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Capítulo 3. “NAVEGAR” DAS VIAGENS TRANSATLÂNTICAS À NOVA TERRA:

3.2. O movimento negro Pós-Abolicionismo: o Panafricanismo e o Movimento da Negritude

3.2.3. O movimento da Negritude

O movimento da Negritude surgiu no mundo francófono e tem suas raízes fincadas em trabalhos que repensaram a teorização da racialidade como resposta ao racismo desenvolvidos por intelectuais militantes como Aimé Césaire, Léon Damas, Léopold Sédar Senghor, René Maran, Lamine Senghor, Tiemoko Garan Kouyate, Kojo Touvalou Houenou e os intelectuais da Harlem Renaissance, nos Estados Unidos, principalmente nos anos 1920. Entretanto, foi na Paris de 1934, que Aimé Césaire, Leon Damas e Leopold Sedar Senghor, criaram o “Movimento da Negritude”.

Pelo menos na sua fase inicial, esse movimento recebeu proeminente influência ideológica do marxismo. Entretanto, na medida em que o movimento expandiu sua inserção social e de mobilização, divergências sob o papel do marxismo se fizeram presentes. De um lado, um grupo minoritário passou a associar a negritude à luta de todos oprimidos da sociedade, independente da cor da pele e, de outro, um grupo majoritário continuou defendendo que o movimento da negritude deveria,

94 exclusivamente, construir uma consciência racial sem vínculo com a luta dos demais grupos oprimidos do sistema capitalista92. (DOMINGUES, 2005)

A ideia do grupo majoritário prevaleceu e a negritude foi definida por um de seus mentores, o poeta Aimé Césaire,

...como uma revolução na linguagem e na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo da palavra negro para dele extrair um sentido positivo, acrescentando que a ideia dos poetas “foi justamente assumir a denominação negativamente conotada para reverter-lhe o sentido, permitindo assim que a partir de então as comunidades negras passassem a ostentá-la com orgulho e não mais com vergonha ou revolta”. (CÉSAIRE, A. in: BERND, 1988, p.17)

A proposta do movimento foi, portanto, a de negar e desconstruir a política de assimilação à cultura europeia, visto que o dilema para os africanos e negros da diáspora, como definiu Fanon (1979), tinha deixado de ser o “embranquecer ou desaparecer”, para passar a ser resgatar e enaltecer os valores e símbolos culturais de matriz africana. Além disso, a denúncia dos papéis dicotômicos inseridos nas lógicas do colonizador e do colonizado, que foram acentuadas nessa dicotomia, tomou vulto implicando na demonstração da criação de um “não-lugar” para o negro nessas sociedades:

Todo povo colonizado, isto é, todo povo no seio do qual nasce um complexo de inferioridade, de colocar no túmulo a originalidade cultural local, se situa frente a frente à linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. O colonizado se fará tanto mais evadido de sua terra quanto mais ele terá feito seu os valores culturais da metrópole. Ele será tanto mais branco quanto mais tiver rejeitado sua negrura. (FANON, 1979, p. 12)

Ao colonialismo não basta encerrar o povo em suas malhas, esvaziar seus cérebros de toda forma e todo conteúdo. Por uma espécie de perversão lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o. (Ibid., p. 15)

Nessa introjeção, segundo Fanon (id.), o colonizado passou a vivenciar um complexo no qual se nega como negro para se pretender um “negro-branco”, numa identidade reificada pela negação, pela não consciência de si, ou pior, como aquele que pensa pelas representações e estereótipos construídos pelos outros. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976)

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Divergência que também aparecerá na Revolução Cubana de 1959, sobre a qual trataremos mais a frente.

95 Fanon concebeu esse processo como alienação, que se traduz, na sua concepção, por um duplo processo: num primeiro tempo, econômico, e depois de interiorização, ou melhor, de epidermização do complexo de inferioridade. Ou seja, o que o sistema propunha ao colonizado era a negação da própria condição, a destituição da sua intrínseca humanidade, a instituição de um “não-lugar”93

, diante da imposição da branquitude. A Negritude deveria, por isso, se tratar de uma reação a essa branquitude reinante da cultura ocidental.

Nessa perspectiva, a tática inscrita no movimento da negritude foi a de desmobilizar o inimigo em um de seus principais instrumentos de dominação racial: a linguagem. O próprio Aimé Césaire assinalou que esse movimento representou uma revolução na linguagem e na literatura constituindo-se, pelo menos na sua fase inicial, um movimento de caráter cultural. (MUNANGA, 1986)

Além disso, com o intuito de combater a branquitude, o movimento da negritude desenvolveu uma ação política pautada por três aspectos: primeiro, na identidade, propondo o orgulho da condição racial; depois, na fidelidade, indelével à herança ancestral africana; e por último, na solidariedade, como o sentimento que uniria, involuntariamente, todos os “negros” do mundo em torno da preservação de uma identidade comum. Nesse processo, inicialmente pode-se considerar a emergência de um posicionamento identitário pautado em certo essencialismo. (Ibid.)

