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O Feminismo Negro: a configuração de novas vozes e estéticas políticas

Capítulo 4. “SOPROS”: Novas vozes e estéticas políticas na emergência do Feminismo Negro

4.1. O Feminismo Negro: a configuração de novas vozes e estéticas políticas

As diferenças de gênero se tornaram extremamente importantes nessa operação antipolítica, porque elas são o signo mais proeminente da irresistível hierarquia natural

104 (...). A integridade da raça ou da nação, portanto, emerge como integridade da masculinidade.

(GILROY apud GUERREIRO)

O movimento de mulheres afrodescendentes nas Américas - que podemos considerar que teve seu início já no período colonial, quando as mesmas criaram estratégias de sobrevivência ao regime escravocrata e lideraram diversos movimentos de libertação do povo negro, como as rebeliões nas senzalas, os cuidados espirituais, as fugas, a formação dos quilombos, a compra de alforrias, o trabalho na cidade e a estruturação de suas famílias –, inaugurou um novo momento para o movimento negro e para o movimento feminista da região, em finais da década de 1970.

Nessa década, as mulheres negras que estavam inseridas em ambos os movimentos, encontraram dificuldades e barreiras para discutir as questões de gênero e raça, o que as levou a realizarem enfrentamentos constantes contra as ações machistas e igualitaristas/universalistas das lideranças dos dois movimentos. Ao encontrarem dificuldades para incluir sua pauta política, tanto no movimento feminista – liderado pelas mulheres brancas referenciadas no feminismo europeu, quanto no movimento negro, liderado por homens –, viram-se obrigadas a construir um novo caminho.

Em decorrência disso e com a intensificação do movimento feminista pela ampliação e reconhecimento dos direitos das mulheres ocorridos na segunda metade do século XX, as mulheres negras começaram a gestar uma nova perspectiva feminista que, mais a frente, foi denominada como Feminismo Negro. Um tipo de feminismo que se opôs à postura do movimento feminista hegemônico na sua dificuldade em reconhecer as diferenças intra-gênero, assim como o racismo que vinha se reproduzido implicitamente, por meio de inúmeras práticas racistas no seio do movimento.

De acordo com Gonzalez (2000), a postura de anular a existência da mulher negra como grupo social com identidade e necessidades bastante peculiares, foi algo muito forte dentro do movimento feminista, justamente porque as feministas brancas se negavam a incorporar as questões de “raça”, grande parte motivada pela cumplicidade delas com a dominação racial. Assim como as teorias patriarcais foram criadas para explicar a experiência do homem branco, heterossexual, burguês e ocidental, as feministas teóricas presumiram que os problemas definidos por elas, com base em suas experiências particulares, eram problemas que pertenciam à ordem do humano, no

105 sentido generalista, entendido como experiência única e igual para todas as mulheres105. Ou seja, o “lugar de partida” dessas feministas era o de mulheres brancas, ocidentais, burguesas e heterossexuais, que acabava reforçando um “não-lugar” para as mulheres negras dentro do movimento feminista.

Segundo Caldwell (2000), esse “lugar de partida” tornou a união entre as mulheres brancas e negras no movimento feminista algo superficial, na medida em que, na realidade concreta, mulheres negras e brancas ocupavam lugares sociais e culturais distintos, o que se tornou fonte de conflitos e divisões dentro do movimento. A constatação dessas diferenças internas culminou naquilo que Carneiro (2001) denominou como dupla militância, uma característica que vai fundamentar o Feminismo Negro.

Nessa dupla militância, as desigualdades de gênero passaram a ser concebidas pelas mulheres negras como um fator que não poderia mais obscurecer as desigualdades de raça e, muito menos, que as conquistas do movimento feminista privilegiassem somente as mulheres brancas. Nesse contexto, as ações de combate do racismo e do machismo perpretadas pela dupla militância passaram a demarcar novos espaços, mais decisivos e visíveis, tanto no movimento negro, quanto no feminista, posicionando-se contrariamente ao discurso machista e ao discurso de caráter universalista.

