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Feminismo Negro nas Américas: diáspora e panafricanismo atualizado

Capítulo 4. “SOPROS”: Novas vozes e estéticas políticas na emergência do Feminismo Negro

4.2. Feminismo Negro nas Américas: diáspora e panafricanismo atualizado

O período que se desenvolveu ao longo da década de 1990 demarcou o espaço de onde ecoam as vozes e estéticas diaspóricas desenvolvidas por lideranças femininas e feministas de uma diversidade de organizações civis – religiosas, autônomas, sindicais, acadêmicas, culturais – de várias partes da América Latina e Caribe, as quais têm redimensionado o ativismo e o discurso do Movimento Negro na região. A partir desse período a multiplicação de redes de movimentos sociais e organizações de mulheres negras passou a constituir um novo contexto de ação política, internacionalizado e transnacionalizado, liderado e protagonizado por mulheres afrodescendentes.

Essa multiplicação ocorreu, em grande parte, devido à organização dessas mulheres para participarem das conferências mundiais convocadas pela ONU durante a década de 1990, cuja qual permitiu ampliar o debate sobre a questão racial e o fortalecimento da abordagem da interseção de gênero, etnia/raça e classe, em nível

111 nacional e internacional113. Além disso, sensibilizaram muitos movimentos sociais, governos, e inclusive a ONU, para a inclusão da perspectiva anti-racista e de respeito à diversidade em todos os seus temas.

Ao participarem ativamente de conferências internacionais importantes114 como a “Internacional sobre População e Desenvolvimento”, realizada no Cairo, em 1994; a Conferência de Direitos Humanos115, em Viena; e a preparação da “Conferência de Beijing”116

, e a de Durban, em 2001, a atuação dessas mulheres, por meio de suas organizações e redes, só se expandiu.

De acordo com Ribeiro (2008, p. 991),

Na região da América Latina e do Caribe, desde os idos anos 1970, foi realizado um total de 10 encontros feministas latino-americanos e do Caribe, e no Brasil 14 Encontros Nacionais Feministas – ENF. Por parte do Movimento Negro, em 2000, foi criada a Aliança de Líderes do Movimento de Afrodescendentes da América Latina e do Caribe, e no Brasil foram realizados dois Encontros Nacionais de Entidades Negras, em 1991 e 2001. Por parte das mulheres negras, foi criada a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da Diáspora, e no Brasil foram realizados três Encontros Nacionais de Mulheres Negras – ENMN, em 1988, 1992 e 2001.

Segundo o Relatório do PNUD (2009), mais de 50% das organizações que das 161 existentes na região iniciaram as suas atividades (legalmente constituídas) na década de 2000. Na década de 1990, 35%, e apenas 10% antes de 1990. Desta forma aprecia-se que o processo organizativo tem um auge importante na década de 1990 em comparação com as décadas anteriores, grande parte resultado da preparação para as Conferências Internacionais, como aponta o gráfico a seguir:

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Foi nesse contexto, por exemplo, que emergiram organizações importantes como a Red de Mujeres Afrocaribeñas y Afrolatinoamericanas, a Rede Afroamérica XXI e a Iniciativa Global Afro-latina y Caribenha, além do sujeito dessa pesquisa, a Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diaspora. (CARNEIRO, 2001)

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Conferências mundiais que, inclusive, se tornaram espaços importantes no processo de reorganização do mundo após a queda do muro de Berlim e constituem hoje importantes fóruns de recomendações de políticas públicas para o mundo todo.

115 A Conferência de Viena assumiu que os direitos da mulher são direitos humanos, consubstanciando-os na Declaração e no Programa de Ação de Viena. Nesse documento foi dado grande destaque para a sua plena participação, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional, e para a erradicação de todas as formas de discriminação sexual, consideradas como objetivos prioritários da comunidade internacional. Foi nessa Conferência que se estabeleceu o compromisso sugerido pelo governo brasileiro da realização de uma conferência mundial sobre racismo e outra sobre imigração, para antes do ano 2000. (CARNEIRO, 2003)

116 A Conferência de Beijing, segundo Sueli Carneiro (Ibid.), diferentemente da de Viena, constituiu o espaço onde se fez referência explícita à opressão sofrida por um contingente significativo de mulheres em função da sua origem étnica ou racial. Nessa conferência também se gestou um conjunto de ações a fim de medir o crescimento da temática racial no movimento de mulheres no mundo.

