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Pensando o racismo nas Américas: a ideia de Interseção

CAPÍTULO 5. “VOZES” Red de mujeres afrolatinoamericanas, afrocaribeñas y de la diaspora:

5.1. O nascimento da RMAAD: Quem são essas mulheres?

5.1.4. Pensando o racismo nas Américas: a ideia de Interseção

Observamos em vários discursos desenvolvidos pela RMAAD, que está havendo a incorporação do termo “afrodescendente”, em detrimento do termo “negro/negra”, este último percebido como uma categoria essencializante que serviu de instrumento para a dominação colonial.

Ainda que no Brasil essa incorporação não seja tão forte, percebemos que a incorporação do termo é resultado das múltiplas conexões estabelecidas entre as várias organizações da região em questão, principalmente da conexão entre latinoamericanos e caribenhos. Essa incorporação se deve aos países do Caribe, para os quais o termo “negro” refere-se exclusivamente a cor, excludente, portanto de outras tantas múltiplas características que pressupõe o que é ser “negro”, considerando toda a amplitude da diáspora africana.

154 De acordo com Ferreira (2002), foi a partir da III Conferência Mundial Contra o Racismo que se viu os movimentos e organizações sociais negros da América Latina e do Caribe lançarem o uso do termo afrodescendente na linguagem das organizações sociais e na dos agentes de governo e agências multilaterais. Nesse contexto, o termo passou a substituir o termo negro, incorporando identificações mais amplas e múltiplas na “... tentativa de especificar a diferenciação e a identidade de um modo que possibilite pensar a questão da comunidade racial fora de referenciais binários restritivos – particularmente aqueles que contrapõem essencialismo e pluralismo”. (MOREIRAS, 2001, p. 239)

A RMAAD, partilhando dessa perspectiva, e levando em consideração as singularidades nacionais e locais com relação ao sentido de ser afrodescedente, articula- as com categorias como gênero, classe e etnicidade, histórias locais, regionais e nacionais. Reforça também a ideia de que os afrodescendentes de todos os países latino- americanos e caribenhos compartilham os mesmos problemas, as mesmas questões sociais, identitárias, culturais, que muito mais os aproximam do que os afastam:

Somos afrodescendientes, término que reconoce nuestra ancestría, somos descendientes de las personas de origen africano que fueron traídas esclavizadas a América Latina y el Caribe. Somos la descendencia de las personas que llegaron privadas de libertad, personas con cultura, tradiciones, lenguajes, costumbres y sueños. De esas personas descendemos, no somos la descendencia de la esclavitud, esa herencia no es nuestra, le pertenece a los esclavistas y a la descendencia de ellos(as); la esclavitud es la herencia de los que comerciaron con el dolor humano y trataron como mercancía a seres humanos, creyeron que rompiéndoles el cuerpo le doblegarían el alma. Pero no lo lograron porque a América Latina y al Caribe llegaron seres humanos, personas con historias personales y colectivas, llegaron personas. Aunque ante la mirada de cada capitán y ante la mirada de cada comprador de esclavos(as) eran mercancía, a América Latina y al Caribe llegaron personas, personas que fueron esclavizadas, pero antes que cualquier otra cosa, lo único que les definía era que eran personas, seres humanos a quienes se les negaba la humanidad misma. (Declaración de la red de mujeres afrolatinoamericanas, afrocaribeña y de la diáspora, 2010, p. 07)

La herencia que reclamamos es la historia de todos los pueblos africanos que llegaron a América, historia que reconocemos al nombrar de dónde descendemos, por eso no somos descendientes de esclavos(as), somos descendientes de personas africanas. Cuando se pretende mantener a los y las afrodescendientes sólo como sinónimo de descendientes de esclavos(as) entonces surge como exigencia política, económica, social y cultural el tema de las reparaciones por el daño causado a la libertad de nuestros ancestros(as), por los crímenes

155 en su contra y por la exclusión social y política resultante (RIVERA LASSEN, 2009).

Essa é uma questão que contribui para reforçar as conexões em rede, já que se torna:

...muito mais fácil um afrodescendente brasileiro conversar com um afrodescendente colombiano do que ambos conversarem com um africano. O diálogo, as aspirações são totalmente diferentes. Com isso, eles se descobriram e se reconhecem como irmãos, pois entre eles existem os mesmos questionamentos. É possível, realmente, que um brasileiro venha a ser “irmão” de um colombiano, porque os navios aportavam aqui e lá. Isso é como uma “descoberta” recente para os afrodescendentes latino-americanos, por isso, a existência desta agenda afro-latina e a existência de um diálogo construtivo entre os afro-latino-americanos. (MOUTERDE, 2011, p. 52)

Desse modo, a Rede, assumindo a perspectiva da experiência comum da colonialidade e das consequências dela sobre os povos africanos e afrodescendentes nas Américas, passou a olhar para as condições desses povos pensando os problemas gerados pelo racismo, pela discriminação, marginalização e exclusão, não apenas de um ponto de vista de classe, ou de raça, mas pela interseção entre as categorias gênero e raça/etnia.

