• Nenhum resultado encontrado

O Movimento Negro e a luta por Direitos Civis nas Américas

Capítulo 3. “NAVEGAR” DAS VIAGENS TRANSATLÂNTICAS À NOVA TERRA:

3.3. O Movimento Negro e a luta por Direitos Civis nas Américas

Com o movimento da negritude, os panafricanismos e os consequentes processos de descolonização da África que se iniciou nos anos 1950, o movimento negro tomou novo impulso e gestou mais um momento histórico importante na década de 1960. Esse contexto ficou marcado principalmente pelo movimento de direitos civis nos Estados Unidos da América97. Nele, destacaram-se lideranças importantes como, Martin Luther King, Rosa Parker, Malcolm X e Ângela Davis, assim como o movimento Black Power e Black Panters dando, à problemática étnico-racial da época, nova visibilidade. Tal movimento, que reinvidicava reformas no país visando a suprimir os mecanismos de discriminação e segregação racial98, teve como marco inicial o ato da costureira negra Rosa Parks. Parks, ao entrar em um ônibus de volta para casa após um dia de trabalho, sentou-se nos bancos da frente do ônibus, local proibido aos negros

97 O ataque desse movimento foi principalmente contra as leis segregacionistas da Era Jim Crown, entre as quais encontramos as leis que exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo trens e ônibus) tivessem instalações separadas para brancos e negros. Todas essas leis foram revogadas em 1964.

98 As lutas por direitos civis também foram em grande parte responsáveis pela expansão do Estado de Bem-estar social nos EUA e pela adoção de programas de ação afirmativa iniciados pelos governos federal, estaduais e até por empresas.

98 pelas leis segregacionistas do estado. Intimada a dar seu lugar a um passageiro branco e sentar-se no fundo do veículo, recusou-se e foi presa, julgada e condenada. Seu ato e sua prisão deflagraram uma onda de manifestações de apoio e revolta, além do boicote da população aos transportes urbanos99, dando início, de forma prática, à luta da sociedade negra por igualdade perante as leis norte-americanas.

Na esteira do sucesso dos boicotes aos ônibus em Alabama, multiplicaram- se as manifestações estudantis contra a segregação em restaurantes, cinemas e rodoviárias. A cultura de protesto do movimento, usando canções e comícios, forjou um forte sentimento de comunidade e abrandou o medo gerado pela resposta violenta dos brancos e dos policiais.

Outros marcos importantes como a dessegregação de Little Rock, o Protesto de Greensboro, o Caso James Meredith e o Verão da Liberdade, também fortaleceram esse movimento que teve seu ápice em 1963 com a histórica Marcha de Washington, dando início a um processo que não teria mais volta. Foi com essa que o movimento de direitos civis atingiu seu caráter mais massivo, exatamente no momento em que Martin Luther King - um pastor da Geórgia que coordenou a luta propondo a desobediência civil não violenta100– proferiu seu famoso discurso I have a dream.

Um quarto de milhão de manifestantes, negros e brancos, vindo de todas as partes da nação, reuniu-se na capital do país na maior aglomeração pacífica realizada nos Estados Unidos para um dia de discursos, protestos e cantos a favor da igualdade dos direitos civis para todos os cidadãos e reinvidicando integração racial, direito de moradia digna, pleno emprego, direito ao voto e educação integrada. Diante da mobilização, o presidente Lindon Johnson foi forçado a sancionar, entre 1964 e 1967, diversas leis proibindo a discriminação no emprego, nos serviços públicos e nas eleições. (CARSON e SHEPARD, 2006)

Entretanto, frente à miséria econômica e aos limites da legislação que mantinham os negros, na prática, em situação desigual, muitos ativistas negros expandiram suas ações, criticando, não somente a discriminação formal, mas também a exploração econômica. Martin Luther King aos poucos radicalizou seu discurso, combatendo a pobreza e criticando duramente a Guerra do Vietnã, até ser assassinado em quatro de abril de 1968.

99 O boicote aos transportes públicos, que durou 386 dias, quase levou à falência o sistema urbano de transportes (a maioria dos passageiros era de negros pobres) e acabou somente quando a legislação que separava brancos e negros nos ônibus de Montgomery foi extinta.

99 Para muitos negros, entretanto, a saída dialógica e pacífica pregada por King, uma perspectiva que correlacionava moral religiosa e liberdade política com justiça social bíblica, não era suficiente. Foi neste contexto de crítica a essas posturas que muitos ativistas abraçaram alternativas políticas ao movimento de direitos civis, adotando formas de contestação mais radicais. É nesse momento que surge outra figura emblemática do movimento negro da década de 1960: Malcolm X, um líder muçulmano que pregou a autodefesa contra a brutalidade da polícia, a valorização das tradições afro-americanas e o apoio aos movimentos revolucionários do Terceiro Mundo101.