Desse modo, nos anos 1970, e com maior ênfase nos anos de 1980 e 1990, as teorias feministas produzidas por mulheres negras norte-americanas como Ângela Davis, Bell Hooks, Audre Lorde e Patricia Hill Collins106 - que têm suas bases fincadas nos trabalhos precursores desenvolvidos por mulheres negras norte-americanas como, Sojourner Truth107, Maria W. Stewart, Anna Julia Cooper, Ida B. Wells-Barnett108 -, contribuíram para aprofundar a análise e a compreensão da marginalização social, econômica e política dessas mulheres.

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Entretanto, de acordo com King (1993, apud RAIMUNDO e GEHLEN, 2003), muitas ativistas feministas brancas supuseram que a atitude anti-sexista que adotavam aboliria, por consequência, o preconceito racial e a discriminação. Mas a tendência de centrar a questão das mulheres nas suas experiências comuns desconsiderou diferenças fundamentais entre elas, principalmente no que se refere à raça.

106 Segundo Silva e Barbosa (2008), as feministas norte-americanas foram pioneiras na incorporação do tema das diferenças em suas abordagens, ocupando-se em discutir a presença do racismo, bem como o entrecruzamento entre gênero, raça e classe como elementos representativos das diferenças nas experiências das mulheres.

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No século XIX lutou em favor do movimento abolicionista feminista, era analfabeta e seus discursos foram relatados por outras mulheres abolicionistas.

108 Segundo Silva e Barbosa (2008), estas mulheres, desde o século XIX, tiveram papel fundamental no desenvolvimento de uma crítica feminista negra, revelando suas experiências na sociedade escravocrata e nas épocas pós-escravidão.

106 Patricia Collins (1991, 1998, 2000) e Bell Hooks (1981, 1984, 1990), por exemplo, compartilharam a ideia de que é necessário um deslocamento das reflexões do centro desta análise para a margem, ou seja, para o “entre-lugar”, local onde residiriam outros tipos de experiências de mulheres.

Este deslocamento no interior da luta feminista, por sua vez, teve como pressuposto desenvolver um discurso “alargador” da visão feminista que extrapolasse a concepção universalizante. Nesse “entre-lugar”, a experiência do racismo ganhou centralidade e a partir daí, passou a atuar como uma espécie de desconstrutora das categorias universalizadas pela teoria feminista, que estabeleceram as bases para a construção de estereótipos sobre a mulher negra.

Ou seja, a supremacia racial branca passou a ser considerada limitante para qualquer perspectiva que desejasse ir além da questão de gênero:

Feminist analyses of woman’s lot tend to focus exclusively on gender and not provide a solid foundation on which to construct feminist theory. They reflect the dominant tendency in Western patriarchal minds to mystify woman’s reality by insisting that gender is the sole determinant of woman’s fate. (...) It is essential for continued feminist struggle that black women recognize the special vantage point our marginality gives us and make use of this perspective to criticize the dominant racist, classist, sexist hegemony as well as to envision and create a counter-hegemony. (…) I do so not in attempt to diminish feminist struggle but to enrich, to share in the work of making a liberatory ideology and a liberatory movement. (HOOKS, 1984, p. 15-17)

Outro aspecto do Feminismo Negro é que ele passou a demonstrar como as mulheres negras, em relação aos homens negros e brancos e às mulheres brancas, não foram socializadas para assumir o papel de explorador/opressor em nenhuma posição ou papel social que assumiram. Enquanto mulheres brancas e homens negros poderiam agir como opressores e oprimidos em um mesmo papel, a mulher negra foi oprimida duplamente: tanto em termos de gênero, quanto de raça. (COLLINS, 2000; CARNEIRO, 2001, 2002, 2003)

É nesse contexto que emergiu o que foi designado como Pensamento Feminista Negro,

...um conjunto de experiências e idéias compartilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade (...) que envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem (...). Entre eles, se destacam: o legado de uma história de luta, a natureza

107 interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade”. (CARNEIRO, 2001, p.24)