Para a Rede, não basta apenas reconhecer a existência de normas e cânones hegemônicos nas mais diversas esferas da sociedade, mas sim, construir novas articulações sociais, políticas, culturais e econômicas. Para tanto, a interseção entre raça e gênero torna-se fundamental no atual contexto em que se encontram as lutas de combate do racismo. Por meio dessas interseções seria possível demonstrar, com maior evidência, a complexidade dos efeitos da discriminação, da exclusão e do racismo na vida concreta das pessoas.

Como as mulheres afrodescendentes são as maiores vítimas da discriminação e do racismo, já que partilham a dupla discriminação: de raça e de gênero, torna-se fundamental, para a Rede, o estabelecimento dessa interseção. A discriminação contra as mulheres é entendida como mais do que um agravante dos efeitos do racismo sobre os afrodescendentes, mas como a expressão de uma complexa teia de interseções que trazem, no seu bojo, exclusões das mais variadas formas:

La discriminación contra las mujeres, más que un agravante de los efectos del racismo hacia las afrodescendientes, es la expresión de una compleja telaraña de intersecciones que traen consigo exclusiones. En

156 esa telaraña estamos atrapadas si nos vemos como una mosca pegada en la misma y no como la araña que hábilmente vive en ella porque al final de cuentas es quien la va tejiendo. Al decir esto no estamos siquiera insinuando que la culpa de las exclusiones está en las manos de las personas excluidas. Llamamos la atención a la complicidad con las estructuras hegemónicas que se da al asumir las identidades como otredad, como lo extraño, como lo que no es normal. (Declaración de la red de mujeres afrolatinoamericanas, afrocaribeña y de la diáspora, 2010, p. 04)

Essa complexidade, na qual os afrodescendentes estão imersos, é concebida como uma teia que enreda e exclui as identidades que não são as identidades privilegiadas, que não são as identidades que gozam dos benefícios hegemônicos da normatividade social. Assim, o reconhecimento formal da dita igualdade, automaticamente situa a todos no mesmo espaço de oportunidades e direitos, o que, em contrapartida, desmobiliza a ação para a mudança desse contexto que reproduz a desigualdade. Nesse processo, as mulheres afrodescendentes e todas aos outras pessoas excluídas percebem sua teia como “uma casa estranha”, visto que suas identidades múltiplas são invisibilizadas.

Como essa multiplicidade é bastante complexa, a RMAAD precisou desenvolver e adotar uma abordagem sobre a questão das identificações partindo do pressuposto de que estas não dependem tão somente das pessoas em situação de exclusão. E mais, que categorias como a raça acabam por legitimar a crença de que alguns seres humanos são, per si, superiores a outros.

Para fins de ação, propostas e estratégias, a RMAAD prossegue fazendo uso da categoria raça, como uma construção social, sempre articulada com o conceito de racismo.

A Rede, nesse sentido, parte do pressuposto de que seu uso ainda é pertinente, desde que vista como um termo cultural que atua como forte marcador de hierarquia e superioridade. Afinal, essa categoria é explicativa da forma como a sociedade moderna se constituiu ao longo da história de escravização e colonialismo, bem como esclarece o lugar, ou “não lugar”, a que foram relegados os africanos e seus descendentes:

...“raza” como un término cultural, no biológico, que permite clasificaciones históricamente determinadas de los individuos de acuerdo a concepciones socioculturales. Como plantea Rodolfo Stavenhagen, la raza es una característica objetiva, como la lengua y la religión, que permite establecer distinciones étnicas, mientras que “la conciencia individual de pertenencia e identificación con el grupo (identidad)” sería un factor subjetivo. Sin embargo, este carácter objetivo no impide que la raza sea “una construcción social y cultural de las diferencias biológicas aparentes... La raza existe solamente en la medida en que las diferencias biológicas [específicamente las diferencias fenotípicas] adquieren significado en términos de los valores culturales y la acción social de una sociedad”. (CASTELLANOS, 2010)

157 Partindo desse pressuposto, o racismo é percebido como resultado da associação do que denominamos como raça, com conteúdos sociais, políticos, econômicos e culturais que vincula, aos atributos físicos, genéticos ou biológicos de um indivíduo ou grupo, características de tipo cultural ou moral.

Como uma percepção das relações sociais com alcance nos âmbitos econômico, social e político que se legitima e se perpetua por meio de recursos racistas que funcionam de maneira autônoma, a raça atua como uma categoria que não necessita de uma ação explícita para assegurar a discriminação e impor a internalização, como é o caso da educação. Por isso,

La discriminación étnico racial no puede ser entendida sin los factores estructurales e históricos de su conformación, así como sus vínculos con los procesos socioeconómicos y políticos que perpetúan la desigualdad y discriminación en el tiempo. Así, la esclavitud y la dominación colonial de los grupos afrodescendientes e indígenas son antecedentes que ayudan a entender en perspectiva histórica los procesos actuales de exclusión económica, política y social. (WIEVIORKA, M., 1992. In: Declaración de la red de mujeres afrolatinoamericanas, afrocaribeña y de la diáspora, 2010, p. 06). A ideia presente, portanto, é a de reconhecimento de múltiplas identificações conformando a “identidade” de ser das mulheres afrodescendentes. Identidade, portanto formada na interseção entre múltiplas identificações, pelo intercruzamento entre nacionalidade, raça, etnia, determinadas capacidades físicas ou sensoriais, orientação sexual, identidade de gênero, identidade geracional e qualquer outra identidade, “todas a la vez”.