Malcolm X, com suas ideias, deu maior popularidade e visibilidade aos Black Power e aos Black Panters. Foi a partir do que X manifestou que o Partido dos “Panteras Negras”, fundado em 1968 por universitários da Califórnia, passou a defender o “nacionalismo cultural”, serviços sociais para a comunidade negra e a luta militante contra o racismo. Muitos ativistas, inclusive, adotaram tradições africanas, mudando seus nomes e lançando cursos de estudos afro-americanos nas universidades.

De acordo com Karnal e Purdy (2007), tais estratégias e táticas inspiraram sindicalistas, feministas, lésbicas e gays, povos indígenas e imigrantes, não só nos Estados Unidos como em outras partes do mundo, incluindo o próprio movimento estudantil de maio de 1968 na França.

Segundo Costa (2004), o contato dos ativistas antirracistas norte-americanos com a realidade brasileira nasceu durante esse período. Desde as primeiras décadas do Séc. XX, por exemplo, o Brasil foi agraciado por missões de ativistas negros americanos interessados em estudar o país102. A partir da década de 1970 a prática da afirmação das identidades raciais vigente nos Estados Unidos passou a ser defendida por esses ativistas como o eixo que deveria orientar a luta contra o racismo brasileiro, redirecionando desse modo, sua ação. Foi também nesse contexto que os esforços bilaterais para o combate do racismo se tornaram mais sistemáticos envolvendo, além do permanente intercâmbio entre ativistas antirracistas e a ação das organizações

101 É importante ressaltar que, como pano de fundo e alimentando a contestação nos EUA, estavam os processos de emancipação do Terceiro Mundo e as lutas dos povos da Ásia e da África pela descolonização. Houve, de fato, uma influência mútua entre o processo de descolonização do Terceiro Mundo e a retomada do Movimento dos Direitos Civis dos negros norte-americanos. Inclusive, muitos dos afro-americanos achavam-se na retaguarda do movimento.

102

Na época o Brasil era visto como um modelo de relações raciais a ser seguido, como um referencial de integração de diferentes etnias sem práticas de segregação, tal qual se dava nos EUA. A partir dos anos 1950, os americanos deram conta de que, por trás da convivência harmônica entre os diferentes grupos demográficos, se ocultava a realidade de acesso diferenciado às oportunidades sociais e a perpetuação das hierarquias sociais herdadas da escravidão. (COSTA, 2006a)

100 filantrópicas, pesquisas desenvolvidas por investigadores americanos e brasileiros sobre as formas de manifestação do racismo no Brasil103:

Desde finais dos anos 1970 vem se consolidando uma ativa rede antirracista bilateral entre Brasil e Estados Unidos com o propósito de combater o racismo no Brasil. As atividades comuns envolvem basicamente três frentes: a troca de experiências entre ativistas do movimento negro nos dois países, a pesquisa sobre o racismo no Brasil conduzida por cientistas sociais norte-americanos e brasileiros e a ação de organismos filantrópicos, com destaque para as fundações Ford e Rockfeller. (COSTA, 2004, p. 33)

Além disso, ainda sobre o contexto do movimento negro das décadas de 1960 e 1970, é preciso pontuar os fortes vínculos que se estabeleceram entre o marxismo e o nacionalismo, dando o tom do discurso do movimento negro durante essas décadas, na América Latina e no Caribe e nos consequentes processos de descolonização do continente africano e melanésio.

Entretanto, de acordo com Wedderburn (2002), a ascensão de algumas elites políticas ao poder, e essas misturas entre marxismos e nacionalismos, estabeleceram quadros complexos e bastante sangrentos em alguns locais da África, do Caribe e do Pacífico, onde correntes pan-africanistas contrárias disputaram o poder dentro de movimentos de libertação nacional com aspirações a dirigir futuros Estados (MPLA, FNLA e UNITA em Angola; PAC, ANC, Movimento da Consciência Negra, de Steve Biko, e Inkhata na África do Sul; Frelimo e Renamo em Moçambique; facções rivais no interior do PAIGC, na Guiné-Bissau).

Por isso, as décadas de 1960 e 1970 constituem o período da formação de três vertentes do pan-africanismo mundial, fortemente divididas em facções pró-comunistas, pró-capitalistas e “nacionalistas”. Segundo Wedderburn (Ibid.), sobressaiu-se entre elas as vertentes pró-comunistas, dado o apogeu do comunismo em escala mundial naquele perído: o bloco de Estados comunistas no Leste Europeu e na Ásia, Cuba e os Estados progressistas e movimentos de libertação na África, no Caribe e no Pacífico, que optaram pelo marxismo como ideologia.