Nesse feminismo da diferença, pautado pela crítica veemente às raízes individualistas do feminismo universalista, a defesa de uma perspectiva feminista que não fosse informada pela ideologia liberal individualista passou a ser o grande foco. Desse modo, articulando e interseccionando raça, gênero e classe como categorias que demarcam a diferença nas experiências das mulheres, as feministas negras trouxeram para o centro do debate o reconhecimento de suas experiências de vida, construindo uma teoria feminista superadora do determinismo imposto pelo gênero. (CALDWELL, 2010; BAIRROS, 1995, 2000; BARRETO, 2005)

Por isso, essa contra-hegemonia passou também a ressaltar o papel do conhecimento produzido por mulheres comuns e suas experiências diárias como mães, professoras, escritoras, empregadas domésticas, militantes pelos direitos civis, cantoras e compositoras da música popular que, nesse outro feminismo, assumem a posição de contribuição intelectual, tomando a experiência do racismo como base legítima para a construção do conhecimento. Experiência coletiva que foi forjada no contexto histórico de cada localidade e que tornou o racismo a principal categoria para repensar as teorias, discursos e práticas feministas num contexto diaspórico. (COLLINS, 2000)

Segundo Collins (Ibid.), tal reconhecimento adveio principalmente da reinvidicação pela incorporação, na agenda feminista, das condições econômicas precárias, da segregada educação formal, do emprego doméstico, da violência e dos estupros a que estão submetidas essas mulheres. O debate do controle da imagem é outro ponto fundamental do Feminismo Negro visto que a televisão, o rádio, filmes, músicas e a própria INTERNET constituem novas formas de controlar a imagem, grande parte, de forma negativa e preconceituosa.

Ainda há a incorporação do combate à perniciosa associação do corpo da mulher negra como objeto vendável, sujeito ao estupro, à violência sexual, à exploração, aos maus tratos, e de como ela foi silenciada desde a sua chegada às Américas até os dias de hoje; da redução populacional, fruto da esterilização e das novas biotecnologias, em particular a engenharia genética e as possibilidades de práticas eugênicas; e, por fim, da globalização hegemônica como acentuadora do processo de feminização da pobreza, impondo a necessidade de articulação e intervenção da sociedade civil em nível mundial. (COLLINS, 2000; CARNEIRO, 2001; GONZALEZ, 2000)

108 Importante ressaltar a essa altura que ainda que as precursoras do pensamento feminista negro tenham elaborado suas análises remetendo-se para a realidade das mulheres afro-norte-americanas, é um fato que a mesma é vivenciada pela maioria das afrodescendentes das Américas, apesar de muitos tentarem afirmar o contrário, tornando-se essa agenda, portanto, trans-regional e transnacional.

A emergência dessa contra-hegemonia não se desenvolveu apenas entre as feministas e mulheres negras norte-americanas, estando também bastante evidenciadas nas ações políticas de feministas negras africanas, afro-latino-americanas109, afro- caribenhas e da diáspora africana em geral, assim como de feministas indígenas, chicanas, e queers 110.

Essa experiência comum nas análises e práticas do Feminismo Negro transformou-o, segundo Werneck (2006, p. 12), num feminismo “diaspórico, pós- colonial, pós-escravidão, (...)” que ancorado na raça, concebeu o “gênero como o modo como a raça é vivida, sendo essa categoria aquela que define o modo de ser da mulher negra e do homem negro” 111

.

A questão racial, nesse sentido, tornou-se um tema fundamental na medida em que,

...a conscientização das mulheres negras em relação as opressões sociais ocorre antes de qualquer coisa pela via racial, e que as raízes e experiência histórico e cultural comum entre nós e os homens negros acabam por fortalecer nosso laços políticos, (...) foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político- culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de libertação. (GONZALEZ, 2011, p. 19)

E ainda porque, segundo Sueli Carneiro (2003, p. 119),

A “variável” racial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras) como a masculinidades subalternizadas (...) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (mulheres brancas). Em face dessa dupla subvalorização, é válida a afirmação de que o racismo rebaixa o status do gênero.

