulheres rurais e da auto-organização e torna-se, a partir da prática agroecológica, uma experiência feminista de auto-organização em um movimento espiral e dialético. Quando isso não acontece e as mulheres não constroem sua autonomia, a prática da agroecologia torna-se mais distante pelo poder dos homens sobre o domínio da produção. Um exemplo balizador do poder masculino, dado pelas próprias mulheres, é de quando em sua plantação agroecológica os homens ameaçam colocar veneno nas plantas enquanto elas forem para as reuniões e formações feministas. Nesse exemplo, ocorre a clara unificação do patriarcado com o modelo de produção agrícola convencional para derrotar a agroecologia.

Desse modo, entende-se que o processo do corpo conceitual e metodológico da agroecologia deve construir flexibilidade para buscar outros aportes além dos estudos camponês/indígenas, da junção entre as áreas da agronomia/ecologia e da vertente sociologia. A economia feminista e a ecologia política e feminista têm aportes significativos que contribuem para uma construção prática teórica desse campo de produção científica e atuação política, já que em qualquer estudo ou práticas políticas envolvendo a agroecologia as mulheres estão presentes.

A teoria e prática social que conseguem compreender as mulheres como sujeito histórico é o feminismo, mesmo quando a mulher está considerada como membro da família, mãe e esposa, é a economia feminista que tem ferramenta teórica metodológica mais apropriada para compreender e atuar nessa realidade social.

Por fim, se majoritariamente são as mulheres que praticam a agroecologia no Brasil e esse campo é aglutinador da auto-organização das mulheres e da construção do feminismo tendo o GT de mulheres da ANA como sujeito político condutor através das suas articulações políticas feministas, e se os aportes teóricos metodológicos do feminismo são fundamentais para uma visão ampla da construção da agroecologia, logo, é correto afirmar que sem feminismo não há agroecologia.

O debate sobre agroecologia e feminismo segue no capítulo seguinte, agora a partir da condução do sujeito político feminista no campo. O capítulo quatro é sobre a agenda do movimento de mulheres rurais, e ao mesmo tempo como se articula com os demais movimentos de mulheres como a MMM e o GT de Mulheres da ANA. Antes, analisa a relação do sujeito político feminista do campo com o Estado para elaboração das políticas públicas, especificamente o ATER Mulheres. Para isso, apresenta o histórico da política de assistência técnica e extensão e como as mulheres foram incorporadas ao longo de sua implementação.

4 O FEMINISMO EM CAMPO: UMA LEITURA A PARTIR DA CONSTRUÇÃO