112 Figura 2 - Datas de Criação das Organizações afrodescendentes na América Latina e Caribe

Fonte: Relatório do PNUD – Atualidade Afrodescendente na Ibero-América (2009).

Desse modo, o que se observa é que o movimento feminista internacional, com grande destaque para a atuação das organizações de mulheres afrodescendentes, opera nesses fóruns como um lobby muito eficiente entre os segmentos discriminados do mundo. Isso explicaria, segundo Carneiro (2003), o avanço da Conferência de Direitos Humanos de Viena em relação às questões da mulher, assim como os avanços registrados na Conferência do Cairo e na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), realizada no Rio de Janeiro.

De acordo com Ribeiro (2008, p. 996), o ápice dessa organização na região das Américas é alcançado com os resultados provenientes da Conferência Cidadã (sociedade civil) e da Conferência de Santiago (oficial) que redundaram na Declaração e Plano de Ação de Santiago, preparatórias117 que antecederam e incidiram na elaboração da Declaração e Programa de Ação de Durban.

Nesse documento global:

...foi apontada a necessidade de superação: a) das múltiplas formas de discriminação que podem afetar mais diretamente as mulheres; b) das desigualdades geradas pelas condições de raça, cor, linguagem ou origem nacional ou étnica; c) dos motivos conexos, como o sexo, o idioma, a religião, as opiniões políticas ou de outra índole; e d) das barreiras por origem social, situação econômica, nascimento ou outra

117 As preparatórias para a Conferência de Durban constituíram-se também como marcos históricos muito importantes. Destacam-se entre elas as conferências regionais preparatórias – europeia, de Estrasburgo, entre 11 a 13 de outubro de 2000, a das Américas, de Santiago, no período de 5 a 7 de dezembro de 2000, a africana, de Dakar, no período de 22 a 24 de janeiro de 2001 e a asiática de Teerã, no período de 19 a 21 de fevereiro de 2001. O Fórum Mundial das Organizações Não-Governamentais, que ocorreu em Durban no período de 28 de agosto a três de setembro de 2001, contando com aproximadamente 7.000 representantes de cerca de 3.000 ONGs também é outro evento a ser destacado (RIBEIRO, 2008).

113 condição. Foram apresentadas, também, formulações voltadas às crianças e aos jovens, em especial às meninas por sua situação de vulnerabilidade, assim como a reafirmação sobre o direito dos povos vitimados à reparação. (RIBEIRO, Ibid.)

No processo pós-Durban o destaque é para a criação das instâncias voltadas ao tratamento das questões raciais e de discriminação racial e étnica em 16 países das Américas – Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Peru, Uruguai e Venezuela.

Para Ribeiro (id), a criação dessas instâncias sedimentaram as proposições elaboradas pela sociedade civil em relação aos governos, no sentido de pressionar os Estados a avançarem, de maneira mais decisiva, na implementação dos planos de ação, envolvendo os integrantes da sociedade civil, as instituições nacionais e internacionais.

A partir disso, concomitantemente e pós-Durban, inúmeros encontros latino- americanos e afrocaribenhos ocorreram na região, os quais promoveram novas modalidades de ativismo transfronteiras e a formação de numerosas redes intra- regionais que tratam de questões e identidades específicas, assim como coalizões de advocacy (ou promoção e defesa de direitos) relacionadas a uma série de questões como saúde e direitos sexuais e reprodutivos, representação política e violência contra as mulheres.

Outro aspecto a ser ressaltado com relação ao pós-Durban é a importância atribuída à produção de dados desagregados por raça e etnia, com vistas a conhecer quantos são e em que condições vivem os afrodescendentes latino-americanos e caribenhos, com o objetivo de auxiliar os governos na elaboração de políticas públicas de erradicação do racismo.