De todo o modo, o Movimento da Negritude foi o ápice do grito de revolta contra a discriminação racial, a assimilação cultural e o colonialismo que, naquele momento histórico, afetava os negros de todo o mundo94. A consciência racial foi despertada, e, por conseguinte, a disposição de lutar em favor do resgate da identidade cultural. A intenção do movimento, desde o início, foi a de corrigir as distorções observadas pelos intelectuais neoafricanos entre a cultura que lhes era imposta e a sua própria realidade, de forma que se impedisse a desagregação de sua unidade cultural. (DAMASCENO, 1988, p.12)

93 Augé (1994) define os chamados “não-lugares” como um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade.

94O filósofo francês Jean-Paul Sartre, no seu famoso texto “Orfeu Negro” (1948), foi um dos primeiros

“grandes” intelectuais a fazer uma reflexãoaprofundada do movimento da negritude. A obra foi escrita como introduçãoa uma antologia de poesia negra organizada por Leopold Senghor. Nesse texto, Sartre reconheceu o papel subversivo do movimento da negritude em determinado momento histórico, porque ela negava os valores culturais do opressor branco e porque despertava no negro a altivez e o orgulho racial. A negritude seria, portanto, uma reação do negro à supremacia branca, cuja proeza era apontar para uma progressão dialética nas relações raciais. Segundo Sartre, o racismo do branco seria a tese, a negritude sua antítese, um princípio transitóriofundado no racismo antirracista. (DOMINGUES, 2005, p. 201)

96 Assim, um movimento que começou como revolução intelectual e poético- cultural em favor da personalidade negra, tornou-se um movimento de denúncia contundente da dominação cultural e da opressão do capitalismo colonialista, assumindo um caráter mundial. Isso, ainda que a negritude tenha sido a ideologia de uma elite francófona negra letrada de estudantes oriundos de famílias “remediadas” dos países colonizados das Antilhas e da África.

Sendo um movimento perpretado pela pequena-burguesia negra, foi por meio da incorporação de hábitos, roupas, língua e arquitetura do colonizador, ou seja, pela assimilação do branqueamento, que esse grupo observou como mesmo incorporando a lógica dominante, como negros, não escapavam ao drama da marginalização. Ou seja, continuavam sendo negros e, consequentemente, tratados como inferiores. A partir dessa constatação o movimento atingiu seu ápice, quando “o evoluído de repente se descobre rejeitado por uma civilização que ele, no entanto assimilou”. (FANON, 1979, p. 23).

É nesse momento que o movimento, para além da construção da personalidade ou consciência negra, passa a protestar contra a ordem colonial e a lutar pela emancipação política dos povos africanos, ultrapassando assim os marcos da literatura. Segundo Munanga (1986), esse é o momento da fase militante do movimento, que insurge depois da segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nesse período, a ideologia da negritude é posta a serviço da causa política considerada mais importante: a libertação das colônias africanas do colonialismo europeu. O auge desse processo foi a década de 1960, quando o movimento se internacionalizou, alcançando adeptos, inclusive nos países denominados de Terceiro Mundo como o Brasil95.

Apesar de alguns equívocos apresentados96, o Movimento da Negritude, como movimento poético-cultural e político-social, desempenhou um importante papel histórico no processo de descolonização das colônias europeias em África,assim como

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Por exemplo, as ideias do movimento francês da negritude somente chegaram ao Brasil na década de 1940, por meio, sobretudo, do Teatro Experimental do Negro (TEN), entidade fundada em 1944 no Rio de Janeiro, voltada inicialmente para desenvolver uma dramaturgia negra no país. São personalidades centrais desse período, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento. (MUNANGA, 1986)

96 Equívocos em relação ao fato de que o passado nostálgico e glorioso da África, por si só, não resolveria as mazelas do presente. Fato que se confirmou com a conquista da independência, quando ao assumirem governos, líderes como Léopold Senghor capitularam à dominação das metrópoles capitalistas ocidentais de outrora, tornando-se a defesa oficial dos “valores africanos” discursos vazios. A não rejeição da língua do colonizador também foi vista como outra contradição, na medida em que se teria mantido culturalmente o “inimigo”.

97 para a emergência e consolidação da literatura de africanos e afrodescendentes, como instrumento de conscientização do negro em diáspora.

Em contrapartida, ao tratar desse panafricanismo nacionalista e das vertentes a ele articuladas, Appiah (1997) desenvolveu uma crítica bastante importante que fundou o que designamos como um novo panafricanismo, mais transnacional e multicultural, menos centrado na ideia de unidade racial. Para Appiah, o panafricanismo da Negritude inventou uma África mítica, forjando uma identidade africana enraizada nas tradições. Essa identidade minimizou a diversidade cultural e identitária na África e na diáspora, censurando a relação dos intelectuais africanos com a vida intelectual euro-americana. Esse panafricanismo, portanto, acabou ao reforçar a ideia de unidade racial, excluindo as múltiplas identidades possíveis.

Entretanto, é essa visão pananfricanista que vai persistir durante toda a década de 1960, mas em conflito com posturas mais cosmopolitas e multiculturalistas para as quais as contribuições de novas estéticas negras, assim como o feminismo negro e o ativismo de mulheres negras, terão papel fundamental. É o que veremos a seguir.