Como se percebe, a RMAAD parte de uma metodologia transversal para ler as identidades propondo uma perspectiva holística que permite visualizar a riqueza da diversidade. Tal percepção é bastante defendida na justa medida em que, para a Rede, muitos países da região, mesmo reclamando oficialmente a alcunha de países multiétnicos e pluralistas, não a traduzem em inclusão social, econômica, cultural e política.

Para a Rede, se um Estado se intitula como multiétnico, então este deve explorar caminhos, formas novas de convivência, novas modalidades de articulação social, assumindo que soberania não é equivalente a hegemonia. Implica ainda a redefinição da inserção de cada grupo no interior dos marcos políticos estatais o que, por sua vez, pressupõe uma pluralidade de negociações possíveis, para além das formas tradicionais de inclusão cidadã.

158 ¿Qué beneficio representa para grupos y sectores sociales racialmente marginados una plataforma de derechos humanos que se implementa de forma segregada y que omite entrelazar a nivel normativo la muy entrelazada realidad de opresión y subordinación que se vive? ¿Cuán lejos pueden llegar garantías que mantienen en sus respectivos nichos las esferas políticas y aquellas económicas y sociales, o las visiones de no-discriminación e igualdad que no arranquen del reconocimiento de la desposesión histórica vivida por los grupos racialmente marginados y de la imperiosa necesidad de validar la diferencia? (BARTOLOMÈ, 2010)

Nessa outra perspectiva, a interseção entre categorias é convertida numa plataforma para o combate do racismo. A partir da criação de analogias sobre a relação existente entre os vários eixos de poder como as categorias raça, etnia, gênero ou classe social, a interseção passa a ser entendida como a “via” que dá forma às relações sociais, econômicas e políticas. Nessa “via” e “avenida”, onde acontecem processos dinâmicos de privação do poder, onde os sistemas frequentemente se solapam e se cruzam criando interseções complexas em lugares onde três ou mais eixos podem se encontrar, é que se localiza o campo de ação política da Rede. (CRENSHAW, 2001)

Desse modo, fica evidente a complexidade que assume a ideia de interseção assumida pela RMAAD no combate do racismo, que vai servir de base para suas proposições e ações políticas. O combate do racismo assume, portanto, o papel de desconstrutor das polaridades logocêntricas, assim como desmonta o próprio sistema de representações – daí a aposta na política de representações. Para tanto, reconhece-se e se assume a heterogeneidade e o descentramento do sujeito, buscando, por meio da proposição da interseção entre raça, classe, gênero e etnias, a différance múltipla (DERRIDA, 1991) no interior da diferença binária (branco/preto), cujas

...distinções e classificações binárias constituem o modo ocidental, logocêntrico de apreender o mundo e constituem a base das estruturas de dominação modernas. Criam, ainda, a ilusão de representações completas, totalizantes, que não deixam resíduos. A incompletude das representações encontra-se, contudo, assente na própria linguagem, visto que significantes e significados nunca se correspondem inteiramente. A différance remete ao excedente de sentido que não foi, nem pode ser significado e representado nas diferenciações binárias. Tal não deve sugerir um novo binarismo entre, de um lado, uma realidade completa anterior, como o ser anterior pré-lingüístico e, de outro, sua representação lingüística, parcial, reduzida. Não há uma realidade anterior ao discurso; a realidade social é construída pela linguagem e, nesse sentido, a différance só pode se constituir na órbita do discurso. A noção de différance rompe, precisamente, com a idéia da diferença pré-existente, ontológica, essencial, que pode ser apresentada e representada discursivamente. A différance constitui-se

159 no ato de sua manifestação, no âmbito da trama mesma de representações, diferenças e diferenciações. Também o sujeito se descentra. Ele se forma nas cadeias móveis de significação, a rigor é parte delas: não é anterior à linguagem, nem constitui uma entidade e uma identidade independente, tampouco é aquele que, como se poderia pensar, age sobre a différance, buscando preencher as “sobras” de sentido que ela expressa, (re)constituindo as totalidades. Não se trata de sujeitos inseridos numa estrutura, mas de cadeias de significações nas quais sujeitos e estruturas tem o status similar de sinais flutuantes que ganham e perdem sua significação – sempre incompleta – no jogo semântico da diferenciação. (COSTA, 2006a, p. 125)

É precisamente na articulação dessas diferenças – todas elas móveis, cambiantes, construídas no momento de sua manifestação discursiva – que o sujeito da resistência se constitui como “novas etnicidades”, definidas pelo reconhecimento da própria transitoriedade, contingência e heterogeneidade.