Essa diretriz, que propõe a construção de uma agenda nos Estados que assegure o exercício e cumprimento de direitos por meio de ações que minimizem e enfrentem as disparidades raciais e étnicas, foi gestada por 176 delegações da sociedade civil e de governos e integra o Plano de Ação de Durban. Como resultado desse processo, vimos se intensificar a mobilização da sociedade civil afrodescendente da América Latina e Caribe em torno da rodada dos censos de 2010-2012, principalmente a partir de junho de 2008, com a realização da Conferência de Revisão de Durban, convocada pelos governos do Brasil e do Chile.

A partir de outubro do mesmo ano, organizações de mulheres afrodescendentes e indígenas da região elaboraram um documento com 12 propostas de ação para

114 governos, sociedade civil e cooperação internacional em favor da visibilidade estatística, o qual foi incorporado às resoluções do “IX Encontro Internacional de Estatísticas de Gênero”, organizado pela CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), pela INMUJERES (Instituto Nacional de Mulheres), pela UNIFEM- ONU Mulheres e pela INEGI (Instituto Nacional de Estatística e Geografia do México).

Em novembro de 2008, essa intenção foi reforçada com a Declaração de Santiago, no Seminário-Oficina Censo 2010, e com a inclusão do enfoque étnico rumo a uma construção participativa com povos indígenas e afrodescendentes da América Latina, organizado pela CEPAL, UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas, com apoio da OPAS (Organização Panamericana de Saúde), UNIFEM-ONU Mulheres e FI (Fundo de Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe).

Em junho de 2009, o Seminário Internacional sobre “Dados Desagregados de Raça e Etnia para Afrodescendentes”, organizado pela Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - Brasil) com apoio do UNIFEM-ONU Mulheres, entre outras instituições, teve como marco a criação do grupo de trabalho “Afrodescendentes das Américas Censos de 2010”, composto por ativistas do movimento negro e especialistas em estatística. A intenção da realização dessa rodada foi a de estimular a consciência racial e étnica, ou seja, a afirmação da negritude, valorizando e fortalecendo as imagens e identidades negras, a fim de estimular o desenvolvimento de políticas públicas inclusivas e plurais.

Importante também ressaltar durante esse período, o programa regional “Gênero, Raça, Etnia e Pobreza”, que tem o compromisso de incentivar o desenvolvimento socioeconômico das mulheres negras e indígenas, tomando como um de seus eixos estratégicos o apoio às ações de incidência política para inclusão da variável de raça e etnia nos censos de 2010-2012 na América Latina, a fim de promover a visibilidade estatística dos afrodescendentes como fator determinante para a redução do racismo e das desigualdades socioeconômicas. Essa questão será apresentada no capítulo 6 dessa tese.

Desse modo, cada vez mais unidas em torno das experiências que lhes são comuns, a da situação de diáspora e a experiência do racismo, as mulheres afrodescendentes das Américas passaram a dar visibilidade ao caráter mundial e transnacional das situações de conflito, invisibilidade e exclusão vivenciadas por todas

115 elas, construindo novos caminhos na luta pela igualdade e justiça, assim como a consciência da sua inserção em fronteiras cada vez mais fluídas.

Essas interconexões regionais periódicas vêm ajudando, por sua vez, a reorientar as práticas do movimento, os discursos culturais e até as políticas estatais, à medida que as participantes aprendem com a experiência de suas semelhantes de outros países da região. Geralmente essas participantes têm se voltado para seus países inspiradas pelas novas estratégias organizacionais e pelas novas formas de enquadrar e encaminhar suas questões e reivindicações, traduzindo e re-adaptando discursos e estratégias em debate nesses espaços.

É importante ainda destacar que o Feminismo Negro pós-década de 1990, atualizou o panafricanismo de vertente global e a consciência da diáspora em seu sentido abrangente, ao recriar elos de solidariedade internacional. Com os avanços tecnológicos cada vez mais velozes, vemos se configurar um novo fenômeno pan- africano, não mais pautado pela ideia de retorno a “Terra-Mãe”, ou para uma essência racial, que gesta uma união sinergética entre várias nações afrodiaspóricas, identificações, agências e vivências culturais.

Ou seja, essas organizações e redes de movimentos sociais, embora inseridos em diferentes lugares e contextos sociais pelo mundo, ao estarem ligadas pelas experiências em comum que detém em termos de opressão e exclusão, constituem, por sua vez, um amplo movimento transnacional.

4.3. Rizomas e Fluxos: as conferências internacionais e as mulheres