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Destaque para o trabalho de brasileiras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, Jurema Werneck, etc.

110 Estas teóricas feministas de fronteira inauguram aquilo que foi designado como feminismo pós- colonial. Esta tendência foi acelerada na década de 1960, com o movimento pelos direitos civis e o colapso do colonialismo europeu na África, Caribe e e em partes da América Latina e do sudeste Asiático. Desde então as mulheres nas antigas colônias europeias, nas economias emergentes, e até mesmo em países pobres, propuseram feminismos pós-coloniais, nos quais algumas postulantes criticaram o feminismo tradicional ocidental, acusando-o de etnocêntrico.

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Depoimento de Jurema Werneck durante palestra da autora realizada no IV Encontro de

109 Foi, portanto, como resultado desse contexto que emergiram muitas organizações de mulheres negras em todo o mundo, dando voz, articulando politicamente e empoderando-as, tornando-as assim protagonistas do enegrecimento do feminismo112 que significou,

...concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnico-raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras. (Ibid., p. 126)

Assim, a partir do Feminismo Negro, a discussão articulada entre raça, gênero e classe – como categorias estruturantes que condicionam a realidade de exclusão a que estão submetidos os afrodescendentes, passou a ganhar espaço nas organizações tradicionais do movimento negro e no movimento feminista. O Feminismo Negro, nesse sentido, tomou para si o desafio de desenvolver bases teóricas e políticas que levassem à construção de identificações não estereotipadas e estigmatizantes das mulheres negras operando, simultaneamente, no combate ao racismo, ao sexismo e ao patriarcalismo, além de conectar teoria e prática. (CARNEIRO, 2001)

Isso explica também o motivo pelo qual as organizações de mulheres negras vêm lutando pelo reconhecimento das especificidades da mulher afrodescendente e disputando a construção de uma agenda política feminista que seja pluralista e multiculturalista (e/ou multirracialista). Justamente por isso o combate ao racismo ocupa cada vez mais o centro das práticas discursivas sobre o gênero entre as militantes do movimento de mulheres afro-latino-americanas e afrocaribenhas. Além e por causa disso, a mulher negra vem assumindo um papel preponderante nas intervenções políticas e na produção de conteúdo no campo das relações raciais e de gênero, criando

112 Segundo Carneiro (2003, p. 126), o êxito dessa estratégia pode ser comprovado no Brasil a partir de uma nova plataforma feminista, adotada durante a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras realizada em 2002, na cidade de Brasília. A plataforma desta conferência espelhou a diversidade de mulheres presentes no encontro (mulheres negras, indígenas, brancas, lésbicas, urbanas, rurais, quilombolas, jovens, entre outras) e propôs, entre outras tantas reinvidicações, o reconhecimento da autonomia dos movimentos sociais de mulheres e o comprometimento com a luta antirracista.

110 estratégias de resistências cotidianas, assim como poderosas redes e organizações sociais para dar maior visibilidade e conteúdo político ao ativismo.

Por sua vez, a importância dessas questões e o crescente interesse dos organismos internacionais por essa população têm levado o movimento de mulheres negras a desenvolver uma perspectiva trans e internacionalista de luta. Essa visão, de acordo com Carneiro (2003), está promovendo a diversificação das temáticas, o desenvolvimento de novos acordos e associações, e a ampliação da cooperação interétnica.

Essa nova consciência, perpretada pelo fortalecimento do Feminismo Negro - que gesta o desenvolvimento de inúmeras ações regionais no âmbito da América Latina e do Caribe, além da participação crescente nos fóruns internacionais, nos quais governos e sociedade civil se defrontam e definem a inserção dos povos de países emergentes e terceiro-mundistas no terceiro milênio – redefine o Movimento Negro contemporâneo.

Ou seja, a organização transnacional dessas mulheres passa, no atual contexto, a constituir novas vozes e estéticas políticas, impondo diferentes territorialidades e politizando temas que, até então, estavam subalternizados e invisibilizados. A década de 1990 passa a demarcar esse novo rearranjo.