Entretanto, alguns panafricanistas como o brasileiro Abdias do Nascimento e o cubano Carlos Moore Wedderburn, levantaram-se de forma vigorosa contra essa marxização do movimento panafricanista, proclamando que o mundo panafricano

103 De acordo com Wedderburn (2002, p. 23), foi com Abdias do Nascimento que se estabeleceu, pela primeira vez, uma ponte entre o movimento social negro norte-americano e aquele que surgia “embora

101 deveria encontrar sua própria identidade ideológica, baseada na experiência histórica dos povos africanos do continente, assim como na experiência das suas diásporas nas Américas, Caribe e Pacífico. As críticas à marxização do movimento panafricanista chegaram a tal ponto que Patterson (ver: GUERREIRO, 2011, p. 143), considerou a posição atribuída aos negros na Revolução Cubana da seguinte forma:

Os negros não participaram ativamente da revolução de 1959, foi um movimento de classe média branca e de camponeses de Sierra Maestra. Quando um negro ousava falar do problema racial era acusado de ser contrarrevolucionário e traidor de José Martí, que dizia: “ser cubano é ser mais que negro, mais que branco, mais que mulato”.

E, de acordo com Carlos Moore Wedderburn (apud GUERREIRO, Ibid..),

(...) esse regime decidiu que ele não tinha que discutir com um “bando de neguinhos equivocados” como a liderança castrista nos qualificou. Eles pensaram que, como eles eram brancos, inteligentes, marxistas e anti-imperialistas, nós, negros, só tínhamos que nos alinhar sob o comando deles, e seguir as instruções políticas que eles davam. Ou seja, que deveríamos arriscar as nossas vidas no combate contra o inimigo imperialista, e, claro, trabalhar para edificar a nova sociedade socialista. Mas, como bons soldados negros marxistas, devíamos nos calar no que diz respeito aos problemas da sociedade cubana, sobre as grandes decisões políticas, e seguir as instruções dos nossos dirigentes superinteligentes. Mas, nós que tinhamos outra idéia da Revolução, achamos que havia algo de errado nessa relação que nos propunha a liderança castrista – composta em mais de 95% por brancos provindos da alta burguesia e da classe média cubana”.

Por isso que, em finais da década de 1960 e início de 1970, o panafricanismo se tornou uma força desgastada enquanto expressão dos anseios dos povos negros em geral, visto que tinha sido absorvido pela poderosa dinâmica do movimento comunista internacional, subdividido entre maoísmo, castrismo, leninismo, stalinismo, trotsquismo etc.

Além disso, o panafricanismo ficou desacreditado devido às próprias práticas das elites negras que assumiram o comando de Estados soberanos na África, no Caribe e no Pacífico; assim como pelos sectarismos e extremismos de membros de sua faixa “nacionalista”. Segundo Wedderburn (2002), o panafricanismo foi rapidamente confiscado por elites de estado, “eurocêntricas e emburguesadas”, anunciando a sua degeneração como projeto de libertação de povos. Desse modo, o panafricanismo entrou em um processo de decadência intelectual e política, justamente no momento em que as

102 lutas dos povos afrodescendentes mais precisavam dele, como instrumento de combate. Tornou-se um panafricanismo esvaziado em seu princípios. Um panafricanismo que excluía a mulher e que perdia seu caráter cosmopolita, global e independente de blocos ideológicos, dando lugar a estados nacionais e governos nacionalistas, muitas vezes, ditatoriais.

Foi nesse contexto que a redefinição de uma linha de conduta política e cultural capaz de sustentar as lutas específicas dos povos e comunidades afrodescendentes de todo o mundo, se tornou necessária. O ambiente internacional, marcado pela bipolarização ideológica e estratégica entre blocos, assim como pela crescente distância entre as possibilidades econômicas e tecnológicas do Norte em relação ao Sul, tinha se tornado demasiado complexa para as ideias programáticas já obsoletizadas do velho panafricanismo do início do século XX.

Por isso, em finais da década de 1970, a discussão da questão racial ganhou nova dimensão intelectual, teórica e política, principalmente naquilo que se refere ao modelo sócio-racial ibero-latino e caribenho, quando muitos teóricos e ativistas passaram a impor a discussão específica do sistema de dominação étnico-racial e sócio-econômico da região, baseado na “mestiçagem programada” entre as raças e etnias situadas em posições fixas de inferioridade e de superioridade104. É o momento também em que emerge o movimento cultural no qual o gênero feminino encontra-se, de novo, em posição pioneira, papel que parece sempre ter desempenhado na história do mundo africano. ( Ibid., p. 17-32)

Capítulo 4. “SOPROS”: Novas vozes e